|
Foto
Ezequiel Santos |
Viu os presos de delito comum construírem os novos blocos
prisionais. Três pavilhões, o A, o B e o C, arquitectados a pensar nos presos
políticos. É verdade que outros prisioneiros já tinham passado pela fortaleza,
alemães e austríacos na Grande Guerra, portugueses com o Estado Novo. Mas agora
era uma cadeia a sério, de alta segurança.
O Forte, orgulhoso da sua nova condição, continuou a contar
à Casa tudo que se passava no seu interior, agora ainda com mais detalhes. E a
Casa, curiosa, ouvia-o do outro lado do Campo da Torre e partilhava com ele o
que via e ouvia, dentro e fora das suas paredes. Mas nenhum deles, ao longo de
décadas, alguma vez revelou a terceiros os segredos que trocaram.
Eu bem tentei que Casa me contasse alguns, mas ela até hoje
não me fez a vontade. Guardou para si tudo o que o Forte lhe contou, com o
mesmo cuidado com que guardou e guarda os segredos de cinco gerações da família
que a habita. Guardou para si as histórias dos presos e da cadeia, os
pormenores da fuga de Janeiro de 1960, as conversas dos pides que passaram a
abrigar-se junto a ela nas vigílias noturnas, as entradas e saídas das visitas
dos presos e até a libertação deles depois do 25 de Abril de 1974.
A Casa soube, porque o Forte lhe disse, da preocupação dos
presos e dos guardas quando receberam as primeiras notícias do golpe militar em
Lisboa. Assistiu à chegada dos militares do RI10
de Aveiro no início da manhã de 25,
convencidos que as forças do RAP3
e CICA2,
que com eles e o RI14
constituam o “Agrupamento NOVEMBER”, já tinham tomado a cadeia do Forte.
Surpreendeu-se com a rapidez com que os feirantes
desmontaram as bancas e as tendas da tradicional feira da última quinta-feira
do mês no Campo da Torre, depois de terem recebido ordem para abandonarem o
espaço em cinco minutos.
Testemunhou a surpresa do Tenente da GNR que comandava o
destacamento responsável pela segurança da cadeia quando o comandante da
companhia do RI10 bateu à porta e exigiu a rendição. Assistiu ao cerco do
Forte pela força do CICA2, maioritariamente constituída por recrutas, depois da partida
das restantes forças do agrupamento para Lisboa.
Mas quando lhe pedi que pelo menos me contasse a libertação
dos presos políticos, a Casa e o Forte fecharam-se em copas e nada disseram. Se
não fossem os dois amigos Carlos, o Machado dos Santos do lado dos
“libertadores” e o
Saraiva da Costa do lado dos “libertados”,
só muito dificilmente teria sabido os detalhes do que se passou no Forte
naqueles dois dias.
No dia 25 de Abril de 1974 estavam 36 presos políticos no Forte. O “Carlos libertado” estava no pavilhão B, reservado aos
presos políticos das organizações maoistas, da LUAR e oriundos das então
colónias africanas. Às 8 horas da manhã do dia 25, ele e alguns dos seus
companheiros notaram que o aparelho de rádio fora silenciado. “Uma avaria, já
está a ser reparada", explicou o guarda de serviço ao pavilhão. O dia
anunciava-se de grande tensão porque iam iniciar uma greve de fome de
solidariedade com os presos de Caxias que se encontravam em luta contra as
condições prisionais.
Por volta das 11 horas aperceberam-se que a RTP transmitia
marchas militares e recearam um golpe militar do Kaúlza de Arriaga. Quando às
13 horas as visitas não foram autorizadas a entrar, insistiram junto do chefe
dos guardas que acabou por confessar que ocorrera em Lisboa um levantamento
militar, que o Governo de Marcello Caetano fora deposto e que foram detidos os
principais responsáveis do regime. Atribuiu a direção do golpe militar a um tal
MFA e ao general Spínola.
Receosos de serem utilizados como reféns, os presos
políticos romperam o diálogo com as forças prisionais e ergueram barricadas.
