quarta-feira, 26 de junho de 2024

Ainda o passeio

 


Uma brincadeira musical para todos os netos e inspirada por uma memória com o mais novo, registada pelo mais velho.

domingo, 23 de junho de 2024

O bilhete de identidade de Silva Pais

 


Confesso que depois da visita à sede da PIDE/DGS, na António Maria Cardoso, poucos dias depois da ocupação pelas forças do MFA coordenadas pelo meu camarada e amigo Luís Costa Correia, fiquei com pouca vontade de lá voltar. Passados 50 anos, ainda me lembro do que senti ao percorrer aqueles espaços labirínticos e tenebrosos; ao ver as fotografias dos milhares de portugueses cuja vida foi devassada, destruída e reduzida a pastas de papéis, atadas com fitas e arrumadas em prateleiras; ao encontrar a minha ficha, preenchida à mão por mim, quando me matriculei no Técnico em 1968; ao ver os livros e publicações apreendidas e as centenas de revistas pornográficas que encontrava sempre que abria as gavetas das secretárias.

Quando falo da PIDE/DGS aos jovens, para além de relatar a minha fugaz visita ao edifício da António Maria Cardoso e de mostrar a ficha prisional do meu primo Benjamim, uma das 29 510 fichas dos 148 livros de registo de presos da PVDE/PIDE/DGS de 1934 até 18 de Abril de 1974 que a Torre do Tombo colocou online, e onde, ao longo de 9 anos, vários amanuenses registaram a forma como a repressão salazarista destruiu a vida de um jovem de 18 anos, socorro-me depois dos testemunhos de quem tem credibilidade. Desde logo dos testemunhos do Luís Costa Correia sobre os primeiros meses da ocupação da sede da PIDE/DGS como, por exemplo, a “semimória” que publicou em Agosto de 2020.

Relativamente às muitas outras histórias e historietas sobre essa ocupação sou muito cuidadoso. É o caso, por exemplo, da historieta que o comentador de assuntos soviéticos e russos José Milhazes conta no seu livro "Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril - Como a União Soviética não quis a revolução socialista em Portugal", de 2013. Nele relata que um "agente soviético, Guenrikh Borovik," que passando por jornalista em maio de 1974 entra com "facilidade" na sede da PIDE em Lisboa, terá "roubado" o próprio cartão de identidade de Silva Pais, o director da então polícia política, apesar de ter sido revistado pelos militares do Movimento das Forças Armadas que guardavam o edifício.

Acontece que o Bilhete de Identidade de Silva Pais foi depositado pelo Luís Costa Correia no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, como se pode confirmar pela consulta ao inventário do espólio que entregou àquela instituição.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

A lição do Professor

Sei de um Professor que no último dia de aulas escreveu uma mensagem de agradecimento aos 99 alunos. Uma longa mensagem que os alunos não esquecerão, tenho a certeza.
 
Agradeceu a todos, sem excepção, o ano maravilhoso que lhe proporcionaram. Um ano em que não houve um aluno de quem não tenha gostado muito, de quem não tenha guardado pelo menos uma boa recordação e não queira voltar a encontrar no futuro, seja em que circunstância for.

Afirmou que cada um dos alunos tinha sido extraordinário e tinha cumprido, brilhantemente, o seu papel; que cada um deles permitiu que fosse professor de facto, puxando por ele, motivando-o e fazendo com que tivesse acabado o ano letivo um muito melhor ser humano.

Terminou dando os contactos para o caso de algum dos alunos precisar de alguma coisa dele e desejando felicidades para todos nas vidas que ainda mal começaram!

A mensagem é muito recente e bem real, tão real como o Professor que a escreveu. Felizmente é apenas um dos muitos professores exemplares que encontrei nas escolas públicas do ensino básico e secundário que tive a grata oportunidade de conhecer relativamente bem na última década.

terça-feira, 11 de junho de 2024

"Abril Hoje" na escola Fernão do Pó do Bombarral



Na sequência da conversa sobre o 25 de Abril no Agrupamento de Escolas Fernão do Pó no Bombarral no mês passado, a Professora Bibliotecária Célia Bento decidiu afixar na entrada da biblioteca e distribuir aos alunos e professores a "Carta de um jovem de Abril a um jovem de Hoje" que escrevi em 2017 para os alunos que participaram no projecto "Abril Hoje" na Escola Básica e Secundária de Carcavelos.

