terça-feira, 20 de agosto de 2024

O Diário de Notícias de New Bedford

 


Quando o meu amigo José Ávila recordou no Facebook um artigo do Açoriano Oriental sobre o jornal Diário de Notícias de New Bedford que acolheu opositores e defensores do regime de Salazar durante os anos da ditadura e da censura, não descansei enquanto não li o que nele era publicado. A tarefa foi facilitada porque as mais de 84 mil páginas do jornal, desde que foi criado em 1919 até ser encerrado em 1973, estão disponíveis desde 2009 num arquivo digital criado pelo Centro de Dartmouth para Estudos e Cultura Portuguesa, da Universidade de Massachusetts.

Devo confessar que tem sido muito agradável percorrer as várias edições do jornal desde a fundação como Alvorada até ao fim como Diário de Notícias, título que adoptou a partir de 3 de Janeiro de 1927, “por ser este o mais apropriado em virtude do papel que esta publicação desempenha no meio da Colónia Portuguesa, levando, todos os dias úteis, ao lar de quasi todas as famílias que a compõem as ultimas noticias do que se passa pelo mundo, sendo também o único meio pelo qual, dia a dia, os comerciantes, tanto nacionaes como portugueses, podem dar conhecimento aos seus numerosos leitores e aos portugueses em geral do que teem para vender”, conforme se lia no comunicado da direção da Alvorada Publishing Company, Inc.

O Diário de Notícias de New Bedford era de facto um jornal eclético e nele encontrei as mais diversas e divergentes opiniões políticas, assim como notícias sobre tudo, desde os conflitos mundiais até às doenças ou nascimentos de membros da comunidade. Calculem que até encontrei uma notícia de 21 de Fevereiro de 1950 onde um agrónomo afirmava que Moçambique possuía dois dos melhores cafés do mundo. Segundo ele “na colónia se continua a importar café para consumo, com encargos de alguns milhares de contos, quando Moçambique podia ser exportador.” E citava dois cientistas britânicos, McDonald e Cheney, que afirmaram que o café de Inhambane era um dos melhores, senão o melhor café: “Aromático, com bom paladar, fraca percentagem de cafeína, cor pouco carregada, o café de Inhambane tanto pode ser usado puro como lotado com outros cafés. Mesmo puro, é um bom café.” Como já aqui contei, o meu Pai pensava o mesmo e tudo fez para que Moçambique se tornasse uma colónia exportadora de café. Até que, em 1959, Salazar proibiu a cultura do café em Moçambique e transferiu o meu Pai para Angola.

Mas de entre os vários textos de opositores do regime no poder em Portugal, achei particularmente interessantes os da coluna “Daqui Lisboa…” assinada por C. O Copilot respondeu-me que aquelas crónicas, fortemente críticas de Salazar e dos seus ministros, eram enviadas pelo jornalista Carlos de Oliveira de Lisboa. Não pude confirmar, mas deliciei-me com “O Dr. Sim-Sim”, “A Voz do Sr. Ministro”, “O Talentoso Funcionário”, “Os Desordeiros” e tantos outros excelentes textos do misterioso C. Mas “O Retrato”, publicado em Abril de 1950, destacou-se e, por isso, não resisti a partilhar com a devida vénia:

Sobre a banca de trabalho de Sua Excelência, à sua esquerda, que é o lado do coração, numa sóbria e linda moldura de prata, havia um retrato de Mussolini, com um autógrafo de letra bem talhada, em que o italiano significava em palavras calorosas o seu apreço pelo camarada português. Benito mandara-lhe aquela lembrança num momento de enternecimento, num daqueles rasgos de alma generosa que tanto o caracterizavam. Com os olhos postos na face voluntariosa e enérgico, na mandíbula grossa e naqueles olhos que pareciam fitá-lo e dizer: — Continua, que estás a agradar! Sua Excelência foi tecendo a rede enleadora de leis, decretos, discursos e notas oficiosas com que durante tantos anos nos mimoseou, no áureo período da Ditadura Nacional. Mas os tempos correram, a guerra acabou e Mussolini apareceu uma bela manhã, numa praça de Milão, pendurado de cabeça para baixo. Sua Excelência apressou-se, então, a meter retrato e moldura na gaveta, e nesse mesmo dia proclamou ao mundo que vivíamos, não em Ditadura, como a oposição fazia crer, mas em Democracia Orgânica e que as nossas eleições eram tão livres como as da livre Inglaterra. E tudo isto, apenas, porque lhe fez impressão, uma impressão terrível, saber que o pobre havia sido pendurado de cabeça para baixo. A sensibilidade deste homem doe-se com as desgraças, aflige-se, atormenta-se. Na gaveta o retrato estava melhor.

