Quando o meu amigo José Ávila recordou no Facebook um artigo do Açoriano Oriental sobre o jornal Diário de Notícias de New Bedford que acolheu opositores e defensores do regime de Salazar durante os anos da ditadura e da censura, não descansei enquanto não li o que nele era publicado. A tarefa foi facilitada porque as mais de 84 mil páginas do jornal, desde que foi criado em 1919 até ser encerrado em 1973, estão disponíveis desde 2009 num
arquivo digital criado pelo Centro de Dartmouth para Estudos e Cultura Portuguesa, da Universidade de Massachusetts.
Devo confessar que tem sido muito agradável percorrer as várias edições do jornal desde a fundação como Alvorada até ao fim como Diário de Notícias, título que adoptou a partir de 3 de Janeiro de 1927, “por ser este o mais apropriado em virtude do papel que esta publicação desempenha no meio da Colónia Portuguesa, levando, todos os dias úteis, ao lar de quasi todas as famílias que a compõem as ultimas noticias do que se passa pelo mundo, sendo também o único meio pelo qual, dia a dia, os comerciantes, tanto nacionaes como portugueses, podem dar conhecimento aos seus numerosos leitores e aos portugueses em geral do que teem para vender”, conforme se lia no comunicado da direção da Alvorada Publishing Company, Inc.
O Diário de Notícias de New Bedford era de facto um jornal eclético e nele encontrei as mais diversas e divergentes opiniões políticas, assim como notícias sobre tudo, desde os conflitos mundiais até às doenças ou nascimentos de membros da comunidade. Calculem que até encontrei uma notícia de 21 de Fevereiro de 1950 onde um agrónomo afirmava que Moçambique possuía dois dos melhores cafés do mundo. Segundo ele “na colónia se continua a importar café para consumo, com encargos de alguns milhares de contos, quando Moçambique podia ser exportador.” E citava dois cientistas britânicos, McDonald e Cheney, que afirmaram que o café de Inhambane era um dos melhores, senão o melhor café: “Aromático, com bom paladar, fraca percentagem de cafeína, cor pouco carregada, o café de Inhambane tanto pode ser usado puro como lotado com outros cafés. Mesmo puro, é um bom café.” Como já aqui contei, o meu Pai pensava o mesmo e tudo fez para que Moçambique se tornasse uma colónia exportadora de café. Até que, em 1959, Salazar proibiu a cultura do café em Moçambique e transferiu o meu Pai para Angola.
Mas de entre os vários textos de opositores do regime no poder em Portugal, achei particularmente interessantes os da coluna “Daqui Lisboa…” assinada por C. O Copilot respondeu-me que aquelas crónicas, fortemente críticas de Salazar e dos seus ministros, eram enviadas pelo jornalista Carlos de Oliveira de Lisboa. Não pude confirmar, mas deliciei-me com “O Dr. Sim-Sim”, “A Voz do Sr. Ministro”, “O Talentoso Funcionário”, “Os Desordeiros” e tantos outros excelentes textos do misterioso C. Mas “O Retrato”, publicado em Abril de 1950, destacou-se e, por isso, não resisti a partilhar com a devida vénia:
“Sobre a banca de trabalho de Sua Excelência, à sua esquerda, que é o lado do coração, numa sóbria e linda moldura de prata, havia um retrato de Mussolini, com um autógrafo de letra bem talhada, em que o italiano significava em palavras calorosas o seu apreço pelo camarada português. Benito mandara-lhe aquela lembrança num momento de enternecimento, num daqueles rasgos de alma generosa que tanto o caracterizavam. Com os olhos postos na face voluntariosa e enérgico, na mandíbula grossa e naqueles olhos que pareciam fitá-lo e dizer: — Continua, que estás a agradar! Sua Excelência foi tecendo a rede enleadora de leis, decretos, discursos e notas oficiosas com que durante tantos anos nos mimoseou, no áureo período da Ditadura Nacional. Mas os tempos correram, a guerra acabou e Mussolini apareceu uma bela manhã, numa praça de Milão, pendurado de cabeça para baixo. Sua Excelência apressou-se, então, a meter retrato e moldura na gaveta, e nesse mesmo dia proclamou ao mundo que vivíamos, não em Ditadura, como a oposição fazia crer, mas em Democracia Orgânica e que as nossas eleições eram tão livres como as da livre Inglaterra. E tudo isto, apenas, porque lhe fez impressão, uma impressão terrível, saber que o pobre havia sido pendurado de cabeça para baixo. A sensibilidade deste homem doe-se com as desgraças, aflige-se, atormenta-se. Na gaveta o retrato estava melhor.
Ora como na vida tudo esquece, graças a Deus, e sobre aquela cena de Milão já passaram mais de cinco anos e é coisa assim distante como os grandes acontecimentos da História, dizem que de noite, naquelas serenas noites de trabalho em que Sua Excelência vela por nós, não resiste à tentação e vai à gaveta. Retrato e moldura vêm de novo para cima da banca de trabalho e o namoro continua, um namoro romântico, cheio de lágrimas e ais, mas bonito na sua fidelidade e na sua constância. O falecido parece que está vivo. A mesma força na expressão dura, o mesmo querer e o mesmo queixo, o mesmo olhar de águia vitoriosa. Sobre ele passaram os grandes desastres da Grécia, as batalhas navais do Mediterrâneo em que foi tudo para o charco, o Corporativismo falido, o fascio com as varas partidas e uma para cada lado, e a verdade é que ali o grande homem continua como se nada se tivesse passado, magnifico como sempre, radiante da sua força e do seu poder. Sua Excelência olha e suspira, arranca do peito ais de saudade e paixão, e ele, forte, perseverante, diz-lhe que não chore, que não seja piegas, que continue, porque a sorte não o abandonará.
São assim, agora, dolorosas as noites de Sua Excelência. Quando todos os familiares recolhem, quando em São Bento cai a paz da noite, em segredo, ele saca da gaveta o retrato amado e cumpre a santa devoção de adorar o morto querido. E só assim sente algum ânimo para o trabalho.
Dizem que já depois disso outros políticos lhe mandaram o retrato. O Franco que também é um sujeito animoso, o Chang-Kai-Chec das mãos limpas, o reabilitado Dr. Schatz, e até o imperador do Japão, o lacrimoso Hiroito, mas Sua Excelência naquele é que tem fé. De dia não, porque não gosta que lhe conspurquem a intimidade da sagrada adoração, mas de noite, quando todos dormem, é para o Benito que vão as suas lágrimas piedosas e é do Benito que lhe vem ainda algum alento.—C.”