Ressalvando as especificidades das sociedades e dos sistemas políticos e constitucionais dos vários países, o que ocorreu nos EUA não pode deixar de ser uma fonte de reflexão para os democratas que se preocupam com as manifestações, em Portugal e no resto da Europa, da cada vez mais pujante “serpente” da intolerância e do autoritarismo antidemocrático.
Não podemos ignorar que o discurso populista de Trump e da sua corte tirou partido da revolta dos trabalhadores e da classe média norte-americana contra a forma como as elites políticas têm exercido o poder, em especial a partir da década de 1980. E que neste lado do Atlântico grassa o mesmo discurso populista entre os apoiantes da extrema-direita, alegadamente contra as mesmas práticas das elites políticas europeias.
Nas primeiras décadas do século passado, o totalitarismo impôs-se à sociedade, de cima para baixo, pela obediência à ideologia oficial de um Estado comandado por um chefe carismático, com um sistema de partido único e sindicatos corporativistas. Hoje, o capitalismo autoritário volta a tentar levar as pessoas à apatia, à obediência passiva e à despolitização; promete-lhes crescimento económico, concede-lhes a liberdade privada de comprar e vender e elimina ou restringe as liberdades públicas de mobilizar, participar e agir.
Assistimos de novo à atracção por regimes incompatíveis com a democracia formal ou liberal porque a democracia foi sendo corroída pela insegurança social, por políticas fortemente condicionadas pelo poder e pela ganância do sistema financeiro e do capitalismo globalizado, pelas desigualdades na distribuição da riqueza, pela assimetria de rendimentos, pela pobreza e suas consequências, pelas migrações políticas e económicas e pelo imobilismo partidário e sindical.
Reconheço que é difícil defender a democracia liberal com entusiasmo quando ela funciona tão mal e não dá respostas às preocupações dos cidadãos. E é ainda mais difícil quando a comunicação social e as redes sociais se tornaram um veículo poderoso de actuação dos populistas, guarda avançada dos defensores do capitalismo autoritário e inimigos da democracia representativa.
Formadores de opinião e políticos demagogos de verbo fácil, muitas vezes reduzido a meia dúzia de ideias e palavras, vão criando a ideia de um futuro de prosperidade se aceitarmos, desejavelmente por via eleitoral, um Estado economicamente austero, politicamente autoritário e ideologicamente nacionalista.
E quem governará esse Estado? As elites tecnocratas formadas na burocracia internacional, os proprietários e dirigentes das grandes empresas e os quadros das instituições financeiras. No fundo, os mais capazes de implantar o capitalismo autoritário como alternativa à democracia liberal.