José Francisco Martins (foto de 1921) |
– Vi o projéctil cair e matar o Comandante, perto de mim!
Era assim, com frases curtas e poucas explicações, que o meu Avô se referia ao combate do “Augusto de Castilho” com o cruzador submersível alemão U-139, na madrugada do dia 14 de Outubro de 1918, a cerca de 170 milhas a SE da ilha de Santa Maria. O que para mim era fascinante, para o meu Avô era desagradável. Não gostava de lembrar o combate, e quando o fazia, pressentia nas suas palavras um misto de mágoa e revolta. Com o tempo percebi que aquele momento, o momento da morte do Comandante, o tinha marcado profundamente. Não só pela morte do Comandante Carvalho Araújo, mas também pelas suas circunstâncias e consequências.
O combate de mais de duas horas com o U-139 tinha terminado. O paquete “San Miguel” estava fora do alcance do submarino alemão, a peça de vante irremediavelmente avariada e as munições praticamente esgotadas. Tinha chegado o momento do Comandante se preocupar com a vida dos seus homens. Deu ordem de cessar-fogo e mandou arriar as embarcações para que a guarnição abandonasse o navio. O U-139 também interrompeu o fogo de artilharia contra o “Augusto de Castilho” e aproximava-se para a tradicional abordagem do arrastão da pesca do bacalhau adaptado a navio de guerra.
De repente, da peça de 47 mm de ré do “Augusto de Castilho” foi feito fogo sobre o submersível alemão. Em resposta, o U-139, a uma distância mais reduzida do que a que mantivera durante todo o combate, disparou uma nova salva de projécteis de 150 mm contra o “Augusto de Castilho”. Um deles atingiu mortalmente o Comandante Carvalho Araújo, que tombou a poucos metros do 2º artilheiro Martins.
Três anos antes, ninguém poderia prever que os destinos destes dois homens se cruzariam de forma tão dramática no meio do Atlântico. É certo que ambos tinham raízes em Trás-os-Montes, um em Vila Real e o outro em Chaves, mas essa parecia ser a única afinidade entre eles.
Quando o futuro 2º artilheiro José Francisco Martins nasceu na casa da avó materna em Chaves, já o cadete José Botelho de Carvalho Araújo tinha frequentado os preparatórios na Academia Politécnica do Porto e ingressado na Escola Naval. E enquanto o jovem José Francisco se fazia homem como marçano nas ruas de Lisboa, trabalhando na mercearia e na casa do patrão, subindo escadas de cabaz às costas para entregar produtos aos fregueses e estudando para ser empregado de comércio, o Tenente Carvalho Araújo, republicano convicto, maçon e livre-pensador respeitador dos direitos dos cidadãos, cumpriu uma carreira brilhante como oficial da Armada, esteve na preparação do 5 de Outubro de 1910, foi eleito deputado por Vila Real à Assembleia Constituinte da República, foi deputado do Congresso da República Portuguesa e fez parte da coluna expedicionária ao sul de Angola.
Em 1916 o José Francisco Martins decidiu que queria ir mais longe e assentou praça na Marinha de Guerra como voluntário. Atirador de 1ª classe, recebeu formação militar naval e instrução de artilharia até se apresentar a bordo do “Augusto de Castilho” no último dia de 1917, como 2º artilheiro. Enquanto isto, o Tenente Carvalho Araújo comandou um caça‑minas na defesa do porto de Lisboa e foi Governador do Distrito de Inhambane, em Moçambique, até ser nomeado para o comando do “Augusto de Castilho” em Agosto de 1918.
Presumo que o 2º Artilheiro Martins terá visto o 1º Tenente Carvalho Araújo entrar a bordo, terá conversado com outros elementos da guarnição sobre o novo Comandante, terá notado a fragilidade física resultante do seu estado de saúde. E estou certo que a partir daquele momento, o Tenente Carvalho Araújo passou a ser o seu Comandante, aquele a quem devia total obediência na defesa da Pátria, mesmo com o sacrifício da vida. Já por duas vezes, como artilheiro do “Augusto de Castilho”, tinha lutado contra submarinos alemães e era provável que tivesse de voltar a lutar dadas as missões de escolta normalmente atribuídas ao navio.
Embora só tenha servido dois meses sob o seu comando, o 2º artilheiro Martins foi consolidando admiração e respeito pelo Comandante Carvalho Araújo. Ouvi-o mais tarde afirmar por diversas vezes que o comportamento do Comandante foi sempre exemplar, em especial durante o combate com o U‑139.
Sobre o combate e a bravura do Comandante e da guarnição do “Augusto de Castilho” há também outros testemunhos claros e coerentes e sobre eles não persiste qualquer dúvida. No caso particular dos seis artilheiros do navio, houve quem afirmasse que se distinguiram, “entre toda a guarnição, pela energia, sangue frio e disciplina que mostraram durante todo o combate, não temendo abrir as culatras das peças ao falharem as escorvas, a fim de não haver interrupção no tiro”.