Ora como na vida tudo esquece, graças a Deus, e sobre aquela cena de Milão já passaram mais de cinco anos e é coisa assim distante como os grandes acontecimentos da História, dizem que de noite, naquelas serenas noites de trabalho em que Sua Excelência vela por nós, não resiste à tentação e vai à gaveta. Retrato e moldura vêm de novo para cima da banca de trabalho e o namoro continua, um namoro romântico, cheio de lágrimas e ais, mas bonito na sua fidelidade e na sua constância. O falecido parece que está vivo. A mesma força na expressão dura, o mesmo querer e o mesmo queixo, o mesmo olhar de águia vitoriosa. Sobre ele passaram os grandes desastres da Grécia, as batalhas navais do Mediterrâneo em que foi tudo para o charco, o Corporativismo falido, o fascio com as varas partidas e uma para cada lado, e a verdade é que ali o grande homem continua como se nada se tivesse passado, magnifico como sempre, radiante da sua força e do seu poder. Sua Excelência olha e suspira, arranca do peito ais de saudade e paixão, e ele, forte, perseverante, diz-lhe que não chore, que não seja piegas, que continue, porque a sorte não o abandonará.

São assim, agora, dolorosas as noites de Sua Excelência. Quando todos os familiares recolhem, quando em São Bento cai a paz da noite, em segredo, ele saca da gaveta o retrato amado e cumpre a santa devoção de adorar o morto querido. E só assim sente algum ânimo para o trabalho.

Dizem que já depois disso outros políticos lhe mandaram o retrato. O Franco que também é um sujeito animoso, o Chang-Kai-Chec das mãos limpas, o reabilitado Dr. Schatz, e até o imperador do Japão, o lacrimoso Hiroito, mas Sua Excelência naquele é que tem fé. De dia não, porque não gosta que lhe conspurquem a intimidade da sagrada adoração, mas de noite, quando todos dormem, é para o Benito que vão as suas lágrimas piedosas e é do Benito que lhe vem ainda algum alento.—C.

sábado, 17 de agosto de 2024

O último adeus

 


Há um ano, recolhi a senha na entrada do hospital e subi ao SO. Como era habitual desde que estava internada, ia estar trinta minutos com a minha Mãe e dar-lhe o jantar.

Ao entrar no quarto, vi logo o letreiro “dieta zero”, por cima da cabeceira, mas não quis entender o que significava. Sabia a resposta, mas mesmo assim perguntei à enfermeira se não lhe podia dar o jantar. Respondeu que não.

A minha Mãe estava muito serena e lúcida. Conversámos sobre muitas coisas e, no final, pediu-me que a levasse para junto do seu amor, no terreno da casa onde nasceu.

Voltei a fingir que não entendia. Trocámos beijos e um longo abraço, e disse-lhe: Até amanhã, Mamã.

Não me respondeu.

Foi o nosso último adeus. Partiu vinte minutos antes de o dia acabar.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

"As Mãos dos Pretos"

Quando os autoproclamados “patriotas” promovem e praticam o ódio racial na comunicação social, nas redes sociais e nas ruas dos EUA, do Reino Unido ou de Portugal, apetece-me lembrar o menino de um dos mais belos contos que li: “As Mãos dos Pretos” de Luís Bernardo Honwana, pseudónimo literário do moçambicano Luís Augusto Bernardo Manuel, nascido em 1942.

As Mãos dos Pretos” é um dos sete contos do primeiro livro de Luís Bernardo Honwana, “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, editado pela Sociedade de Imprensa de Moçambique, em 1964. O livro foi logo apreendido pela PIDE.

Durante a minha infância em Moçambique, muitas vezes perguntei porque é que as palmas das mãos dos pretos eram mais claras do que o resto do corpo. E tal como o menino do conto, obtive as mais diversas respostas. Não me lembro das minhas, mas o menino do conto registou as do Senhor Professor, do Senhor Padre, da Dona Dores, do Antunes da Coca-Cola, do Senhor Antunes, do Senhor Frias, do livro que falava dos que apanhavam o algodão branco da Virgínia, da Dona Estefânia, mas nenhuma o satisfez.

Só a mãe do menino deu uma resposta que satisfez e que foi mais ou menos isto:
«Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos, porque os que já se tinham habituados a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos».

E o menino completa o seu registo dizendo-nos:
«Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fui para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.»

sábado, 3 de agosto de 2024

"Rosas de Ermera"

 



Em 2018, a RTP2 transmitiu os dois episódios do documentário “Rosas de Ermera”, de Luís Filipe Rocha. A partir das memórias dos irmãos sobreviventes, Maria e João, contou-nos a história da família de José Afonso em Moçambique (Lourenço Marques), Coimbra e Timor.

Poucas semanas antes do início da 2ª Guerra Mundial, a família separou-se em Lourenço Marques: os pais e a Maria, com 7 anos, viajaram para Timor, onde o pai assumiu as funções de juiz; os irmãos João e José, com 11 e 10 anos, viajaram para Coimbra, para casa de uma tia paterna. É a saga da Maria e dos pais depois da ocupação de Timor pelas tropas japonesas que Luís Filipe Rocha nos conta com grande detalhe. Mas também nos relata, através do testemunho do irmão João, o que os dois irmãos sentiram quando, habituados à liberdade que usufruíam em Moçambique, foram confrontados com o ambiente opressivo de Coimbra.

Identifiquei no testemunho do irmão João Afonso dos Santos muito do que vivi quando com 9 anos vim com os meus pais e a minha irmã de Moçambique para Lisboa. Por isso, mas não só, gostei de rever o documentário de Luís Filipe Rocha que a RTP2 voltou a transmitir na madrugada do passado dia 1, desta vez como filme com a duração de pouco mais de duas horas.

Pode ser visto na RTP Play. Vale a pena.