Exigiam a libertação imediata e por ela mantiveram-se barricados até cerca das
16 horas do dia 26.
A essa hora, na Cova da Moura,
em Lisboa, o Coronel Vasco Gonçalves entrou no gabinete onde estavam os
oficiais da Armada e pediu um voluntário para participar na libertação dos
presos políticos do Forte de Peniche. O Capitão-tenente Machado dos Santos, o
“Carlos libertador”, ofereceu-se para a missão e, com o Major Moreira de
Azevedo, foi levado por Vasco Gonçalves à presença do General Spínola.
Spínola, depois de uma dissertação sobre as limitações que
impunha à libertação dos presos − os que estivessem acusados de crimes tais como homicídio, assalto a bancos, falsificação de documentos, não seriam libertados − e de um murro na mesa depois do
“Carlos libertador” o contrariar, ordenou que os dois oficiais partissem de
imediato para Peniche, acompanhados de três advogados que resolveriam todas as
questões jurídicas.
Feita a viagem no Mercedes do ex-Ministro da Defesa, o grupo
chegou ao Campo da Torre por volta das 22 horas, onde cerca de um milhar de
populares e de familiares dos presos os aplaudiram e criticaram por virem
tarde. Bateram à porta do Forte e foram recebidos pelo tenente da GNR que comandava a guarnição que ali se manteve após a ocupação.
Quando se aperceberam que o comandante da força do Exército que
tinha ocupado o Forte não se encontrava em condições de poder colaborar,
substituíram-no pelo seu segundo numa espécie de tribunal que foi constituído
no gabinete do Director da prisão: o “Carlos libertador” a presidir, o segundo
da Companhia do Exército à sua esquerda e os três advogados nomeados por
Spínola à sua direita.
Chamado o primeiro preso, o “Carlos libertador” fez sentir
aos advogados que não estavam ali a fazer nada pelo que o processo de
libertação avançou rapidamente até chegarem aos quatro presos acusados de
crimes de sangue: Francisco Martins Rodrigues, João Pulido Valente e Rui
d'Espiney, ligados à FAP (Frente de Acção Popular), por causa da execução de um
informador da PIDE que os denunciara e Filipe Viegas Aleixo, envolvido no
assalto ao paquete Santa Maria, na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961.
Depois de terem saído os presos ligados ao PCP, encarcerados
nos outros pavilhões, os presos do pavilhão B, onde estava o “Carlos
libertado”, decidiram unanimemente: "Ou saímos todos ou não sai
ninguém!" E assim, de facto, aconteceu. Só depois de o “Carlos libertador”
ter proposto que fosse lavrado um termo de responsabilidade, em papel timbrado
da prisão e em triplicado, assinado por Moreira de Azevedo, Machado dos Santos
e o advogado Macaísta Malheiros, que declarou que os três presos acusados de
crimes de sangue permaneceriam na sua residência particular, em Lisboa, nos
Olivais, aguardando decisão definitiva da Junta de Salvação Nacional, é que o
processo de libertação foi concluído.
E foi assim que, já no dia 27, a Casa viu sair do Forte
todos os restantes presos políticos para receberem o abraço inesquecível do
povo de Peniche. E soube que o Tenente da GNR, antes do regresso do grupo a
Lisboa no Mercedes ministerial, convidou os dois oficiais e os três advogados a
atacar uma ceia de peixe acabado de chegar do mar e assado “in loco”,
acompanhado pelos adequados complementos sólidos e líquidos.
A Casa e o Forte não souberam, mas eu soube porque o “Carlos
libertador” contou, que no dia 27 à tarde, os dois oficiais do MFA foram à Cova
da Moura procurar o General Spínola para relatarem a missão e colocarem a
questão dos libertados condicionais.
Só encontraram o Almirante Rosa Coutinho, que tendo
presenciado a cena da véspera e ao lhe ser apresentado o termo de responsabilidade
de Macaísta Malheiro, nele escreveu e assinou um despacho de prescrição da
custódia, enquanto dizia: “Sabem, isto está a andar muito mais depressa do que
aquilo que se previa!”