domingo, 14 de outubro de 2018

O combate



José Francisco Martins
(foto de 1921)

– Vi o projéctil cair e matar o Comandante, perto de mim!

Era assim, com frases curtas e poucas explicações, que o meu Avô se referia ao combate do “Augusto de Castilho” com o cruzador submersível alemão U-139, na madrugada do dia 14 de Outubro de 1918, a cerca de 170 milhas a SE da ilha de Santa Maria. O que para mim era fascinante, para o meu Avô era desagradável. Não gostava de lembrar o combate, e quando o fazia, pressentia nas suas palavras um misto de mágoa e revolta. Com o tempo percebi que aquele momento, o momento da morte do Comandante, o tinha marcado profundamente. Não só pela morte do Comandante Carvalho Araújo, mas também pelas suas circunstâncias e consequências.

O combate de mais de duas horas com o U-139 tinha terminado. O paquete “San Miguel” estava fora do alcance do submarino alemão, a peça de vante irremediavelmente avariada e as munições praticamente esgotadas. Tinha chegado o momento do Comandante se preocupar com a vida dos seus homens. Deu ordem de cessar-fogo e mandou arriar as embarcações para que a guarnição abandonasse o navio. O U-139 também interrompeu o fogo de artilharia contra o “Augusto de Castilho” e aproximava-se para a tradicional abordagem do arrastão da pesca do bacalhau adaptado a navio de guerra.

De repente, da peça de 47 mm de ré do “Augusto de Castilho” foi feito fogo sobre o submersível alemão. Em resposta, o U-139, a uma distância mais reduzida do que a que mantivera durante todo o combate, disparou uma nova salva de projécteis de 150 mm contra o “Augusto de Castilho”. Um deles atingiu mortalmente o Comandante Carvalho Araújo, que tombou a poucos metros do 2º artilheiro Martins.

Três anos antes, ninguém poderia prever que os destinos destes dois homens se cruzariam de forma tão dramática no meio do Atlântico. É certo que ambos tinham raízes em Trás-os-Montes, um em Vila Real e o outro em Chaves, mas essa parecia ser a única afinidade entre eles.

Quando o futuro 2º artilheiro José Francisco Martins nasceu na casa da avó materna em Chaves, já o cadete José Botelho de Carvalho Araújo tinha frequentado os preparatórios na Academia Politécnica do Porto e ingressado na Escola Naval. E enquanto o jovem José Francisco se fazia homem como marçano nas ruas de Lisboa, trabalhando na mercearia e na casa do patrão, subindo escadas de cabaz às costas para entregar produtos aos fregueses e estudando para ser empregado de comércio, o Tenente Carvalho Araújo, republicano convicto, maçon e livre-pensador respeitador dos direitos dos cidadãos, cumpriu uma carreira brilhante como oficial da Armada, esteve na preparação do 5 de Outubro de 1910, foi eleito deputado por Vila Real à Assembleia Constituinte da República, foi deputado do Congresso da República Portuguesa e fez parte da coluna expedicionária ao sul de Angola.

Em 1916 o José Francisco Martins decidiu que queria ir mais longe e assentou praça na Marinha de Guerra como voluntário. Atirador de 1ª classe, recebeu formação militar naval e instrução de artilharia até se apresentar a bordo do “Augusto de Castilho” no último dia de 1917, como 2º artilheiro. Enquanto isto, o Tenente Carvalho Araújo comandou um caça‑minas na defesa do porto de Lisboa e foi Governador do Distrito de Inhambane, em Moçambique, até ser nomeado para o comando do “Augusto de Castilho” em Agosto de 1918.

Presumo que o 2º Artilheiro Martins terá visto o 1º Tenente Carvalho Araújo entrar a bordo, terá conversado com outros elementos da guarnição sobre o novo Comandante, terá notado a fragilidade física resultante do seu estado de saúde. E estou certo que a partir daquele momento, o Tenente Carvalho Araújo passou a ser o seu Comandante, aquele a quem devia total obediência na defesa da Pátria, mesmo com o sacrifício da vida. Já por duas vezes, como artilheiro do “Augusto de Castilho”, tinha lutado contra submarinos alemães e era provável que tivesse de voltar a lutar dadas as missões de escolta normalmente atribuídas ao navio.