De facto, há precisamente 100 anos, um grupo de quase meia centena de portugueses cumpriu o seu dever em condições extremamente adversas, com o sacrifício da vida de alguns: do próprio Comandante, de outros cinco militares e de um civil. Antes de qualquer outra consideração, é o esforço e o exemplo da guarnição do “Augusto de Castilho” e a forma como cumpriu uma missão quase impossível nas condições extraordinariamente precárias do navio, que é importante realçar.
Mas a morte do Comandante Carvalho Araújo e as circunstâncias em que ocorreu, acabaram por influenciar a forma como a maioria dos participantes e sobreviventes do combate, e até o próprio Comandante Carvalho Araújo, foram depois tratados. Na narrativa que acabou por ser consagrada oficialmente e que sustentou a atribuição de condecorações e as promoções por distinção de alguns, parece que o heroísmo se concentrou nos doze elementos da guarnição que aportaram numa embarcação à Ponta de Arnel, no nordeste de São Miguel. Os outros, os que chegaram a Santa Maria no salva‑vidas do navio, foram transformados em participantes menos corajosos e pouco disciplinados, em figurantes menores de uma “narrativa trágico-marítima” com muita pompa mas circunstância pouco clara.
Foi assim que percebi o porquê do meu Avô, que se reformou em 1956 no posto de 1º Tenente, não gostar de falar do combate do “Augusto de Castilho”. Entendia que a história oficial do combate não era rigorosa e que ele e os outros vinte e nove sobreviventes que aportaram a Santa Maria no salva-vidas não foram tratados pela Marinha e pelo Estado Português com justiça.
Mas o carácter e a vida dura blindaram-no contra todas as injustiças e traições, viessem de onde viessem. Soube ultrapassá‑las e concentrar o seu melhor no que para ele era essencial: a dignidade e a honradez pessoal, o cumprimento do dever profissional e o bem-estar da família e dos muitos que procurou ajudar. Teria no entanto gostado de saber que em Janeiro de 1974, dois anos despois da sua morte, o Estado Português reconheceu que o 1º Tenente auxiliar da Armada José Francisco Martins se “notabilizou no combate naval travado em 14 de Outubro de 1918, na defesa do paquete “San Miguel”, e por isso concedeu à sua viúva “a pensão por serviços excepcionalmente prestados ao País.”
O que os homens comandados pelo Comandante Carvalho Araújo conseguiram na madrugada de 14 de Outubro de 1918 foi bem real e prevalece sobre todas as ficções, as boas e as más. Sem o esforço e o sacrifício daquele punhado de homens, a Margarida da Terra Clark Dulmo, ilustre tataraneta do capitão Fernão Dulmo, fidalgo da casa do Infante D. Henrique, e uma bela criação de Nemésio, não teria viajado no “San Miguel”, conhecido o estudante de Coimbra e atirado ao mar o anel da serpente cega.
O combate com o U-139 não foi o combate de um homem nem de doze homens. Foi o combate com honra, para defender um paquete com mais de duas centenas e meia de pessoas a bordo, de todos os homens que estavam no “Augusto de Castilho” na madrugada do dia 14 de Outubro de 1918. Foi o combate levado a cabo por 45 militares e 4 civis, cada um com as suas qualidades e os seus defeitos, as suas forças e as suas fraquezas, as suas dúvidas e as suas certezas.
Cem anos depois, os descendentes de um deles, o 2º Artilheiro nº 5242 José Francisco Martins, sentem um imenso orgulho pelo seu feito e pelo seu extraordinário legado. E farão tudo para que o Pai, Avô, Bisavô e Trisavô, esteja onde estiver, se sinta orgulhoso deles.
O que os homens comandados pelo Comandante Carvalho Araújo conseguiram na madrugada de 14 de Outubro de 1918 foi bem real e prevalece sobre todas as ficções, as boas e as más. Sem o esforço e o sacrifício daquele punhado de homens, a Margarida da Terra Clark Dulmo, ilustre tataraneta do capitão Fernão Dulmo, fidalgo da casa do Infante D. Henrique, e uma bela criação de Nemésio, não teria viajado no “San Miguel”, conhecido o estudante de Coimbra e atirado ao mar o anel da serpente cega.
O combate com o U-139 não foi o combate de um homem nem de doze homens. Foi o combate com honra, para defender um paquete com mais de duas centenas e meia de pessoas a bordo, de todos os homens que estavam no “Augusto de Castilho” na madrugada do dia 14 de Outubro de 1918. Foi o combate levado a cabo por 45 militares e 4 civis, cada um com as suas qualidades e os seus defeitos, as suas forças e as suas fraquezas, as suas dúvidas e as suas certezas.
Cem anos depois, os descendentes de um deles, o 2º Artilheiro nº 5242 José Francisco Martins, sentem um imenso orgulho pelo seu feito e pelo seu extraordinário legado. E farão tudo para que o Pai, Avô, Bisavô e Trisavô, esteja onde estiver, se sinta orgulhoso deles.
Sem comentários:
Enviar um comentário