O romance de João de Melo "Livro de Vozes e Sombras" (Dom Quixote, 2020), descreve o ambiente do independentismo açoriano que conheci quando servi nos Açores entre 1975 e 1977. A corveta onde estava embarcado chegou a Ponta Delgada na véspera da manifestação de 17 de Novembro de 1975, em princípio uma reedição da de 6 de Junho. A informação que tínhamos era que a FLA tencionava declarar a independência hasteando a bandeira no palácio do governador. Depois de um Verão agitado no Continente, caímos de repente no centro do movimento independentista que estava muito activo em São Miguel e, especialmente, em Ponta Delgada.
Embora os activistas da FLA, ou do que resta dela, continuem a dizer que em Novembro saíram para a rua umas 15 mil pessoas (no 6 de Junho teriam participado 10 mil), os objectivos políticos não foram atingidos. A bordo da corveta estávamos preparados para usar as mangueiras de incêndio como dissuasor caso houvesse uma provocação, mas nada de extraordinário aconteceu para as bandas do porto de mar. Depois desta estreia atribulada, a agitação política em Ponta Delgada foi acalmando e conseguíamos fazer uma vida quase normal sempre que por lá passávamos. A guarnição tinha instruções para evitar dois cafés frequentados por gente da FLA, o Lys e o Royal, para evitar provocações e eventuais confrontos, mas de resto era possível movimentarmo-nos em Ponta Delgada sem qualquer restrição.
Acontece que João de Melo conta um episódio que apesar da advertência de “que não devam as personagens deste livro associar-se a pessoas reais, conhecidas ou não”, não pude deixar de reconhecer traços familiares no "Capitão de Abril" que foi sozinho ao “Café Milhafre, a dois passos da doca”, pedir aos da FLA o favor de lhe dizerem o que pretendiam dele. Em cerca de três páginas, João de Melo dá-nos conta de como os planos de expulsar um "Capitão de Abril" que era visto como a “personificação simbólica e maldita do domínio colonial” português, se desfizeram em poucos minutos, apenas porque os executores se viram confrontados, cara a cara, com a eventual vítima.
Não tenho qualquer dúvida que o autor se inspirou num episódio protagonizado por Salgueiro Maia e ocorrido em 1976 ou 77, quando nos encontrámos em Ponta Delgada, estava eu já embarcado numa outra corveta. Só não estou certo do local onde ocorreu mas julgo que o “Café Milhafre” terá sido o nosso conhecido Café Royal.
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