Embora só tenha servido dois meses sob o seu comando, o 2º artilheiro Martins foi consolidando admiração e respeito pelo Comandante Carvalho Araújo. Ouvi-o mais tarde afirmar por diversas vezes que o comportamento do Comandante foi sempre exemplar, em especial durante o combate com o U‑139.

Sobre o combate e a bravura do Comandante e da guarnição do “Augusto de Castilho” há também outros testemunhos claros e coerentes e sobre eles não persiste qualquer dúvida. No caso particular dos seis artilheiros do navio, houve quem afirmasse que se distinguiram, “entre toda a guarnição, pela energia, sangue frio e disciplina que mostraram durante todo o combate, não temendo abrir as culatras das peças ao falharem as escorvas, a fim de não haver interrupção no tiro”.

De facto, há precisamente 100 anos, um grupo de quase meia centena de portugueses cumpriu o seu dever em condições extremamente adversas, com o sacrifício da vida de alguns: do próprio Comandante, de outros cinco militares e de um civil. Antes de qualquer outra consideração, é o esforço e o exemplo da guarnição do “Augusto de Castilho” e a forma como cumpriu uma missão quase impossível nas condições extraordinariamente precárias do navio, que é importante realçar.

Mas a morte do Comandante Carvalho Araújo e as circunstâncias em que ocorreu, acabaram por influenciar a forma como a maioria dos participantes e sobreviventes do combate, e até o próprio Comandante Carvalho Araújo, foram depois tratados. Na narrativa que acabou por ser consagrada oficialmente e que sustentou a atribuição de condecorações e as promoções por distinção de alguns, parece que o heroísmo se concentrou nos doze elementos da guarnição que aportaram numa embarcação à Ponta de Arnel, no nordeste de São Miguel. Os outros, os que chegaram a Santa Maria no salva‑vidas do navio, foram transformados em participantes menos corajosos e pouco disciplinados, em figurantes menores de uma “narrativa trágico-marítima” com muita pompa mas circunstância pouco clara. 

Salva-vidas com os sobreviventes que arribaram à Vila do Porto, em Santa Maria

Foi assim que percebi o porquê do meu Avô, que se reformou em 1956 no posto de 1º Tenente, não gostar de falar do combate do “Augusto de Castilho”. Entendia que a história oficial do combate não era rigorosa e que ele e os outros vinte e nove sobreviventes que aportaram a Santa Maria no salva-vidas não foram tratados pela Marinha e pelo Estado Português com justiça.

Mas o carácter e a vida dura blindaram-no contra todas as injustiças e traições, viessem de onde viessem. Soube ultrapassá‑las e concentrar o seu melhor no que para ele era essencial: a dignidade e a honradez pessoal, o cumprimento do dever profissional e o bem-estar da família e dos muitos que procurou ajudar. Teria no entanto gostado de saber que em Janeiro de 1974, dois anos despois da sua morte, o Estado Português reconheceu que o 1º Tenente auxiliar da Armada José Francisco Martins se “notabilizou no combate naval travado em 14 de Outubro de 1918, na defesa do paquete “San Miguel”, e por isso concedeu à sua viúva “a pensão por serviços excepcionalmente prestados ao País.”

O que os homens comandados pelo Comandante Carvalho Araújo conseguiram na madrugada de 14 de Outubro de 1918 foi bem real e prevalece sobre todas as ficções, as boas e as más. Sem o esforço e o sacrifício daquele punhado de homens, a Margarida da Terra Clark Dulmo, ilustre tataraneta do capitão Fernão Dulmo, fidalgo da casa do Infante D. Henrique, e uma bela criação de Nemésio, não teria viajado no “San Miguel”, conhecido o estudante de Coimbra e atirado ao mar o anel da serpente cega.

