Quando, há cerca de dois anos, entrei pela primeira vez nas modernas instalações daquela instituição de saúde, tudo me surpreendeu. A arquitetura do edifício, a decoração dos espaços, a simpatia dos assistentes que me receberam, a organização dos serviços, o rigoroso cumprimento do planeamento horário e o empenho dos profissionais de saúde que ali trabalhavam foram, para mim, uma experiência agradável.
Fiquei particularmente agradado com a forma como os serviços comunicavam comigo durante todo o processo de consultas, exames e tratamentos que lá passei a fazer. Quando chegava, era abordado por uma simpática assistente que, depois de confirmar o meu nome no tablet, entregava-me um telemóvel e dizia: "Faça favor de aguardar até ser contactado." Não havia senhas de espera, quadros de chamada ou nomes gritados como em outros serviços. Sentava-me onde queria até o telemóvel tocar e alguém me dizer para onde me devia dirigir. E o procedimento repetia-se até devolver o telemóvel no balcão de atendimento do último dos serviços por onde passava.
A rotina diária de tratamentos ao longo de várias semanas permitiu-me perceber o funcionamento do sistema. À medida que os telemóveis, levados pelos clientes, se dispersavam pelos diferentes serviços, era necessário recolhê-los e trazê-los para as entradas do edifício. Quem se encarregava dessa tarefa era um jovem adulto a que chamarei Paulo, para simplificar. De acordo com uma rotina pré-estabelecida, o Paulo percorria os corredores da instituição e recolhia, numa espécie de cabaz de plástico, as dezenas de telemóveis deixados nos balcões de atendimento dos serviços. Trajado a rigor, de fato e gravata, o Paulo caminhava rápido, compenetrado da sua função. Os sinais característicos da síndrome de Down não impediam que se pressentisse na sua face a satisfação com o trabalho que executava.
Quando as minhas idas à instituição se tornaram mais curtas e espaçadas e o que lá ia fazer passou a ser diferente, uma coisa permaneceu constante: a recepção do telemóvel à entrada e a observação do Paulo, concentrado e impecavelmente trajado, com o seu cabaz de recolha dos aparelhos. Até que, há dois dias, ao entrar, fui atendido por uma simpática assistente que me pediu o número do telefone e disse: "Faça favor de aguardar, ligarão para o seu telefone." Perguntei se já não entregavam telemóveis e a resposta foi: "Em caso de necessidade, sim, mas agora a regra é ligar para o seu número."
Correu tudo bem com a chamada para as análises, assim como correu bem ontem, com as chamadas para a consulta e o tratamento. O que estranhei foi não ter visto o Paulo, apesar de ter permanecido quase três horas em diferentes locais do edifício.
Desconfiado, fui assaltado pelo receio de que o Paulo tivesse sido vítima de uma qualquer manifestação da extrema-direita libertária contra os programas DEI (diversity, equity, and inclusion). É certo que estamos em Portugal, mas o contágio das teorias de Ludwig von Mises e das práticas da oligarquia tecnocrática, por elas influenciada, que assumiu o poder nos EUA, não pode ser menosprezado.
Por isso, ontem à tarde, em conversa com uma das simpáticas assistentes, tentei saber do Paulo. "Foi dispensado com a mudança da política de telemóveis?", perguntei. Respondeu que não, que está ocupado com outras tarefas, embora tenha reagido à diminuição do número de telemóveis que recolhia.
É provável que, no caso do Paulo, a alteração das suas funções tenha sido gerida com humanidade. Mas não pude deixar de pensar nos milhares de Paulos que, nos EUA e em outros países governados pela extrema-direita libertária, estão a sentir os efeitos do poder dogeano.