quinta-feira, 27 de abril de 2023

Abrilimagem

 


Disse Saramago que “nós estamos constantemente a (re)elaborar a nossa memória. Não quer dizer que a transformemos noutra coisa, não quer dizer que as transformemos em memórias diferentes, mas transformamo-las em memórias de memórias.” Foi o que senti quando o motor de busca do Google mostrou, por acaso, uma imagem que me fez recuar a Abril de 1980.

A imagem, mais propriamente a Abrilimagem, é de uma colagem de Marcelino Vespeira de recortes de cartazes da Dinamização Cultural e da serigrafia de António Inverno (o Vespeira marcou bem a diferença entre os dois objectos artísticos), criada para comemorar o 6º Aniversário do 25 de Abril. Foram impressas 150 serigrafias com 54x34 cm assinadas por Vespeira e 1000 miniaturas com 18x27 cm e legenda, tal como a reproduzida na imagem.

A Abrilimagem foi a primeira de uma série de serigrafias de grandes artistas, editadas pelo Clube Militar Naval para comemorar o 25 de Abril. As miniaturas foram entregues a quem veio festejar a noite de 24 para 25 de Abril nesse ano de 1980, nas antigas instalações do CMN no Marquês de Pombal.

Lembro-me particularmente bem das comemorações desse ano no CMN. Acabado de regressar de uma estadia de mais de dois anos nos EUA, fazia parte da recém-eleita Direcção. O Comandante Duarte Costa, meu professor na Escola Naval e meu comandante na corveta “António Enes” onde vivemos os tempos conturbados do Verão de 1975 no Continente e do Inverno de 1975/76 nos Açores, entendeu por bem convidar-me apesar de eu não ser um frequentador do CMN. Como é natural, aceitei sem hesitar e com o espírito de missão que ele me ensinou.

Se nunca fui dado a actividades sociais, naquela altura estava ainda mais afastado de tudo o que era o mundo político e artístico lisboeta e não sabia quem era quem na sociedade da época. Mais de dois anos a estudar na Califórnia, num tempo em que as comunicações em nada se comparavam com as actuais, era como viver noutra galáxia. De Portugal chegava apenas o que a família e os amigos escreviam, mas era inevitavelmente pouco.

Por isso, quando na noite de 24 para 25 de Abril de 1980 estive na porta do CMN, com outros camaradas da Direcção, a receber os convidados e a controlar as entradas de milhares de pessoas que queriam marcar presença no que então era o local mais “in” para celebrar o 25 de Abril, a maioria dos que entravam, muitos acompanhados de cortes numerosas, eram perfeitos desconhecidos.

Ao longo da noite apareceram os mais e os menos famosos, os mais e os menos importantes, os mais e os menos familiares dos famosos, os mais e os menos amigos dos importantes, e nós tivemos de arranjar maneira de evitar que um espaço que se encheu rapidamente nas primeiras horas, se tornasse ainda mais sobrelotado e perigoso. Muitos ficaram na rua e acabaram por desistir. Não sei se contou como marcação do ponto no evento, mas foi inevitável dadas as características do edifício.

Hoje não é fácil descrever o que então se passou. Só quem lá esteve tem ideia do fervor abrilista que muitos procuravam mostrar. E quem viveu essa noite de 1980, não de 1974 ou 1975, não pode deixar de sorrir quando mais de quarenta anos depois, ouve alguns dizerem que só se libertaram do poder dos militares em 1982. Se se sentiam oprimidos pelos militares, não se notava nada...

António Pedro da Silva Chora Barroso
À medida que a noite avançava, fui afinando o critério para barrar os penetras que diziam ser este ou aquele, ou amigos do fulano ou sicrano que já tinha entrado. No caso dos alegados amigos de artistas conhecidos, cedo percebi que o objectivo era quase sempre usufruir dos mimos com que os recebíamos. Até que um homem da minha idade, solitário, se aproximou e disse: “Sou Pedro Barroso e estive nos Fuzileiros. Gostava de actuar, mas já vi que isto está muito cheio.” E enquanto falava, entregou-me um folheto de apresentação.

Confesso que não sabia quem era. Não conhecia o artista nem o fuzileiro. Percebi mais tarde que já nos tínhamos cruzado, ele era do 24.º Curso Especial de Oficiais da Reserva Naval e, provavelmente, conhecia-me. Eu é que, muito fraco a fixar fisionomias, não o reconheci. No entanto, simpatizei com a sua abordagem e convidei-o a entrar, havíamos de arranjar maneira de actuar. Não terei sido suficientemente convincente e o Pedro Barroso agradeceu e foi-se embora. E o folheto de apresentação perdeu-se na confusão da mesa da entrada do CMN.