O combate com o U-139 não foi o combate de um homem nem de doze homens. Foi o combate com honra, para defender um paquete com mais de duas centenas e meia de pessoas a bordo, de todos os homens que estavam no “Augusto de Castilho” na madrugada do dia 14 de Outubro de 1918. Foi o combate levado a cabo por 45 militares e 4 civis, cada um com as suas qualidades e os seus defeitos, as suas forças e as suas fraquezas, as suas dúvidas e as suas certezas.

Cem anos depois, os descendentes de um deles, o 2º Artilheiro nº 5242 José Francisco Martins, sentem um imenso orgulho pelo seu feito e pelo seu extraordinário legado. E farão tudo para que o Pai, Avô, Bisavô e Trisavô, esteja onde estiver, se sinta orgulhoso deles.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

No tempo das vindimas

 


As longas férias de Verão na casa dos meus avós em Palhais, uma aldeia do concelho do Cadaval, marcaram para sempre a minha adolescência. Das muitas e boas memórias, a do tempo das vindimas tem um significado especial.

De repente, quando o amadurecimento das uvas o determinava, a pacatez da aldeia era alterada pela invasão de grupos de trabalhadores, os “malteses”, que vinham procurar o trabalho e o rendimento que faltava nas suas terras. Animavam as estradas, as vinhas, as adegas até que a vindima estivesse concluída. No fim do dia juntavam-se no largo, nas tabernas e encantavam os miúdos com as suas histórias e os seus cantos. Até que um dia abalavam tão súbita e discretamente como tinham chegado.

Lembro-me bem da apanha dos cachos na vinha grande, do pisar das uvas no lagar da adega do meu avô, do cheiro do mosto e da festa quando terminava a trasfega para as pipas e os depósitos. Lembro-me bem de como era diferente a vida durante aquelas semanas. E lembro-me bem do Baile das Vindimas no Cadaval, uma espécie de cerimónia de encerramento de um período de grande agitação.

O Baile das Vindimas era diferente de todas as outras festas nas aldeias e vilas à volta. Vestíamo-nos a preceito, raparigas e rapazes, e íamos para o baile na garagem e oficina de automóveis ACICAL na entrada do Cadaval, transformada em salão de festas. O baile era animado por conjuntos musicais conhecidos, muitas vezes vindos de Lisboa como foi o caso da orquestra de Shegundo Galarza, e pelas suas características acabava por ser um momento iniciático para os jovens, vivessem eles na região ou, como era o meu caso, viessem de fora.

O momento alto era a eleição da Rainha das Vindimas e houve um ano em que quase conseguimos eleger uma das meninas de Palhais. E parece que num dia de 1973, de que não me lembro por já estar noutra onda, foi eleita Miss Rainha do Oeste uma miúda de nome Manuela Moura Guedes que ali foi apresentada à sociedade. As voltas que o mundo dá!

Contudo, lembro-me bem do Baile das Vindimas de 1968, abrilhantado pelo conjunto “Os Távoras” do Bombarral, formado por Mário Almendro, Luís Mil-Homens, Fernando Vieira, Feliz Pereira, Zé Teixeira, Carlos Cardoso e Manuel Patuleia, porque foi para mim mais do que o fecho de um ciclo anual. Foi o fecho de uma fase da vida em que as questões sociais e políticas passavam muitas vezes despercebidas. Com a entrada no Técnico, o contacto com o movimento estudantil e a vivência da crise académica de 1968/69, passei a olhar a realidade nacional de forma diferente.


Por isso, a memória da garagem ACICAL na entrada do Cadaval, em Outubro de 1969, já não é do Baile das Vindimas. Estávamos em plena campanha eleitoral para as primeiras eleições legislativas depois da saída de cena de Salazar e a memória que tenho é de uma sessão de propaganda eleitoral da CEUD naquele espaço. A CEUD fez um bom trabalho no Cadaval onde, de acordo com os resultados oficiais, obteve 170 votos, enquanto a CDE obteve 78 e a CEM (monárquicos) 25. Claro que a UN obteve 3365 votos!
 
Apesar de tudo, não deixa de ser uma memória de outro momento iniciático.