 
A carta foi o meu contributo para o estudo e debate do tema do desemprego, uma das principais preocupações manifestadas num inquérito inicial aos alunos do 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário. Nela contei a luta do meu Pai pelo emprego e pela dignidade profissional que aqui tenho recordado a propósito do 100º aniversário do seu nascimento. O tema foi então estudado por duas turmas do secundário, de Sociologia e de Economia, que apresentaram um relatório com sugestões de acções futuras.


Se a minha carta também tiver alguma utilidade para os alunos da Fernão do Pó, ficarei muito feliz.

sábado, 8 de junho de 2024

O poder colonial em Moçambique na década de 1950



Quando há uns anos publiquei pela primeira vez um texto sobre o relatório de 14 de Junho de 1958 do governador do distrito da Zambézia, o Inspector Administrativo Álvaro de Gouveia e Melo, para o governador-geral de Moçambique, o Capitão de Mar e Guerra Gabriel Teixeira, sobre as eleições presidenciais de 8 do mesmo mês, o meu amigo e conterrâneo António Sobrinho perguntou-me, compreensivelmente, se o documento fazia parte do espólio do meu Pai.
Respondi que não porque o meu Pai tinha fechado definitivamente o capítulo moçambicano da sua vida em 1961, raramente falava sobre ele e não guardou documentos da parte final daquele período. Como tive oportunidade de contar nas anteriores publicações sobre o 100º aniversário do nascimento do meu Pai, as autoridades coloniais moçambicanas, em 1959, expulsaram-no da terra onde nasceu, cresceu, casou, criou os dois filhos e exerceu uma intensa e desafiante actividade profissional. Foi um choque violento que o deitou abaixo e por pouco não acabou com a sua vida. Felizmente conseguiu ultrapassar os graves problemas de saúde e reconstruir a carreira profissional, primeiro em Portugal, depois no Brasil e mais tarde noutros países do Mundo, em moldes bem mais gratificantes e psicologicamente mais saudáveis do que em Moçambique.

Por mero acaso, encontrei o tal relatório numa pesquisa na internet, nos arquivos digitais da Fundação Mário Soares, como peça de um conjunto documental depositado pelo meu Camarada e Amigo Luís Costa Correia. Embora o arquivista tenha identificado o conjunto como “Relatório-Secreto n.º 2/G, das Eleições Presidenciais de 1958”, na realidade é uma colecção de documentos em que alguns são relatórios - o “Relatório-Secreto n.º 2/G” é apenas um deles - sobre aquelas eleições presidenciais, fundamentalmente em Moçambique. Como mais tarde o Luís Costa Correia me explicou, o conjunto documental em causa foi um dos dois únicos que retirou dos arquivos da DGS/PIDE, em Maio de 1974, quando coordenou a sua ocupação, para entregar posteriormente a entidades responsáveis por Arquivos históricos, por considerar que seria lamentável que fossem extraviados nos prováveis processos de transferências futuras. No entanto, quando retirou os documentos teve o cuidado de deixar no respectivo arquivo uma anotação explicativa da intenção de serem enviados a adequada entidade que estudasse os métodos eleitorais do Estado Novo, o que viria a ocorrer mais tarde.

Em boa hora o fez porque permitiu que ao ler aqueles documentos, confirmasse o que o meu Pai me tinha contado sobre as eleições presidenciais de 1958 em Moçambique. Embora sem provas, suspeito que ele, não sendo um oposicionista militante, acabou por ser fortemente penalizado por se ter mantido imparcial e não ter colaborado com as iniciativas manipuladoras e fraudulentas do governador do distrito Gouveia e Melo e do governador-geral Gabriel Teixeira.
 
