segunda-feira, 6 de maio de 2024

O Comodoro e o Tarrafal

 


Nas conversas com os jovens do “Semear Abril” costumo ilustrar a violência da repressão salazarista com a história da prisão do meu primo Benjamim Inácio Garcia na "Colónia Penal" do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. O Benjamim fez parte do segundo grupo de prisioneiros que inaugurou o terrível campo de concentração.

O Benjamim trabalhava como carpinteiro de moldes do Arsenal da Marinha quando, em 1935, aos 18 anos de idade, foi preso “por ordem superior” e mandado para a então Fortaleza Militar de Peniche. Foi absolvido e libertado em Abril de 1936 por um Tribunal Militar, mas um ano depois foi "preso novamente para averiguações, recolhendo à cadeia do Aljube". Embarcou para Cabo Verde, na segunda leva de presos que inaugurou a "Colónia Penal" do Tarrafal, em Junho de 1937, sem julgamento. Sete anos depois, em Outubro de 1944, regressou a Portugal, tuberculoso e em fase terminal de vida. Um mês depois, em 1 de Novembro de 1944, foi finalmente julgado, “tendo sido condenado na pena de 23 meses de prisão correcional, dada por expiada com a prisão preventiva de 7 anos e 238 dias e na perda dos direitos políticos por 5 anos”. Foi libertado em 7/11/1944.

O que conto aos jovens sobre a forma como a ditadura salazarista usou o Tarrafal para destruir a vida do Benjamim durante mais de 7 anos sem julgamento, à semelhança de muitos outros portugueses, consta da sua ficha prisional, uma das 29 510 fichas dos presos pela PVDE/PIDE/DGS entre 1934 e o dia 18 de Abril de 1974 que a Torre do Tombo disponibilizou online. No entanto, não costumo contar como o Tarrafal foi encerrado depois do 25 de Abril, no dia 1 de Maio de 1974, com a libertação dos últimos prisioneiros políticos do Estado Novo.

O principal responsável por essa libertação foi o Comodoro Pedro Fragoso de Matos que conheci em 1970, quando entrei na Escola Naval. Como chefe de curso tive oportunidade de contactar com alguma frequência com o Comodoro Fragoso de Matos, então Comandante da Escola Naval, tendo ficado com uma boa impressão sobre o seu carácter.

Era um homem com consciência humanista, que exercia o cargo com a preocupação de justiça e de respeito pelos alunos, permitindo a estes o exercício de liberdades de expressão e manifestação que não eram vulgares em escolas militares. E fê-lo de tal maneira que ouvi oficiais apoiantes da ditadura afirmarem que o nosso curso estava perdido (para a causa deles) por ser o "curso do Fragoso de Matos".

No dia 1 de Maio de 1974, o Comodoro Fragoso de Matos era o Comandante-Chefe das Forças Armadas em Cabo Verde e Encarregado do Governo na sequência da demissão do anterior Governador depois do 25 de Abril. Apesar das pressões da Metrópole, em particular do Presidente da República, General Spínola, e dos círculos mais conservadores de Cabo Verde (alguns militares e funcionários da administração colonial), o Comodoro Fragoso de Matos tomou a corajosa decisão de libertar todos os prisioneiros políticos que ainda estavam no Tarrafal.

No dia seguinte comunicou a sua decisão a Lisboa num telegrama com a classificação de “secreto”. Nele dava conta de que “foram restituídos liberdade todos presos políticos Tarrafal em 1 Maio às 15 horas 30 [minutos].” E justificava: “Esta decisão, […] teve consideração perigosa explosiva acuidade situação em crescente irreprimível pressão população activa e comprovada insuficiência meios controlar possível generalização distúrbios.” Por fim propunha “colocação minha disposição máxima urgência transporte aéreo fim serem remetidos Estado Angola” treze dos libertados, naturais daquele território.

No mesmo dia o Comodoro Fragoso de Matos recebeu a resposta de Lisboa: “Informo Vexa JSN fixou seguinte interpretação sobre aplicação amnistia presos políticos: Decreto Lei JSN determina que todos presos políticos cujos crimes se enquadrem nº 2 artº 1 aludido Decreto-Lei sejam imediatamente restituídos liberdade. Não são abrangidos situações ligadas cometimento actividades subversivas violentas."

Tarde piaram…

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