terça-feira, 18 de abril de 2023

A Casa e o Forte

 

Foto Ezequiel Santos

Viu os presos de delito comum construírem os novos blocos prisionais. Três pavilhões, o A, o B e o C, arquitectados a pensar nos presos políticos. É verdade que outros prisioneiros já tinham passado pela fortaleza, alemães e austríacos na Grande Guerra, portugueses com o Estado Novo. Mas agora era uma cadeia a sério, de alta segurança.

O Forte, orgulhoso da sua nova condição, continuou a contar à Casa tudo que se passava no seu interior, agora ainda com mais detalhes. E a Casa, curiosa, ouvia-o do outro lado do Campo da Torre e partilhava com ele o que via e ouvia, dentro e fora das suas paredes. Mas nenhum deles, ao longo de décadas, alguma vez revelou a terceiros os segredos que trocaram.

Eu bem tentei que Casa me contasse alguns, mas ela até hoje não me fez a vontade. Guardou para si tudo o que o Forte lhe contou, com o mesmo cuidado com que guardou e guarda os segredos de cinco gerações da família que a habita. Guardou para si as histórias dos presos e da cadeia, os pormenores da fuga de Janeiro de 1960, as conversas dos pides que passaram a abrigar-se junto a ela nas vigílias noturnas, as entradas e saídas das visitas dos presos e até a libertação deles depois do 25 de Abril de 1974.

A Casa soube, porque o Forte lhe disse, da preocupação dos presos e dos guardas quando receberam as primeiras notícias do golpe militar em Lisboa. Assistiu à chegada dos militares do RI10[1] de Aveiro no início da manhã de 25[2], convencidos que as forças do RAP3[3] e CICA2[4], que com eles e o RI14[5] constituam o “Agrupamento NOVEMBER”, já tinham tomado a cadeia do Forte.

Surpreendeu-se com a rapidez com que os feirantes desmontaram as bancas e as tendas da tradicional feira da última quinta-feira do mês no Campo da Torre, depois de terem recebido ordem para abandonarem o espaço em cinco minutos.

Testemunhou a surpresa do Tenente da GNR que comandava o destacamento responsável pela segurança da cadeia quando o comandante da companhia do RI10 bateu à porta e exigiu a rendição. Assistiu ao cerco do Forte pela força do CICA2, maioritariamente constituída por recrutas, depois da partida das restantes forças do agrupamento para Lisboa.

Mas quando lhe pedi que pelo menos me contasse a libertação dos presos políticos, a Casa e o Forte fecharam-se em copas e nada disseram. Se não fossem os dois amigos Carlos, o Machado dos Santos do lado dos “libertadores”[6] e o Saraiva da Costa do lado dos “libertados”[7], só muito dificilmente teria sabido os detalhes do que se passou no Forte naqueles dois dias.

No dia 25 de Abril de 1974 estavam 36 presos políticos no Forte. O “Carlos libertado” estava no pavilhão B, reservado aos presos políticos das organizações maoistas, da LUAR e oriundos das então colónias africanas. Às 8 horas da manhã do dia 25, ele e alguns dos seus companheiros notaram que o aparelho de rádio fora silenciado. “Uma avaria, já está a ser reparada", explicou o guarda de serviço ao pavilhão. O dia anunciava-se de grande tensão porque iam iniciar uma greve de fome de solidariedade com os presos de Caxias que se encontravam em luta contra as condições prisionais.

Por volta das 11 horas aperceberam-se que a RTP transmitia marchas militares e recearam um golpe militar do Kaúlza de Arriaga. Quando às 13 horas as visitas não foram autorizadas a entrar, insistiram junto do chefe dos guardas que acabou por confessar que ocorrera em Lisboa um levantamento militar, que o Governo de Marcello Caetano fora deposto e que foram detidos os principais responsáveis do regime. Atribuiu a direção do golpe militar a um tal MFA e ao general Spínola.

Receosos de serem utilizados como reféns, os presos políticos romperam o diálogo com as forças prisionais e ergueram barricadas. Exigiam a libertação imediata e por ela mantiveram-se barricados até cerca das 16 horas do dia 26.

A essa hora, na Cova da Moura[8], em Lisboa, o Coronel Vasco Gonçalves entrou no gabinete onde estavam os oficiais da Armada e pediu um voluntário para participar na libertação dos presos políticos do Forte de Peniche. O Capitão-tenente Machado dos Santos, o “Carlos libertador”, ofereceu-se para a missão e, com o Major Moreira de Azevedo, foi levado por Vasco Gonçalves à presença do General Spínola.