Os dois relatórios do governador-geral Gabriel Teixeira que integram aquele conjunto documental são excelentes demonstrações da mentalidade de quem tinha a responsabilidade do governo da colónia de Moçambique: a obsessão pela ameaça dos comunistas e dos interesses externos que segundo ele dominavam a oposição, o elogio da vigilância e controlo policial dos cidadãos, a falta de confiança na maioria dos correligionários governadores de distrito e o desprezo pelos directores de serviço e equiparados (“todos frouxos, e talvez até, muitos deles, piores do que frouxos”). Segundo ele as “eleições, com todos os seus malefícios, tiveram o mérito de pôr em relevo vários pontos fracos da vida nacional” e “puseram também a nu a duplicidade de uns e a tibieza de outros, muitos ocupando posições de comando nos quadros do funcionalismo. Foram, enfim, uma lição, e se soubermos aproveitá-la, e estou certo que saberemos, o saldo, em efeitos, das eleições será benéfico para a Nação.”

A repressão que se seguiu às eleições presidenciais de 1958 nos diversos sectores sociais, políticos e económicos de Moçambique − a proibição da cultura do café com enorme prejuízo para os cafeicultores, especialmente da Zambézia, foi apenas uma das acções retaliatórias do poder colonial −, mostrou o entendimento que tinha do que era “benéfico para a Nação”.
 
Para mal dos povos português e moçambicano.

No centésimo aniversário do meu Pai

 


Em 2010, entrevistaram o meu Pai e pediram que falasse das circunstâncias em que começou a trabalhar no Centro de Investigação da Ferrugem do Cafeeiro em Oeiras. E ele respondeu assim:
“Foi numas circunstâncias muito especiais. Eu vim de Moçambique em 1959 numa situação de ser humano destruído. Agora atribuo o que se passou quando eu tinha 30 e poucos anos, nessa altura tinha 35 anos, a uma doença que, nessa altura era pouco divulgada, que era a depressão. Eu devo ter entrado numa depressão com essa idade, porque estando eu durante 12 anos a trabalhar em Moçambique, depois de ter sido nomeado delegado da Junta de Exportação do Café, dessa altura, para Moçambique, a instalar duas estações experimentais, uma para a espécie racemosa e outra para a espécie arábica, em zonas geográficas completamente distintas. As estações estavam muito avançadas e a parte de fomento das culturas também. Tinha conseguido criar uma equipa extraordinariamente interessante de agrónomos e de regentes agrícolas, nessa altura eram engenheiros técnicos agrários, e de um momento para o outro, recebo da sede, portanto, em Lourenço Marques, na capital de Moçambique, um despacho, do ministro do Ultramar a mandar extinguir todos os trabalhos que estavam a ser realizados em Moçambique sobre a cultura do café, e a justificação, para mim, era absolutamente absurda, é que, Moçambique não podia produzir café, só podia produzir chá e que Angola, só podia produzir café e não chá e que, portanto, eu entregava todo o material móvel, imóvel, as edificações, tudo o que tinha sido construído com dinheiro da delegação dos serviços de agricultura e acho, a uma junta de planeamento qualquer, e eu era transferido para Angola para ir trabalhar em café em Angola, uma vez que eu me tinha especializado na cultura do café, depois do estágio em Angola.

Interessante, a minha mulher então olhava para mim, eu dei conhecimento à minha mulher, e ela admirou-se de eu ter ficado impávido e sereno depois de ter recebido uma notícia daquelas. Aquilo era destruir o sonho que eu tinha acalentado durante 10 a 12 anos, que era pensar que Moçambique podia tornar-se a segunda colónia produtora de café, mas não de robusta, sim de racemosa, que eu continuo a considerar uma espécie extraordinária de Moçambique, e de arábica. O racemosa nas zonas arenosas do litoral, em que não há culturas ricas que se possam fazer naquelas condições, há só as culturas alimentares que mantêm a população. As populações locais ficavam com meio de ganharem dinheiro vendendo o café racemosa a um preço que era relativamente bom para as famílias. E o arábica, que era uma cultura que também estava a ocupar aqueles fazendeiros que trabalhavam em pequenas fazendas de chá, mas que não tinham condições para criar aquelas grandes unidades de benefício do chá, que estavam nas grandes empresas, que eram, salvo erro, três: Chá Moçambique, Chá Gurué e a outra não me ocorre. Essas empresas compravam a folha do chá aos pequenos agricultores por um preço irrisório, de maneira que, eles sentiam quando surgiu a hipótese de fazer outra cultura, que era a cultura do arábica, em que a estação de benefício eles podiam fazer facilmente, e não estarem dependentes do preço que fixavam as grandes empresas, eles começaram todos a relaxar o aspecto do chá e a meterem-se todos para café. E o que é verdade é que, eu lembro-me de uma estimativa que se fez na altura, pouco antes de haver esse despacho do Ministro, havia já uns 5.000 hectares de arábica na Alta Zambézia, incluía: Gurué, Tacuane, Nauela, Milange, etc., as áreas principais de difusão do arábica.
 
