"Eles pareciam pessoas normais, como tu e eu."
As conclusões do relatório de análise do homicídio em violência doméstica de uma mulher jardineira por um homem trabalhador da construção civil desempregado, ocorrido em 2015 em Valongo, são a imagem dura mas fiel da ineficácia do Ministério Público e dos valores e atitudes, individuais ou partilhadas, que perpetuam a violência e a discriminação na sociedade portuguesa.
Segundo o relatório, a actuação do Ministério Público, no decurso do inquérito originado por denúncia de violência doméstica apresentada pela vítima, não decorreu de acordo com os procedimentos que estão previstos na lei e ou em instruções que está obrigado a respeitar. Em concreto:
- O atendimento da vítima foi efectuado por quem não tinha preparação técnica para o efeito;
- Não foi atribuído o estatuto de vítima nem foram prestadas informações sobre os apoios de que podia beneficiar;
- Não foi avaliado o risco de ocorrência de novos episódios de violência doméstica ;
- Não foi desencadeada qualquer medida de protecção da vítima;
- Não foram desenvolvidas diligências tendo em vista a ponderação da necessidade de aplicação de medidas de coacção ao agressor.
Desde que foi apresentada a denúncia por violência doméstica pela mulher, a 29 de Setembro de 2015, até à data da sua morte, a 4 de Novembro de 2015, dia em que prestou declarações no Ministério Público, decorreram 37 dias sem haver qualquer decisão quanto a medidas de protecção em benefício da vítima ou quanto a medidas de coacção a aplicar ao agressor
Sobre o tratamento noticioso do relatório e apesar deste denunciar duas falhas graves que facilitaram o homicídio da mulher vítima de violência doméstica, sem estabelecer qualquer hierarquia de importância, só a do Ministério Público é notícia na comunicação social. É significativo que o comportamento vergonhoso da comunidade em que a vítima e o agressor estavam inseridos não abra os noticiários nem esteja nos títulos dos jornais. Ainda de acordo com o relatório, embora os comportamentos do homem fossem do conhecimento de algumas pessoas da comunidade local em que a mulher e o homem se encontravam inseridos e com quem mantinham relacionamento pessoal, não há notícia de qualquer reacção no sentido de alertar ou sinalizar a situação junto dos órgãos de polícia criminal, do Ministério Público ou de qualquer entidade que pudesse apoiar a vítima.
Em Valongo, como no resto do país, a violência doméstica continua a ser entendida como uma questão íntima do casal, interior ao agregado familiar, silenciada e tacitamente aceite. Neste como em muitos outros casos que ocorrem diariamente em Portugal, os comportamentos de violência doméstica eram do conhecimento de pessoas que tinham relações próximas com a vítima e o agressor, sem que isso tivesse provocado qualquer efeito negativo para o agressor nem o desencadear de iniciativas que prevenissem o homicídio. Mesmo despois da sua constituição como arguido e depois dos factos provados, não sofreu qualquer tipo de rejeição social.
No período em que vítima e agressor se relacionaram, a violência doméstica sempre teve a natureza de um crime público e bastava uma denúncia feita por qualquer pessoa para desencadear a abertura de um inquérito e todos os instrumentos de intervenção e prevenção.
A instituição Ministério Público errou mas nós todos, como povo, também errámos. E continuaremos a errar se não alterarmos os factores socioculturais negativos que dominam a sociedade portuguesa.
É por isso que o combate à burocracia e à ineficácia da Justiça e o trabalho de desconstrução de crenças, mitos e estereótipos sobre a violência contra as mulheres são prioritários para quem deseja o progresso da sociedade portuguesa.
(Relatório aqui)
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