quinta-feira, 29 de julho de 2021

Recortes da História

 


Durante um largo período de 1975 e 1976 servi na corveta “António Enes” sob o comando do Comandante Francisco Félix de Lima Duarte Costa. Foram um Verão, um Outono e um Inverno politicamente quentes, primeiro no Continente e depois nos Açores, onde chegámos poucos dias antes do 25 de Novembro de 1975.
 
O Comandante Duarte Costa, com o profissionalismo, o rigor e a seriedade que todos lhe reconhecemos, preparou cuidadosamente a missão nos Açores, compilando toda a informação disponível sobre o arquipélago e a situação político-militar que lá se vivia. Uma das formas de o fazer foi criar uma pasta de recortes de jornais do Continente e dos Açores sobre o tema. Pois foi essa pasta de recortes de 1975 e 1976, de jornais tão díspares como o Diário de Lisboa e o Correio dos Açores, que o Comandante Duarte Costa, sabendo do meu interesse pelos Açores e as suas gentes, teve a gentileza de me oferecer recentemente.
 
Desde que o correio me entregou a oferta do Comandante Duarte Costa, não imaginam como me tenho deliciado com a leitura dos recortes da História vivida e observada a partir da "António Enes". Os recortes merecem outro tipo de tratamento, mas antes que seja possível fazê-lo, permitam-me citar apenas um detalhe da discussão sobre a autonomia político-administrativa dos Açores. É que 1975 foi o ano da discussão dos vários projectos de estatutos que acabaram por ser apresentados e discutidos na Assembleia Constituinte.

O primeiro projecto de estatuto de autonomia dos Açores foi elaborado e aprovado pelo núcleo de Ponta Delgada do PPD, onde pontificava Mota Amaral. Foi apresentado numa conferência de imprensa e publicado no Correio dos Açores ainda em Novembro de 1974. Posteriormente, em conjunto com outros projectos, um do MAPA (onde militavam órfãos do regime deposto) e outro do “Grupo dos Onze” (este viria a ser apresentado na Constituinte pelo MDP/CDE), foi debatido na "I Reunião Insular" (incluindo representantes da Madeira), realizada em Angra do Heroísmo em Março de 1975.

O projecto do PPD sofreu sucessivas alterações, mas na primeira versão desenvolvia os interesses autonomistas na área militar, avançando a ideia de que “as guarnições (…) de qualquer arma estacionada nas regiões autónomas deverão ser compostas exclusivamente por naturais delas”. Ainda bem que esta disposição desapareceu da versão apresentada pelo PPD na Comissão Parlamentar da Assembleia Constituinte, porque teria certamente originado uma guerra mais violenta do que a das bandeiras de 1980 e 2009.

A fotografia que escolhi para ilustrar este texto não é de 1975, embora nela apareça a corveta "António Enes" e o cais do porto de Ponta Delgada que tão bem conhecemos naquele Outono e Inverno. É uma foto actual, de Julho de 2021. Trata-se da rendição do NRP "António Enes" pelo NRP "Viana do Castelo", outro navio que também conheci bem, bastante mais tarde e noutras circunstâncias. É provável que ambos tenham açorianas e açorianos nas suas guarnições. Mas tal como a "António Enes" do Comandante Duarte Costa, neles estarão também embarcados portugueses de muitas outras regiões do país.

E ainda bem que assim é porque que se alguma vez alguém tivesse decretado que as guarnições dos navios estacionados nas diferentes regiões de Portugal deviam ser compostas exclusivamente por naturais dessas regiões, eu nunca teria embarcado em navios da Marinha Portuguesa.

sábado, 3 de julho de 2021

O paquete "Angola"



Camaradas do meu curso e do curso "AC" da Escola Naval assinalaram os 50 anos da travessia do Equador na “Sagres” no final de Junho de 1971. De facto, os cadetes e os aspirantes dos dois cursos atravessaram o Equador rumo ao Brasil e os que supostamente o faziam pela primeira vez, foram devidamente julgados e castigados pelo Rei Neptuno e a sua corte.

Não escapei de ser julgado, mas no meu caso pessoal, e certamente no de outros que nasceram ou viveram nas antigas colónias africanas, aquela não foi a primeira vez que atravessei o Equador num navio. A minha primeira vez tinha sido muito tempo antes no paquete “Angola”, no final de 1956, na viagem de regresso a Moçambique, depois de uma estadia na Metrópole para conhecer os meus avós maternos. A viagem de Lourenço Marques para Lisboa tinha sido feita de avião, mas o regresso foi por mar, no “Angola”.

O quarto navio de bandeira portuguesa, e terceiro paquete, com o nome “Angola” foi encomendado aos estaleiros R & W Hawthorn, Leslie & Co Ltd de Newcastle e entregue à Companhia Nacional de Navegação” (CNN) em Dezembro de 1948, para operar na carreira de África. Com o seu gémeo “Moçambique”, foram os primeiros paquetes portugueses equipados com motores diesel (2 motores “Doxford” de 6 500 HP cada), um salto significativo em termos de economia de exploração.

Em 1956 viajei com a minha mãe e a minha irmã de Lisboa para Luanda para nos reencontramos com o meu pai que estava a fazer um estágio sobre a cultura do café em Angola, com o objectivo de depois dinamizar a sua produção em Moçambique. Embora criança, tenho uma memória muito viva da vida a bordo do “Angola”, da festa de passagem do Equador e, principalmente, do trajecto entre Luanda e Lourenço Marques, depois do meu pai se juntar a nós.

Não há dúvida que as longas viagens de barco nos marcavam de uma forma indelével, em nada comparável com as de avião.