sexta-feira, 18 de outubro de 2024

As (contra)partidas da vida



A vida propicia experiências diversas e inesperadas, umas boas, outras más, umas marcantes, outras nem tanto. Destas últimas, a maior parte é atirada para o baú do esquecimento e só circunstâncias muito particulares nos fazem revisitá-las. É o caso desta vivência que as recentes notícias sobre o julgamento do processo BES/GES me levaram a retirar do baú.

Algures a meio da primeira década do século XXI, tinha deixado a Marinha há poucos anos e trabalhava numa empresa de sistemas e tecnologias de informação, conheci um tipo simpático, da minha idade, de sua graça, Miguel. Era consultor de uma empresa do Grupo Espírito Santo (GES), a Escom - Espírito Santo Commerce, presidida por um seu irmão, também Miguel. Dizia o Miguel que eu conheci que todos os homens daquele ramo da família eram Miguel… istas.

O nome Miguel tem para mim um significado especial, mas, para além disso, o Miguel que eu conheci era naturalmente simpático. Apesar de se movimentar num meio politico-financeiro e representar interesses de que eu desconfiava, era de uma simplicidade desconcertante. Dizia que gostaria de ter sido militar, mas só descobriu a vocação depois do 25 de Abril, quando já não tinha idade para isso. Depois de passar pelo MRPP, onde conheceu gente conspícua da política como o Durão Barroso ou a Ana Gomes, dedicou-se a observar o mercado dos equipamentos militares, convencido de que Portugal um dia iria comprar helicópteros e submarinos.

De facto, a Escom acabou por intermediar a compra dos submarinos ao consórcio alemão GSC e dos helicópteros EH101 à Agusta-Westland, e o consultor Miguel apareceu na empresa onde eu trabalhava com a incumbência de nos fazer participar no programa das contrapartidas daquelas aquisições. Em tese, os fornecedores dos submarinos e dos helicópteros tinham de assegurar negócios com empresas portuguesas num montante igual ao valor daqueles contratos de aquisição (muitas centenas de milhões de euros!).

O Miguel não hesitava dizer que não percebia nada de contrapartidas, mas que apesar disso era o único consultor da Escom no assunto. E afirmava que o BES era o banco que podia fazer com que as contrapartidas resultassem, mas acrescentava logo que o BES não percebia nada de contrapartidas!

Fosse porque o negócio das contrapartidas nunca me entusiasmou, fosse porque o Miguel e a Escom também se afastaram dele porque, segundo o Miguel, não se queriam ver envolvidos nos esquemas de “facturas falsas” que, de acordo com o Ministério Público, algumas empresas terão cobrado como contrapartidas dos submarinos, nunca mais o encontrei.

Uns anos depois, em 2014, soube que participou na repartição de 16,5 milhões de euros, provenientes do consórcio alemão GSC, divididos equitativamente entre quatro responsáveis da Escom. O conselho superior do GES terá ficado com 5 milhões.

Cerca de um ano depois, o Miguel que eu conheci entrou com um processo de insolvência pessoal na Instância Central na 1ª Secção do Comércio em Lisboa. A insolvência do Miguel foi apresentada com um único credor: o Novo Banco, sucessor do BES.

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