sábado, 8 de junho de 2024

O poder colonial em Moçambique na década de 1950



Quando há uns anos publiquei pela primeira vez um texto sobre o relatório de 14 de Junho de 1958 do governador do distrito da Zambézia, o Inspector Administrativo Álvaro de Gouveia e Melo, para o governador-geral de Moçambique, o Capitão de Mar e Guerra Gabriel Teixeira, sobre as eleições presidenciais de 8 do mesmo mês, o meu amigo e conterrâneo António Sobrinho perguntou-me, compreensivelmente, se o documento fazia parte do espólio do meu Pai.
Respondi que não porque o meu Pai tinha fechado definitivamente o capítulo moçambicano da sua vida em 1961, raramente falava sobre ele e não guardou documentos da parte final daquele período. Como tive oportunidade de contar nas anteriores publicações sobre o 100º aniversário do nascimento do meu Pai, as autoridades coloniais moçambicanas, em 1959, expulsaram-no da terra onde nasceu, cresceu, casou, criou os dois filhos e exerceu uma intensa e desafiante actividade profissional. Foi um choque violento que o deitou abaixo e por pouco não acabou com a sua vida. Felizmente conseguiu ultrapassar os graves problemas de saúde e reconstruir a carreira profissional, primeiro em Portugal, depois no Brasil e mais tarde noutros países do Mundo, em moldes bem mais gratificantes e psicologicamente mais saudáveis do que em Moçambique.

Por mero acaso, encontrei o tal relatório numa pesquisa na internet, nos arquivos digitais da Fundação Mário Soares, como peça de um conjunto documental depositado pelo meu Camarada e Amigo Luís Costa Correia. Embora o arquivista tenha identificado o conjunto como “Relatório-Secreto n.º 2/G, das Eleições Presidenciais de 1958”, na realidade é uma colecção de documentos em que alguns são relatórios - o “Relatório-Secreto n.º 2/G” é apenas um deles - sobre aquelas eleições presidenciais, fundamentalmente em Moçambique. Como mais tarde o Luís Costa Correia me explicou, o conjunto documental em causa foi um dos dois únicos que retirou dos arquivos da DGS/PIDE, em Maio de 1974, quando coordenou a sua ocupação, para entregar posteriormente a entidades responsáveis por Arquivos históricos, por considerar que seria lamentável que fossem extraviados nos prováveis processos de transferências futuras. No entanto, quando retirou os documentos teve o cuidado de deixar no respectivo arquivo uma anotação explicativa da intenção de serem enviados a adequada entidade que estudasse os métodos eleitorais do Estado Novo, o que viria a ocorrer mais tarde.

Em boa hora o fez porque permitiu que ao ler aqueles documentos, confirmasse o que o meu Pai me tinha contado sobre as eleições presidenciais de 1958 em Moçambique. Embora sem provas, suspeito que ele, não sendo um oposicionista militante, acabou por ser fortemente penalizado por se ter mantido imparcial e não ter colaborado com as iniciativas manipuladoras e fraudulentas do governador do distrito Gouveia e Melo e do governador-geral Gabriel Teixeira.
 
Os dois relatórios do governador-geral Gabriel Teixeira que integram aquele conjunto documental são excelentes demonstrações da mentalidade de quem tinha a responsabilidade do governo da colónia de Moçambique: a obsessão pela ameaça dos comunistas e dos interesses externos que segundo ele dominavam a oposição, o elogio da vigilância e controlo policial dos cidadãos, a falta de confiança na maioria dos correligionários governadores de distrito e o desprezo pelos directores de serviço e equiparados (“todos frouxos, e talvez até, muitos deles, piores do que frouxos”). Segundo ele as “eleições, com todos os seus malefícios, tiveram o mérito de pôr em relevo vários pontos fracos da vida nacional” e “puseram também a nu a duplicidade de uns e a tibieza de outros, muitos ocupando posições de comando nos quadros do funcionalismo. Foram, enfim, uma lição, e se soubermos aproveitá-la, e estou certo que saberemos, o saldo, em efeitos, das eleições será benéfico para a Nação.”

A repressão que se seguiu às eleições presidenciais de 1958 nos diversos sectores sociais, políticos e económicos de Moçambique − a proibição da cultura do café com enorme prejuízo para os cafeicultores, especialmente da Zambézia, foi apenas uma das acções retaliatórias do poder colonial −, mostrou o entendimento que tinha do que era “benéfico para a Nação”.
 
Para mal dos povos português e moçambicano.

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