Só mais tarde reconheci a qualidade do seu trabalho. E fiquei com pena de não ter insistido que entrasse. Teria gostado de o ver actuar.

terça-feira, 18 de abril de 2023

A Casa e o Forte

 

Foto Ezequiel Santos

Viu os presos de delito comum construírem os novos blocos prisionais. Três pavilhões, o A, o B e o C, arquitectados a pensar nos presos políticos. É verdade que outros prisioneiros já tinham passado pela fortaleza, alemães e austríacos na Grande Guerra, portugueses com o Estado Novo. Mas agora era uma cadeia a sério, de alta segurança.

O Forte, orgulhoso da sua nova condição, continuou a contar à Casa tudo que se passava no seu interior, agora ainda com mais detalhes. E a Casa, curiosa, ouvia-o do outro lado do Campo da Torre e partilhava com ele o que via e ouvia, dentro e fora das suas paredes. Mas nenhum deles, ao longo de décadas, alguma vez revelou a terceiros os segredos que trocaram.

Eu bem tentei que Casa me contasse alguns, mas ela até hoje não me fez a vontade. Guardou para si tudo o que o Forte lhe contou, com o mesmo cuidado com que guardou e guarda os segredos de cinco gerações da família que a habita. Guardou para si as histórias dos presos e da cadeia, os pormenores da fuga de Janeiro de 1960, as conversas dos pides que passaram a abrigar-se junto a ela nas vigílias noturnas, as entradas e saídas das visitas dos presos e até a libertação deles depois do 25 de Abril de 1974.

A Casa soube, porque o Forte lhe disse, da preocupação dos presos e dos guardas quando receberam as primeiras notícias do golpe militar em Lisboa. Assistiu à chegada dos militares do RI10[1] de Aveiro no início da manhã de 25[2], convencidos que as forças do RAP3[3] e CICA2[4], que com eles e o RI14[5] constituam o “Agrupamento NOVEMBER”, já tinham tomado a cadeia do Forte.

Surpreendeu-se com a rapidez com que os feirantes desmontaram as bancas e as tendas da tradicional feira da última quinta-feira do mês no Campo da Torre, depois de terem recebido ordem para abandonarem o espaço em cinco minutos.

Testemunhou a surpresa do Tenente da GNR que comandava o destacamento responsável pela segurança da cadeia quando o comandante da companhia do RI10 bateu à porta e exigiu a rendição. Assistiu ao cerco do Forte pela força do CICA2, maioritariamente constituída por recrutas, depois da partida das restantes forças do agrupamento para Lisboa.

Mas quando lhe pedi que pelo menos me contasse a libertação dos presos políticos, a Casa e o Forte fecharam-se em copas e nada disseram. Se não fossem os dois amigos Carlos, o Machado dos Santos do lado dos “libertadores”[6] e o Saraiva da Costa do lado dos “libertados”[7], só muito dificilmente teria sabido os detalhes do que se passou no Forte naqueles dois dias.

No dia 25 de Abril de 1974 estavam 36 presos políticos no Forte. O “Carlos libertado” estava no pavilhão B, reservado aos presos políticos das organizações maoistas, da LUAR e oriundos das então colónias africanas. Às 8 horas da manhã do dia 25, ele e alguns dos seus companheiros notaram que o aparelho de rádio fora silenciado. “Uma avaria, já está a ser reparada", explicou o guarda de serviço ao pavilhão. O dia anunciava-se de grande tensão porque iam iniciar uma greve de fome de solidariedade com os presos de Caxias que se encontravam em luta contra as condições prisionais.

Por volta das 11 horas aperceberam-se que a RTP transmitia marchas militares e recearam um golpe militar do Kaúlza de Arriaga. Quando às 13 horas as visitas não foram autorizadas a entrar, insistiram junto do chefe dos guardas que acabou por confessar que ocorrera em Lisboa um levantamento militar, que o Governo de Marcello Caetano fora deposto e que foram detidos os principais responsáveis do regime. Atribuiu a direção do golpe militar a um tal MFA e ao general Spínola.

Receosos de serem utilizados como reféns, os presos políticos romperam o diálogo com as forças prisionais e ergueram barricadas. Exigiam a libertação imediata e por ela mantiveram-se barricados até cerca das 16 horas do dia 26.

A essa hora, na Cova da Moura[8], em Lisboa, o Coronel Vasco Gonçalves entrou no gabinete onde estavam os oficiais da Armada e pediu um voluntário para participar na libertação dos presos políticos do Forte de Peniche. O Capitão-tenente Machado dos Santos, o “Carlos libertador”, ofereceu-se para a missão e, com o Major Moreira de Azevedo, foi levado por Vasco Gonçalves à presença do General Spínola.

