Aníbal Jardim Bettencourt (1924–2015) emerge como uma figura central na agronomia tropical portuguesa do século XX, cuja vida e obra se dedicaram integralmente à salvaguarda de uma das culturas economicamente mais importantes a nível global: o cafeeiro. A sua carreira desenvolveu-se num período de intensa mobilização científica portuguesa, impulsionada pela necessidade de combater a ameaça fitopatológica mais grave que pairava sobre a produção mundial de Coffea arabica: a ferrugem alaranjada, causada pelo fungo biotrófico Hemileia vastatrix.
A obra de Aníbal Jardim Bettencourt está intrinsecamente ligada ao Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), uma instituição de vanguarda criada em Portugal para responder a esta crise. O trabalho do engenheiro agrónomo transcendeu as fronteiras nacionais, focando-se na pesquisa fundamental e aplicada de mecanismos de resistência genética, essenciais para garantir a sustentabilidade da cultura em regiões tropicais, especialmente após a detecção e expansão da doença em África e, posteriormente, nas Américas.[1] A sua actuação representou um esforço coordenado da ciência portuguesa em resposta a uma vulnerabilidade agrícola de alcance transnacional.
Necessidade de Rigor Biográfico e Distinções
Dada a recorrência de nomes em círculos académicos portugueses, é fundamental estabelecer a identidade e o foco do indivíduo em análise. Este estudo dedica-se exaustivamente ao engenheiro agrónomo Aníbal Jardim Bettencourt, nascido em 1924 em Moçambique, geneticista e investigador principal do CIFC-IICT.[2]
É imperativo distinguir esta figura central da agronomia tropical de um homónimo anterior, o Professor Aníbal Bettencourt (sem o "Jardim"), que foi uma figura proeminente na medicina e veterinária portuguesa da primeira metade do século XX. O Professor Aníbal Bettencourt foi professor catedrático de Parasitologia e Patologia Exótica na Escola Superior de Medicina Veterinária, chefe de serviço do Instituto de Agronomia e Veterinária, e participou em missões para o estudo da bilharziose.[3] Embora ambos estivessem ligados às ciências agrárias e tropicais, o foco do Professor Aníbal Bettencourt (medicina) e o do Doutor Aníbal Jardim Bettencourt (genética do cafeeiro) são distintos. A confusão de identidades seria um erro de escopo que comprometeria a análise da sua contribuição única para o melhoramento genético.[3, 4] O Agrónomo, que é o objecto deste estudo, pertence à geração subsequente e concentra o seu legado no combate à Hemileia vastatrix
Percurso Biográfico e Carreira Institucional em Moçambique (1924–1959)
Formação Académica e Início da Carreira
Aníbal Jardim Bettencourt nasceu em Moçambique em 1924, o que estabeleceu a base para a sua profunda ligação com os desafios da agricultura tropical.[2] Para a sua formação superior, deslocou-se para Portugal, onde obteve o grau de Engenheiro Agrónomo e, posteriormente, o título de Doutor em Agronomia, ambos pelo Instituto Superior de Agronomia (ISA) de Lisboa.[2] O ISA, situado na Tapada da Ajuda, tem sido historicamente um centro de excelência no desenvolvimento e difusão do saber tropical em Portugal.[5]
Experiência Prática na Direcção de Agricultura e Florestas
O início da sua carreira profissional ocorreu no Ultramar, onde trabalhou na Direcção de Agricultura e Florestas de Moçambique durante dez anos, de 1949 a 1959.[2] Este período foi determinante, pois coincidiu com um grande impulso no desenvolvimento económico e agrícola das colónias portuguesas.
