sexta-feira, 1 de novembro de 2024

A crónica da minha extinção

 

No final de 1976, estava eu nos Açores como chefe do Serviço de Máquinas da corveta “João Roby”, quando decidi concorrer ao curso de engenheiro electrotécnico naval, na Naval Postgraduate School da Marinha dos EUA, em Monterey, Califórnia. Se fosse seleccionado e concluísse com sucesso o curso e o respectivo estágio, ingressaria depois na classe dos engenheiros de material naval do quadro de oficiais do activo da Marinha.

Após ter sido escolhido para frequentar o curso em Monterey, as chefias da Marinha decidiram que seria mais útil obter o grau de Master of Science in Mechanical Engineering em vez de Electrical Engineering, como inicialmente previsto. Em consequência fui matriculado no programa de Mechanical Engineering da Naval Postgraduate School onde obtive os graus de Master of Science in Mechanical Engineering e Mechanical Engineer, em 1979

Entretanto, para consagrar a decisão que a Marinha tomou em relação a mim e a outro camarada, o Estatuto do Oficial da Armada (EOA) foi alterado pela Portaria 76/79, de 12 de Fevereiro, tendo em vista a “criação de um ramo de engenheiro mecânico na classe de engenheiros de material naval”. Para além dessa criação, foram definitos os requisitos para o concurso e ingresso dos oficiais no novo ramo. 

Depois de ter preenchido todos esses requisitos, em 1980 ingressei na classe de engenheiros de material naval, no ramo de engenheiro mecânico naval, passando a exercer as funções que o EOA atribuía aos oficiais daquele quadro.

Podem por isso imaginar o meu espanto quando, seis anos depois, ao ler a Ordem da Armada, tomei conhecimento de que pela Portaria 59/86, de 20 de Fevereiro, era “extinto o ramo de engenheiro mecânico naval da classe de engenheiros de material naval, criado pela Portaria 76/79, de 12 de Fevereiro”!

Sem qualquer aviso ou explicação prévia, fiquei a saber pela Ordem da Armada que a minha carreira naval estava irremediavelmente comprometida. Para além da extinção do meu ramo profissional e das respectivas funções, a Portaria do Ministério da Defesa Nacional não estabelecia qualquer medida transitória para os oficiais, no caso dois, que tinham ingressado de forma regular e de acordo com as regras definidas no EOA, no quadro da classe de engenheiros de material naval, como engenheiros mecânicos navais!

Claro que solicitei imediatamente o esclarecimento da minha situação na Marinha dado que tinha deixado de ser abrangida pelo EOA, mas ninguém conseguiu dar uma explicação razoável. Foi aliás evidente a atrapalhação de quem esteve envolvido na elaboração do diploma, desde logo da divisão do EMA de onde emanou.

Após quatro meses de tentativas dos responsáveis para justificar o injustificável, foi publicada uma nova Portaria 270/86, de 4 de Junho, que repetia a anterior com dois acrescentos: uma “desculpa de grumete” dando conta que “a Portaria 59/86, de 20 de Fevereiro, (…) por lapso, não continha o n.º 3.º que dela fazia parte integrante no projecto” e o tal n.º 3.º a esclarecer que “enquanto se verificar a existência, no quadro da classe de engenheiros de material naval, de oficiais habilitados com o curso de engenheiro mecânico naval são-lhes aplicáveis as disposições legais que sobre o extinto ramo de engenheiro mecânico naval se encontravam em vigor e manterão as letras designativas do ramo a que pertenciam.”

Assim ficou (mal) esclarecida a minha situação estatutária na Marinha e por isso, a partir daquele momento, mantive bem visível no meu gabinete de trabalho a ilustração, feita a partir da caricatura oferecida pelo camarada e amigo Nelson Leal, que traduzia fielmente o que sentia: estava extinto! 

2 comentários:

  1. Mais um exemplo da incompetência e falta de horizontes que então caracterizavam a Marinha, incapaz de encontrar o seu rumo, o que se reflectia na desorganização interna e na busca de "lugaritos" por um grupito de oficiais que deveriam, antes de mais, procurar para a Marinha o equilíbrio funcional decorrente da proverbial expressão de "nem 8, nem 80"....
    A eles devemos, em parte, o Estado a que chegámos.

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