Spínola, depois de uma dissertação sobre as limitações que impunha à libertação dos presos − os que estivessem acusados de crimes tais como homicídio, assalto a bancos, falsificação de documentos, não seriam libertados − e de um murro na mesa depois do “Carlos libertador” o contrariar, ordenou que os dois oficiais partissem de imediato para Peniche, acompanhados de três advogados que resolveriam todas as questões jurídicas.

Feita a viagem no Mercedes do ex-Ministro da Defesa, o grupo chegou ao Campo da Torre por volta das 22 horas, onde cerca de um milhar de populares e de familiares dos presos os aplaudiram e criticaram por virem tarde. Bateram à porta do Forte e foram recebidos pelo tenente da GNR que comandava a guarnição que ali se manteve após a ocupação.

Quando se aperceberam que o comandante da força do Exército que tinha ocupado o Forte não se encontrava em condições de poder colaborar, substituíram-no pelo seu segundo numa espécie de tribunal que foi constituído no gabinete do Director da prisão: o “Carlos libertador” a presidir, o segundo da Companhia do Exército à sua esquerda e os três advogados nomeados por Spínola à sua direita.

Chamado o primeiro preso, o “Carlos libertador” fez sentir aos advogados que não estavam ali a fazer nada pelo que o processo de libertação avançou rapidamente até chegarem aos quatro presos acusados de crimes de sangue: Francisco Martins Rodrigues, João Pulido Valente e Rui d'Espiney, ligados à FAP (Frente de Acção Popular), por causa da execução de um informador da PIDE que os denunciara e Filipe Viegas Aleixo, envolvido no assalto ao paquete Santa Maria, na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961.

Depois de terem saído os presos ligados ao PCP, encarcerados nos outros pavilhões, os presos do pavilhão B, onde estava o “Carlos libertado”, decidiram unanimemente: "Ou saímos todos ou não sai ninguém!" E assim, de facto, aconteceu. Só depois de o “Carlos libertador” ter proposto que fosse lavrado um termo de responsabilidade, em papel timbrado da prisão e em triplicado, assinado por Moreira de Azevedo, Machado dos Santos e o advogado Macaísta Malheiros, que declarou que os três presos acusados de crimes de sangue permaneceriam na sua residência particular, em Lisboa, nos Olivais, aguardando decisão definitiva da Junta de Salvação Nacional, é que o processo de libertação foi concluído.

E foi assim que, já no dia 27, a Casa viu sair do Forte todos os restantes presos políticos para receberem o abraço inesquecível do povo de Peniche. E soube que o Tenente da GNR, antes do regresso do grupo a Lisboa no Mercedes ministerial, convidou os dois oficiais e os três advogados a atacar uma ceia de peixe acabado de chegar do mar e assado “in loco”, acompanhado pelos adequados complementos sólidos e líquidos.

A Casa e o Forte não souberam, mas eu soube porque o “Carlos libertador” contou, que no dia 27 à tarde, os dois oficiais do MFA foram à Cova da Moura procurar o General Spínola para relatarem a missão e colocarem a questão dos libertados condicionais.

Só encontraram o Almirante Rosa Coutinho, que tendo presenciado a cena da véspera e ao lhe ser apresentado o termo de responsabilidade de Macaísta Malheiro, nele escreveu e assinou um despacho de prescrição da custódia, enquanto dizia: “Sabem, isto está a andar muito mais depressa do que aquilo que se previa!”


[1] Regimento de Infantaria N.º 10 – Aveiro.

[2] CONTREIRAS, Carlos de Almada. Operação “Viragem Histórica” - 25 de Abril de 1974 (1ª Edição), pág. 287. Edições Colibri, 2017.

[3] Regimento de Artilharia Pesada N.º 3 – Figueira da Foz.

[4] Centro de Instrução de Condução Auto Nº 2 – Figueira da Foz.

[5] Regimento de Infantaria N.º 14 – Viseu.

[6] CONTREIRAS, Carlos de Almada. Operação “Viragem Histórica” - 25 de Abril de 1974 (1ª Edição), pág. 636. Edições Colibri, 2017.

[7] COSTA, Carlos Saraiva da. Os "últimos dias" de Peniche. Diário de Notícias, 27 Abril 2019 (https://www.dn.pt/poder/os-ultimos-dias-de-peniche-10838196.html).

[8] Palácio da Cova da Moura, sede da Junta de Salvação Nacional.