Durante a década de 1950, Aníbal Jardim Bettencourt ascendeu a cargos de elevada responsabilidade. Entre 1951 e 1959, exerceu as funções de Chefe da Repartição de Agricultura e Florestas e, por acumulação, actuou como Delegado da Junta de Exportação do Café, ambos em Moçambique.[2] Nesta função operacional, a sua actividade concentrou-se no desenvolvimento da cultura cafeeira local, que incluía tanto o C. arabica como o C. racemosa, e na implementação de estações experimentais.[2]
A sua experiência em Moçambique terminou com um revés que influenciou significativamente a trajectória subsequente. O seu testemunho documenta um estado de profunda desilusão e mesmo "depressão" após a notícia do fim da cultura do café em Moçambique.[2] Esta interrupção abrupta dos projectos e das actividades que coordenava, em consequência de decisões administrativas e políticas do poder colonial, sugere que a sua posterior transição para a investigação pura e fundamental no CIFC não foi apenas uma progressão de carreira, mas uma reorientação estratégica, permitindo-lhe procurar soluções científicas permanentes (genética e fitopatologia) que pudessem transcender a instabilidade e as decisões políticas do tempo colonial. A sua base de conhecimento prático em Moçambique, contudo, forneceu o contexto indispensável para a sua posterior actividade de investigação no CIFC.
A Fundação Científica: O Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC)
Transição para a Investigação Especializada
Em 1960, Aníbal Jardim Bettencourt iniciou a fase mais decisiva da sua carreira, voltada inteiramente para a investigação especializada. Iniciou um estágio no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), uma unidade de investigação de elite da Junta de Investigações do Ultramar.[2]
O CIFC era um polo de excelência em fitopatologia e genética tropical, fundado pelo Professor Branquinho d'Oliveira para enfrentar a ameaça da ferrugem. Após o estágio, Aníbal Jardim Bettencourt foi integrado na equipa, trabalhando em comissão de serviço como funcionário do Instituto do Café de Angola.[2] O modelo de financiamento do CIFC, assegurado pela Junta de Investigações do Ultramar e, notavelmente, pelo Instituto do Café de Angola [2], revela a estratégia geopolítica subjacente à investigação portuguesa: a ciência metropolitana era directamente instrumentalizada para proteger os interesses económicos e a produção ultramarina de café contra pragas devastadoras.
Carreira Pós-Colonial e Aposentação
Após as mudanças políticas de 1974–1975 e o fim do Império Português, a maioria das estruturas de ciência tropical foi reestruturada. Em 1975, Aníbal Jardim Bettencourt integrou o quadro de pessoal da Junta de Investigações Científicas do Ultramar (JICU), que evoluiu para o Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT).[2]
A sua permanência e ascensão no IICT demonstram a importância crítica do CIFC e da sua experiência especializada. Os seus conhecimentos em fitopatologia e genética aplicada eram demasiados valiosos para serem desperdiçados. Continuou a sua carreira como Investigador Principal do CIFC-IICT a partir de 1983, aposentando-se em 1992 como Investigador Coordenador.[2]
A Obra Científica Central: Especialização Fisiológica e Mecanismos de Resistência
A obra científica de Aníbal Jardim Bettencourt no CIFC concentra-se na fitopatologia e no melhoramento genético, com o objectivo singular de conferir resistência duradoura ao cafeeiro (Coffea spp)* contra a Hemileia vastatrix.
O Diagnóstico: Caracterização da Hemileia vastatrix
Um dos primeiros e mais fundamentais contributos de Aníbal Jardim Bettencourt no CIFC foi a caracterização detalhada do patógeno. A sua actividade científica incidiu inicialmente na especialização fisiológica da ferrugem do cafeeiro e na selecção de clones diferenciadores das raças do fungo.[2]
A rápida evolução e a variação da virulência do fungo H. vastatrix exigem uma compreensão constante e um mapeamento preciso das estirpes. O trabalho de Aníbal Jardim Bettencourt nos primeiros tempos no CIFC dedicou-se à caracterização de raças e de grupos fisiológicos, manutenção das culturas e identificação de novas raças.[2] Este esforço de diagnóstico era o pré-requisito técnico para qualquer programa de melhoramento genético eficaz, assegurando que o material desenvolvido no CIFC tivesse uma resistência de largo espectro, capaz de enfrentar a diversidade genética do patógeno.
A Solução Genética: Pesquisa e Transferência de Genes
A investigação de Aníbal Jardim Bettencourt rapidamente evoluiu para a aplicação genética. Ele concentrou-se no estudo do mecanismo hereditário da resistência à H. vastatrix em Coffea spp.[2]
O seu trabalho inovador centrou-se na transferência de genes de resistência para as principais variedades comerciais de C. arabica, utilizando o Híbrido de Timor (HDT) como fonte primária de resistência.[2] O HDT, um cruzamento natural entre C. arabica (susceptível, mas de alta qualidade) e C. canephora (robusta, resistente, mas de baixa qualidade), provou ser um recurso genético inestimável.
