segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Nem oito nem oitenta

  
 
Tenho grande admiração pelo saber e pela capacidade que Fernão de Magalhães demonstrou quando planeou a viagem às Molucas e obteve os meios para a fazer, quando insistiu prosseguir para sul até encontrar a passagem no extremo meridional do continente americano e quando atravessou o Pacífico sem nada saber sobre os ventos, as correntes, a navegação naquele oceano. Apesar de se desconhecer o que Magalhães tinha em mente para o regresso das Molucas, a viagem até às Filipinas foi uma realização espantosa, demonstrando ser um dos maiores navegadores e exploradores da História e, por isso, um excelente exemplo para os jovens de hoje.

No entanto tenho por vezes a sensação que relativamente a Magalhães passámos do oito para o oitenta, que passámos do português desprezado que traiu a pátria para o génio sem mácula ou incapaz de errar. Na verdade Magalhães tomou decisões que são difíceis de explicar e do ponto de vista dos resultados pretendidos, a viagem que planeou pode ser considerada um fracasso: a rota que defendeu para o comércio das especiarias acabou por não ter aproveitamento e em poucos anos foi esquecida.

Das decisões que tomou, a navegação no Atlântico é uma das que têm suscitado mais debates. Apesar das instruções do rei para se dirigir para as Molucas sem “nenhuma deficiência”, ou seja, sem perder tempo e pela rota mais rápida, a partir das Canárias Magalhães optou pela rota de Vasco da Gama, o que provocou um atraso significativo que acabou por ter um impacto negativo no desenrolar da viagem. Depois de regressar da Índia, Gama deu instruções a Pedro Álvares Cabral para que a viagem fosse mais rápida, nomeadamente: "velejar directamente para a ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, sem precisar nela tocar, no caso de ter água suficiente para quatro meses, e dali navegar com os alísios NE à proa, para o Sul e, se tivesse necessidade de guinar, fosse para Sudoeste". Ao navegar para sudeste, passando entre Cabo Verde e o continente africano, em vez de seguir a rota de Cabral, perdeu tempo e teve de reduzir as rações de vinho e de água, o que criou descontentamento entre os tripulantes das naus. Magalhães sujeitou-se às calmarias que os portugueses já sabiam evitar e só alcançou a zona do actual Rio de Janeiro 84 dias depois de deixar a Europa. Cabral, em 1500 e partindo de Lisboa, só precisou de 44 dias para chegar à mesma zona.

Depois disso gastou muito mais tempo do que pareceria razoável a inspeccionar toda a costa até ao Estreito. Magalhães precisou de 14 semanas para chegar a Porto São Julião, num trajecto que uns anos mais tarde Elcano fez em cinco. Há por isso quem seja da opinião que os 13 meses que Magalhães gastou no Atlântico até alcançar o estreito, com a consequente fome e miséria e com todos os problemas com as guarnições das naus, terão comprometido seriamente ou terão mesmo sido fatais para o sucesso da expedição.

Nunca saberemos as verdadeiras razões de Magalhães porque era muito reservado na divulgação dos seus planos (os capitães e pilotos queixaram-se que só os revelava com 24 horas de antecedência), mas uma hipótese possível seria que estivesse a avaliar a forma de assegurar o seu próprio lucro e futuro, assim como o lucro de Cristóbal de Haro, um banqueiro e comerciante de Burgos que desempenhou um papel fulcral na organização e financiamento da viagem. A escolha de uma rota de travessia do Atlântico muito a sul e a inspecção cuidada das costas da América do Sul, podem ter tido a ver com os planos para tomar posse dessas terras de acordo com o celebrado com Carlos I e com um eventual tráfego de escravos de África, em sociedade com Cristóbal de Haro.

Seja como for e quaisquer que tenham sido as razões do atraso, até nos aparentes fracassos Magalhães é uma personagem interessante. 
  
 
Em tempo:
 
Um leitor deste texto comentou que o que Fernão de Magalhães fez foi extraordinário e de imensa coragem e que especular sobre hipotéticas intenções sem verdadeiro contraditório, e daí criar má impressão dele, não é correcto. 

Naturalmente que nunca foi minha intenção criar má impressão de Fernão de Magalhães. Escrevi que foi um dos maiores navegadores e exploradores de todos os tempos, capaz de desafiar tudo e todos para realizar o impossível, mas entendo que as suas acções devem ser interpretadas à luz da realidade da sua época e não dos valores e princípios do presente. 

Em 1503, Cristóbal de Haro era um comerciante de especiarias em Lisboa e os seus navios transportavam escravos da África Ocidental para as Antilhas. À época o tráfego de escravos era uma actividade normal, legal e muito rentável. Haro trocou Lisboa por Sevilha quando em 1517 seis dos seus navios negreiros foram afundados por um pirata português e o rei de Portugal não aceitou indemnizá-lo. Em Sevilha, teve um papel central na preparação e financiamento da viagem de Magalhães com quem certamente terá estabelecido um acordo comercial. 

Em 1525, Elcano repetiu como piloto, sob o comando de Loaysa, a viagem de Fernão de Magalhães, de novo organizada e financiada por Haro. Loaysa recebeu ordens para repetir a viagem de Magalhães, evitando os seus erros. Ainda assim Elcano e Loaysa voltaram a cruzar o Atlântico perto do equador, até um pouco mais a sul. Dada a insistência nesta rota, julgo que é legítimo especular que Haro, em associação com Magalhães e depois Loaysa, quisesse investigar a possibilidade de uma travessia ao sul do Equador que evitasse as rotas portuguesas usuais e permitisse o tráfego mais directo de escravos da Nigéria e das bacias do Congo para as terras da América do Sul atribuídas a Castela pelo tratado de Tordesilhas e descobertas por Magalhães. 

Quanto ao desejo de posse dessas terras por parte de Magalhães, penso que não se trata de especulação, decorre do acordo que Carlos I fez com o navegador.

3 comentários:

  1. Obrigado pela divulgação. Não conhecia estes, detalhes!

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  2. Respostas
    1. Fico satisfeito por ter apreciado estas divagações. Foram escritas a pensar nas conversas que iria ter com jovens para comemorar os 500 anos da viagem de Fernão de Magalhães, mas que foram inviabilizadas pelas restrições sanitárias.

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