Os cadetes davam os primeiros passos da formação militar e naval na
Escola Naval. Sabe‑se lá porque estranhas razões, cinquenta e um jovens
decidiram juntar-se num austero edifício na mata do Alfeite. Vieram dos
locais mais díspares, do nordeste transmontano às terras moçambicanas.
Se alguém tivesse calculado a probabilidade de cada um deles se
encontrar com os outros cinquenta, teria concluído que era inferior à de
sair o jackpot do Euromilhões! Mas apesar da baixíssima probabilidade
da ocorrência, ali estavam num novo mundo, a aprender a conviver uns com
os outros. Havia de tudo: os altos e os baixos, os gordos e os magros,
os militarões e os paisanos, os vivaços e os tímidos, os brincalhões e
os alvos das brincadeiras.
De entre os ingénuos, houve um que se destacou logo no primeiro dia
das provas de ingresso, quando pediu ao candidato sentado na carteira da
frente que o deixasse copiar as respostas aos testes psicotécnicos.
Depois, no mês de instrução militar básica, passou a ser a vítima de
muitas das partidas. Por exemplo, quando o comandante de companhia
pernoitava na Escola Naval como oficial de serviço, o candidato
acordava-o a meio da noite, ansioso, só porque os brincalhões do costume
passavam o serão a convencê-lo que tinha sido excluído pelas razões
mais estapafúrdias. As alvoradas prematuras do oficial de serviço tinham
naturalmente consequências para o pobre candidato que, para além da
chacota dos pares, sofria as represálias do oficial, em regra
consubstanciadas numa multa convertida em bebidas do bar. Mas apesar dos
percalços, o candidato atingiu finalmente a honrosa condição de cadete.
As semanas dos cadetes eram passadas com aulas teóricas e práticas,
educação física, ordem unida, desporto, estudo e o que já esqueci, tudo o
que servisse para ocupar um grupo de jovens habituados a tudo menos ao
regime intensivo de uma escola militar. Mas como aquilo era Marinha,
tinham de ir mais longe. E nada seria melhor que ocupar um ou outro fim
de semana com embarques no draga-minas Ribeira Grande, a navegar entre o
Alfeite e Setúbal, para habituar os estômagos mais sensíveis ao
balanço. O Ribeira Grande era um navio velho, construído em 1957 nos
estaleiros da CUF (atual NavalRocha) a partir de planos ingleses e não
primava pela habitabilidade. Os espaços exíguos e as péssimas condições
de navegabilidade propiciavam o tratamento de choque dos cadetes nos
primeiros contactos com o mar.
Logo que foi anunciado o primeiro embarque, os brincalhões do costume
vislumbraram uma excelente oportunidade para uma nova partida:
decidiram convencer o nosso cadete de que era possível embarcar num
navio moderno desde que fosse apresentada oficialmente uma razão
ponderosa que desaconselhasse o velho draga-minas. E se bem o pensaram,
melhor o concretizaram. Depois de devidamente industriado pelos
camaradas, o cadete foi falar com o “penico” (o mais antigo do curso),
pedindo conselho sobre a entrega do requerimento que tinha preparado.
Pensava entregá-lo na secretaria do Comando, o que o “penico” percebeu
logo ser arriscado para o camarada. Convenceu-o a fazê-lo através do
comandante de companhia, assim como assim o oficial já estava habituado
aos desvarios do cadete.
E foi assim que em plena formatura para o almoço, o “penico” pediu
autorização ao comandante de companhia para que o cadete lhe fizesse a
entrega formal de um requerimento. O oficial anuiu e recebeu uma folha
de papel almaço azul de 25 linhas, manuscrita e conforme os preceitos
legais da época, onde o cadete requeria respeitosamente ao Senhor
Comodoro Comandante da Escola Naval que o autorizasse a realizar o
embarque de fim de semana numa das então modernas fragatas da classe
“João Belo”, dado que não podia embarcar no Ribeira Grande por sofrer de
… claustrofobia!
Não me recordo da extensão exata do castigo decretado pelo comandante
de companhia mas estou certo que se traduziu numa conta calada no bar
do refeitório. Quanto ao famoso requerimento, julgo que está algures
entre os papéis que coleccionei na Escola Naval.
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