O esforço de transferência de fatores de resistência está bem documentado na sua publicação técnica, datada de 1981, intitulada Transferência de factores de resistência à Hemileia Vastatrix Berk. & Br. para as principais cultivares de Coffea Arabica L., editada pelo Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro da Junta de Investigações Científicas do Ultramar.[6]
A complexidade desta investigação exigiu colaboração internacional. Aníbal Jardim Bettencourt trabalhou com o Dr. Alcides Carvalho, uma figura de proa da investigação cafeeira no Brasil. Esta ligação permitiu não só o aprofundamento das técnicas de análise genética, mas também a testagem e distribuição do material em ambientes geográficos críticos.[2] A crise da ferrugem impôs uma colaboração transcontinental onde Portugal, através do CIFC, fornecia o material genético de base, e o Brasil, com a sua infraestrutura, garantia a escala e a avaliação em campo, papel que inicialmente foi desempenhado por Angola.
O quadro que se segue resume as áreas centrais e os focos da investigação de Aníbal Jardim Bettencourt:
O Impacto Global e a Criação de Cultivares de Resistência (Sarchimor e Catimor)
Os Progenitores da Cafeicultura Moderna
O legado mais tangível e duradouro de Aníbal Jardim Bettencourt reside nas linhagens de cafeeiros resistentes à ferrugem que foram desenvolvidas sob a sua liderança e participação no CIFC.
Do seu trabalho resultaram as progénies Catimor e Sarchimor, que se tornaram a base de grande parte da cafeicultura moderna global, especialmente nas regiões onde a ferrugem é endémica.
Sarchimor: Este híbrido resultou do cruzamento efectuado nas estufas do CIFC entre a cultivar 971/10 (Villa Sarchí, de porte baixo) e o Híbrido de Timor (832/2).[7] As primeiras cinco plantas F1 obtidas foram rigorosamente analisadas quanto à sua resistência às raças de H. vastatrix e incluídas no grupo fisiológico A.[7] Esta linha genética é a fundação para muitas variedades modernas de C. arabica resistente.
Catimor: Desenvolvido a partir do cruzamento entre o Híbrido de Timor e a cultivar Caturra.[2] Tal como o Sarchimor, o Catimor combina a resistência do C. canephora (via HDT) com as características de porte baixo e produtividade do C. arabica.
Historicamente, existia uma percepção generalizada de que a incorporação de genes do C. canephora (via HDT) para obter resistência resultaria numa inevitável degradação da qualidade da bebida. No entanto, o trabalho de melhoramento genético liderado por Aníbal Jardim Bettencourt e a subsequente selecção das progénies Catimor e Sarchimor nos centros de pesquisa mundiais conseguiram contornar este problema. Variedades derivadas destes cruzamentos, como Tupi e Obatã no Brasil, têm obtido excelentes resultados em concursos de cafés especiais, desmistificando a ideia de que a resistência à ferrugem é incompatível com a alta qualidade da bebida.[9] A sua mestria em selecionar os indivíduos que herdaram a resistência sem comprometer as características sensoriais do C. arabica foi a chave para o sucesso comercial e global das suas linhagens.
Disseminação de Material Genético e Impacto no Brasil
A estratégia de difusão de conhecimento do CIFC, fortemente suportada pelo trabalho de Aníbal Jardim Bettencourt, foi notavelmente aberta e cooperativa. Em 1960, o CIFC iniciou um programa de melhoramento com o objectivo de transferir resistência do HDT para as principais cultivares de C. arabica.[8] Como parte desta estratégia, plantas F1 e F2 seleccionadas, que demonstravam resistência a todas as raças conhecidas, foram fornecidas gratuitamente às instituições de países produtores de café que solicitassem este material.[8]
Este acto de colaboração científica teve um impacto preventivo incalculável no Brasil. O Instituto Agronómico de Campinas (IAC), uma das principais instituições de pesquisa cafeeira do país, recebeu progénies F2 e F3 derivadas de cruzamentos HDT/C. arabica a partir de 1968.[9]
Esta transferência de material ocorreu preventivamente, antes da chegada da ferrugem à América do Sul. Quando o fungo foi introduzido no Brasil no final da década de 60 [9], as instituições já possuíam linhagens robustas, desenvolvidas no CIFC, que resultaram no lançamento de cultivares cruciais como Tupi e Obatã em 2000.[9] Ao garantir que o Brasil tivesse material genético resistente disponível antes da chegada da praga, Aníbal Jardim Bettencourt e o CIFC criaram uma "apólice de seguro" genética que evitou uma devastação de escala continental, demonstrando uma visão estratégica notável na gestão de risco fitopatológico.
