Em 2010,
entrevistaram o meu Pai e pediram que falasse das circunstâncias em que começou a trabalhar no Centro de Investigação da Ferrugem do Cafeeiro em Oeiras. E ele respondeu assim:
“Foi numas circunstâncias muito especiais. Eu vim de Moçambique em 1959 numa situação de ser humano destruído. Agora atribuo o que se passou quando eu tinha 30 e poucos anos, nessa altura tinha 35 anos, a uma doença que, nessa altura era pouco divulgada, que era a depressão. Eu devo ter entrado numa depressão com essa idade, porque estando eu durante 12 anos a trabalhar em Moçambique, depois de ter sido nomeado delegado da Junta de Exportação do Café, dessa altura, para Moçambique, a instalar duas estações experimentais, uma para a espécie racemosa e outra para a espécie arábica, em zonas geográficas completamente distintas. As estações estavam muito avançadas e a parte de fomento das culturas também. Tinha conseguido criar uma equipa extraordinariamente interessante de agrónomos e de regentes agrícolas, nessa altura eram engenheiros técnicos agrários, e de um momento para o outro, recebo da sede, portanto, em Lourenço Marques, na capital de Moçambique, um despacho, do ministro do Ultramar a mandar extinguir todos os trabalhos que estavam a ser realizados em Moçambique sobre a cultura do café, e a justificação, para mim, era absolutamente absurda, é que, Moçambique não podia produzir café, só podia produzir chá e que Angola, só podia produzir café e não chá e que, portanto, eu entregava todo o material móvel, imóvel, as edificações, tudo o que tinha sido construído com dinheiro da delegação dos serviços de agricultura e acho, a uma junta de planeamento qualquer, e eu era transferido para Angola para ir trabalhar em café em Angola, uma vez que eu me tinha especializado na cultura do café, depois do estágio em Angola.
Interessante, a minha mulher então olhava para mim, eu dei conhecimento à minha mulher, e ela admirou-se de eu ter ficado impávido e sereno depois de ter recebido uma notícia daquelas. Aquilo era destruir o sonho que eu tinha acalentado durante 10 a 12 anos, que era pensar que Moçambique podia tornar-se a segunda colónia produtora de café, mas não de robusta, sim de racemosa, que eu continuo a considerar uma espécie extraordinária de Moçambique, e de arábica. O racemosa nas zonas arenosas do litoral, em que não há culturas ricas que se possam fazer naquelas condições, há só as culturas alimentares que mantêm a população. As populações locais ficavam com meio de ganharem dinheiro vendendo o café racemosa a um preço que era relativamente bom para as famílias. E o arábica, que era uma cultura que também estava a ocupar aqueles fazendeiros que trabalhavam em pequenas fazendas de chá, mas que não tinham condições para criar aquelas grandes unidades de benefício do chá, que estavam nas grandes empresas, que eram, salvo erro, três: Chá Moçambique, Chá Gurué e a outra não me ocorre. Essas empresas compravam a folha do chá aos pequenos agricultores por um preço irrisório, de maneira que, eles sentiam quando surgiu a hipótese de fazer outra cultura, que era a cultura do arábica, em que a estação de benefício eles podiam fazer facilmente, e não estarem dependentes do preço que fixavam as grandes empresas, eles começaram todos a relaxar o aspecto do chá e a meterem-se todos para café. E o que é verdade é que, eu lembro-me de uma estimativa que se fez na altura, pouco antes de haver esse despacho do Ministro, havia já uns 5.000 hectares de arábica na Alta Zambézia, incluía: Gurué, Tacuane, Nauela, Milange, etc., as áreas principais de difusão do arábica.
Mas, como eu estava a dizer, eu, praticamente, fiquei na mesma. E disse: bem, agora tenho que tratar de fazer inventário de tudo o que a delegação tem, para fazer a entrega, para depois, a gente então embarcar para Angola. Por essa altura já tínhamos 2 filhos. Telefonei para a Estação Experimental, chamava-se Alverca, o local onde estava a Estação Experimental do Gurué de café e disse: eu vou aí para vos ajudar a fazer o inventário, porque havia os camiões, havia tratores, havia os edifícios, aquela coisa toda, ia ver como é que se fazia aquilo, bem, eu não percebia nada de inventários, mas levava uma pessoa para orientar a fazerem aquele trabalho da inventariação das coisas para a entrega. Portanto segui, normalmente, de carro, com o motorista dos serviços, para o Gurué, para a Estação Experimental, uns 400 km de onde eu morava.
Chego lá, montei logo a máquina, para aquilo estar tudo a funcionar, e tudo muito bem, e só ao fim de uma semana é que me deu uma tontura. Ora, um sujeito com 35 anos, cheio de energia, a mexer por todos os lados, sabia lá o que era uma tontura. Deu-me a tontura, eu parei um bocadinho, fiquei assim à espera e a tontura foi-se embora, bem, eu pensei, isto é qualquer coisa que eu comi, mas o que é verdade, é que depois, passada meia hora ou coisa assim, deu-me outra tontura e o que é verdade é que a segunda já me preocupou um bocadinho. Mas ainda me preocupou mais quando, me deu um quarto de hora depois, 5 minutos depois, e a páginas tantas, era uma tontura permanente. Perdi totalmente a capacidade de dirigir qualquer coisa, só tive energia para dizer ao motorista para pegar no carro, meter-me lá dentro. Deitado no banco de trás, fiz o trajecto directo para minha casa em Quelimane, que era a 400 km. Lá fez os 400 km e lá me entregou à minha mulher. E aí é que entrei numa fase muito complicada porque, de um momento para o outro, uma pessoa que tinha aquela energia toda, vendia saúde e que nunca tinha tido problemas, como é que tinha ficado um chaço assim de repente? Perdi as forças, não conseguia levantar os braços, de maneira que, a minha mulher mandou chamar um médico lá a casa.”
A entrevista continuou e a partir dela, a neta Catarina escreveu um
pequeno texto que é a belíssima história de uma vida.
A vida do meu Pai, que faria hoje 100 anos.