Spínola, depois de uma dissertação sobre as limitações que impunha à libertação dos presos − os que estivessem acusados de crimes tais como homicídio, assalto a bancos, falsificação de documentos, não seriam libertados − e de um murro na mesa depois do “Carlos libertador” o contrariar, ordenou que os dois oficiais partissem de imediato para Peniche, acompanhados de três advogados que resolveriam todas as questões jurídicas.

Feita a viagem no Mercedes do ex-Ministro da Defesa, o grupo chegou ao Campo da Torre por volta das 22 horas, onde cerca de um milhar de populares e de familiares dos presos os aplaudiram e criticaram por virem tarde. Bateram à porta do Forte e foram recebidos pelo tenente da GNR que comandava a guarnição que ali se manteve após a ocupação.

Quando se aperceberam que o comandante da força do Exército que tinha ocupado o Forte não se encontrava em condições de poder colaborar, substituíram-no pelo seu segundo numa espécie de tribunal que foi constituído no gabinete do Director da prisão: o “Carlos libertador” a presidir, o segundo da Companhia do Exército à sua esquerda e os três advogados nomeados por Spínola à sua direita.

Chamado o primeiro preso, o “Carlos libertador” fez sentir aos advogados que não estavam ali a fazer nada pelo que o processo de libertação avançou rapidamente até chegarem aos quatro presos acusados de crimes de sangue: Francisco Martins Rodrigues, João Pulido Valente e Rui d'Espiney, ligados à FAP (Frente de Acção Popular), por causa da execução de um informador da PIDE que os denunciara e Filipe Viegas Aleixo, envolvido no assalto ao paquete Santa Maria, na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961.

Depois de terem saído os presos ligados ao PCP, encarcerados nos outros pavilhões, os presos do pavilhão B, onde estava o “Carlos libertado”, decidiram unanimemente: "Ou saímos todos ou não sai ninguém!" E assim, de facto, aconteceu. Só depois de o “Carlos libertador” ter proposto que fosse lavrado um termo de responsabilidade, em papel timbrado da prisão e em triplicado, assinado por Moreira de Azevedo, Machado dos Santos e o advogado Macaísta Malheiros, que declarou que os três presos acusados de crimes de sangue permaneceriam na sua residência particular, em Lisboa, nos Olivais, aguardando decisão definitiva da Junta de Salvação Nacional, é que o processo de libertação foi concluído.

E foi assim que, já no dia 27, a Casa viu sair do Forte todos os restantes presos políticos para receberem o abraço inesquecível do povo de Peniche. E soube que o Tenente da GNR, antes do regresso do grupo a Lisboa no Mercedes ministerial, convidou os dois oficiais e os três advogados a atacar uma ceia de peixe acabado de chegar do mar e assado “in loco”, acompanhado pelos adequados complementos sólidos e líquidos.

A Casa e o Forte não souberam, mas eu soube porque o “Carlos libertador” contou, que no dia 27 à tarde, os dois oficiais do MFA foram à Cova da Moura procurar o General Spínola para relatarem a missão e colocarem a questão dos libertados condicionais.

Só encontraram o Almirante Rosa Coutinho, que tendo presenciado a cena da véspera e ao lhe ser apresentado o termo de responsabilidade de Macaísta Malheiro, nele escreveu e assinou um despacho de prescrição da custódia, enquanto dizia: “Sabem, isto está a andar muito mais depressa do que aquilo que se previa!”


[1] Regimento de Infantaria N.º 10 – Aveiro.

[2] CONTREIRAS, Carlos de Almada. Operação “Viragem Histórica” - 25 de Abril de 1974 (1ª Edição), pág. 287. Edições Colibri, 2017.

[3] Regimento de Artilharia Pesada N.º 3 – Figueira da Foz.

[4] Centro de Instrução de Condução Auto Nº 2 – Figueira da Foz.

[5] Regimento de Infantaria N.º 14 – Viseu.

[6] CONTREIRAS, Carlos de Almada. Operação “Viragem Histórica” - 25 de Abril de 1974 (1ª Edição), pág. 636. Edições Colibri, 2017.

[7] COSTA, Carlos Saraiva da. Os "últimos dias" de Peniche. Diário de Notícias, 27 Abril 2019 (https://www.dn.pt/poder/os-ultimos-dias-de-peniche-10838196.html).

[8] Palácio da Cova da Moura, sede da Junta de Salvação Nacional.

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