Conclusões e o Engenheiro da Resiliência Silenciosa
Aníbal Jardim Bettencourt é um expoente máximo da agronomia aplicada portuguesa do século XX. O seu trabalho no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro não foi apenas um sucesso nacional; foi uma contribuição de vanguarda que alterou a paisagem da cafeicultura global.
O impacto mais profundo da sua obra é económico e ecológico. Ao desenvolver, com a sua equipa, linhagens geneticamente resistentes à H. vastatrix, como os progenitores Catimor e Sarchimor, garantiu a resiliência de vastas áreas de produção de C. arabica que, de outra forma, teriam sucumbido ao fungo.[8, 9] Este melhoramento intrínseco permitiu reduzir a dependência de tratamentos químicos onerosos, promovendo, indirectamente, uma cafeicultura mais sustentável.
O facto de os nomes técnicos dos híbridos que criou — Catimor e Sarchimor — serem omnipresentes na literatura agronómica mundial, enquanto o seu nome é conhecido principalmente no meio científico e histórico, reflecte a natureza do seu trabalho. Aníbal Jardim Bettencourt foi um engenheiro da resiliência, um cientista que trabalhou para garantir a continuidade produtiva, um feito fundamental cuja estabilidade se torna, paradoxalmente, rapidamente invisível, mas que continua a sustentar a cadeia de valor do café em todo o mundo. A sua carreira personifica a excelência da investigação portuguesa em ciência tropical, que produziu soluções de impacto global.
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1. Hemileia vastatrix
Berkeley & Broome - CAPS, https://caps.ceris.purdue.edu/wp-content/uploads/2025/07/Hemileia-vastatrix.pdf
2. Depoimento de Aníbal
Jardim Bettencourt - actd:MOAJB, https://actd.iict.pt/view/actd:MOAJB
3. (PDF) Medicina, ciência e
laboratório A investigação biomédica básica em Lisboa (1880-1950) -
ResearchGate, https://www.researchgate.net/publication/338580781_Medicina_ciencia_e_laboratorio_A_investigacao_biomedica_basica_em_Lisboa_1880-1950
4. Universidade de Lisboa -
Instituto de Ciências Sociais ... - ULisboa, https://repositorio.ulisboa.pt/bitstreams/1ae1fbee-55ba-4dc5-bb24-6ed97c19e22c/download
5. LISBOA GUARDIÃ DE SABER
TROPICAL, https://www.lisboa.pt/fileadmin/informacao/publicacoes/ambiente/lisboa_guardia_saber_tropical.pdf
6. MELHORAMENTO GENÉTICO DO
CAFEEIRO. by JARDIM BETTENCOURT. (Aníbal): Good Soft Cover | Livraria Castro e
Silva - AbeBooks, https://www.abebooks.co.uk/MELHORAMENTO-GEN%C3%89TICO-CAFEEIRO-JARDIM-BETTENCOURT-An%C3%ADbal/30966018542/bd
7. Transferência de genes de
resistência a Hemileia vastatrixdo Híbrido de Timor para a cultivar Villa
Sarchí de Coffea arabica - Instituto Agronômico (IAC), https://www.iac.sp.gov.br/media/publicacoes/iacdoc84.pdf
8. The coffee leaf rust pathogen Hemileia vastatrix: one and a half
centuries around the tropics - PMC - PubMed Central, https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC6638270/
9. Participação da UFV em
pesquisas sobre café é destaque no site da Embrapa, https://www2.dti.ufv.br/noticias/scripts/exibeNoticiaMulti.php?codNot=8138
10. Dezembro 2014 - O Ser
Humano, https://1ajbettencourt.blogs.sapo.pt/2014/09/