sábado, 29 de outubro de 2016

Capitalismo autoritário



Com a queda do muro de Berlim e sobretudo com a crise financeira de 2008, o debate ideológico entre o socialismo soviético e o liberalismo europeu foi perdendo relevância e para muitos, entre os quais me incluo, é cada vez mais uma curiosidade histórica. Com a globalização, diversos elementos daquelas duas concepções antagónicas da sociedade convergiram para um novo paradigma que muitos designam por capitalismo autoritário (authoritarian capitalism).

Trata-se do modelo de sociedade que foi testado com violência no Chile de Pinochet e na Argentina de Videla, e que se caracteriza por ser autoritário na política, capitalista na economia e nacionalista na ideologia. Hoje, depois de convenientemente reciclado pela banca, pelos mercados, pelo poder financeiro mundial, de tal modo que um economista americano já o designou de mercantilismo autoritário, renasceu pujante e mostra-se como o mais sério inimigo da democracia liberal. Para além das ocorrências na Rússia de Putin, na China de Xi Jinping ou na Hungria de Orban, ganha força em países com tradição democrática como a França, com Le Pen, ou a América, com Trump.

É certo que a democracia liberal prevalece em muitas paragens do mundo, mas na Europa, para além da expansão do capitalismo autoritário, estamos a assistir ao recuo perigoso de uma outra ideologia baseada na democracia liberal. Uma ideologia com contornos doutrinários difusos, mas com fortes preocupações sociais, que esteve na origem e permitiu o sucesso, durante décadas, do modelo social europeu e do Estado social que o consubstanciou.

Convém recordar que o Estado social, na minha opinião uma das maiores conquistas da humanidade, não é um conceito ideológico da esquerda ou da direita política. Foi a forma da Europa, e em particular dos países com um elevado grau de responsabilidade social e confiança nas instituições, concretizar o que foi consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Declaração que no seu artigo 25º diz expressamente que “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.”
 
O Estado social existe assim na Europa para assegurar o bem-estar dos cidadãos, o mesmo bem-estar que é referido no artigo 9º da nossa Constituição quando diz que é uma tarefa fundamental do Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.” O Estado social representa para o cidadão europeu um seguro social assente em dois pilares: a solidariedade entre cidadãos e a sustentabilidade do próprio sistema.

Mas desde os tempos da célebre proclamação da Sra. Thatcher no final da década de 80 segundo a qual “there is no such thing as society, there are individual men and women, and there are families,” que assistimos à erosão da confiança no Estado social. Desde então, e em particular na última década, o Estado social tem sofrido um intenso cerco ideológico favorável ao individualismo e contrário à solidariedade social, e a sua estrutura tem sido abalada pela ganância do sistema financeiro e do capitalismo mundial, pelas limitações do crescimento económico e da demografia, pelas desigualdades na distribuição da riqueza, pela assimetria de rendimentos, pela pobreza e suas consequências, pelas migrações políticas e económicas.
 
Na sequência das políticas nacionais e europeias fortemente condicionadas pelo poder financeiro mundial e pelo imobilismo partidário e sindical, um número cada vez maior de cidadãos europeus descrê da capacidade do Estado social assegurar a segurança na infância, na educação, no emprego, na doença, na justiça, na velhice, na protecção da sua própria vida e dos seus bens. A segurança foi gradualmente substituída pela insegurança, o bem-estar foi substituído pelo mal-estar social. E as dúvidas sobre a viabilidade, a sustentabilidade e até a necessidade do Estado social fortaleceram também a atracção pelo capitalismo autoritário, regime que é encarado por muitos europeus como alternativa a uma democracia que consideram doente.

Neste contexto, para os que como eu sonham com a liberdade e uma democracia saudável e robusta para as filhas e os netos, o debate ideológico deixou há muito de ser entre direita e esquerda, entre socialismo e liberalismo. A única luta ideológica e concreta que ainda me interessa e entusiasma é a oposição ao capitalismo autoritário e a defesa de um Estado social responsável e adaptado às novas circunstâncias económicas, sociais e políticas. A defesa de um Estado social que sirva o interesse público e o bem comum na educação, na justiça, na saúde, na segurança social, que contrarie o princípio da igualdade incondicional, que elimine direitos injustificáveis, mas supostamente adquiridos para sempre, interesses corporativos inaceitáveis, desperdícios e redundâncias insustentáveis.