Mas, como eu estava a dizer, eu, praticamente, fiquei na mesma. E disse: bem, agora tenho que tratar de fazer inventário de tudo o que a delegação tem, para fazer a entrega, para depois, a gente então embarcar para Angola. Por essa altura já tínhamos 2 filhos. Telefonei para a Estação Experimental, chamava-se Alverca, o local onde estava a Estação Experimental do Gurué de café e disse: eu vou aí para vos ajudar a fazer o inventário, porque havia os camiões, havia tratores, havia os edifícios, aquela coisa toda, ia ver como é que se fazia aquilo, bem, eu não percebia nada de inventários, mas levava uma pessoa para orientar a fazerem aquele trabalho da inventariação das coisas para a entrega. Portanto segui, normalmente, de carro, com o motorista dos serviços, para o Gurué, para a Estação Experimental, uns 400 km de onde eu morava.
 
Chego lá, montei logo a máquina, para aquilo estar tudo a funcionar, e tudo muito bem, e só ao fim de uma semana é que me deu uma tontura. Ora, um sujeito com 35 anos, cheio de energia, a mexer por todos os lados, sabia lá o que era uma tontura. Deu-me a tontura, eu parei um bocadinho, fiquei assim à espera e a tontura foi-se embora, bem, eu pensei, isto é qualquer coisa que eu comi, mas o que é verdade, é que depois, passada meia hora ou coisa assim, deu-me outra tontura e o que é verdade é que a segunda já me preocupou um bocadinho. Mas ainda me preocupou mais quando, me deu um quarto de hora depois, 5 minutos depois, e a páginas tantas, era uma tontura permanente. Perdi totalmente a capacidade de dirigir qualquer coisa, só tive energia para dizer ao motorista para pegar no carro, meter-me lá dentro. Deitado no banco de trás, fiz o trajecto directo para minha casa em Quelimane, que era a 400 km. Lá fez os 400 km e lá me entregou à minha mulher. E aí é que entrei numa fase muito complicada porque, de um momento para o outro, uma pessoa que tinha aquela energia toda, vendia saúde e que nunca tinha tido problemas, como é que tinha ficado um chaço assim de repente? Perdi as forças, não conseguia levantar os braços, de maneira que, a minha mulher mandou chamar um médico lá a casa.”

A entrevista continuou e a partir dela, a neta Catarina escreveu um pequeno texto que é a belíssima história de uma vida.
 
A vida do meu Pai, que faria hoje 100 anos.

Saudades



“Perguntava muitas vezes se eramos felizes.
Preocupava-o não o sermos.

Para ele a felicidade nada tinha de supérfluo.
Fazer os outros felizes, respeitá-los e ser fiel eram a sua forma de ser e estar na vida, a fórmula correcta para descobrir a felicidade.

O outro era o lado maravilhoso da vida, da sua vida.

O privilégio foi nosso.
O lado maravilhoso da sua vida fomos nós.
Foi assim que nos fez sentir desde sempre e até ao fim.
E é assim que nos sentimos hoje.

Vivemos com saudade.
Mas celebraremos a vida e a felicidade.
Por ele e por causa dele.”

As palavras são da neta Catarina.
As saudades são de todos nós.