quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Pódio





Dos meus livros de 2014?
Em terceiro lugar "O Capital no Século XXI", de Thomas Piketty, um ensaio sobre a realidade.
Em segundo, "Galveias", de José Luís Peixoto, um romance da portugalidade.
Em primeiro, a edição bilingue de "As Portas Que Abril Abriu" de Ary dos Santos, pelo Portuguese Studies Program do Institute of European Studies da University of California, Berkeley, um poema à realidade, à portugalidade, e acima de tudo, à Liberdade!

Sobrevivência



Em 1872, Émile Boutmy definia assim a missão do ensino superior da ciência política:
"Constrangidos aos direitos da maioria, as classes que se consideram a si próprias como classes superiores não podem conservar a sua hegemonia política se não invocarem o direito do mais capaz. É preciso que, por trás do fórum decrépito das suas prerrogativas e da tradição, a vaga da democracia enfrente uma segunda muralha feita de méritos brilhantes e úteis, de superioridade cujo prestígio se impõe, de capacidades de que não possamos privar-nos se não estivermos dementes."

Foi por instinto de sobrevivência perante o avanço da democracia que as classes privilegiadas abandonaram o ócio e inventaram a meritocracia.

Hoje basta dominarem a banca e as instituições supranacionais.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Ladrões há 150 anos



"Toda a gente sabe que o frio está insuportável, e que quem não anda bem agasalhado soffre inclemencias. Pois o sr. José Garrido, sebeiro, tambem é d'esta opinião, e carecendo de albernoz envergou hontem um na feira da ladra, enamorou-o, e ficou captivo.
Captivo?
- Captivo do bom panno do albernoz, e captivo pelo ter roubado ao seu proprietario o sr. Francisco Prudencio Apolinario, respeitavel adello, que estabelece a sua tenda ambulante n'aquelle mercado de bagatellas todas as terças feiras."

Como eram mais interessantes as notícias sobre ladrões há 150 anos! E  nesse tempo podia ainda ler-se no Diário de Notícias:

"Não temos noticia de nenhum acontecimento notavel da politica do nosso paiz. Continuam a circular boatos desencontrados àcerca da substituição de algum ou alguns dos cavalheiros que constituem o gabinete, indigitando-se sobretudo vários nomes para a pasta da marinha, e affeiçoando-os cada grupo às suas predilecções pessoaes ou partidarias. A espectativa publica, porém, está fixa na abertura do parlamento."

Já então o mar era um desígnio dos boatos nacionais!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Quando os Pais Acreditavam no Menino Jesus

Namaacha, Natal de 1957

O miúdo gostava do Natal. Por muitas razões, sabe-se lá qual a mais importante.

Era uma época em que sentia os pais ainda mais felizes. Estivesse a família onde estivesse, fosse em Lourenço Marques, em Inhambane, em Palhais, na Namaacha ou em Quelimane, era sempre um tempo de alegria.

Os pais diziam que naquela noite vinha o menino Jesus e que deixava prendas para quem se portasse bem. Para o receberem, adultos e crianças, preparavam um presépio com os materiais apanhados no mato. Faziam o melhor que sabiam e podiam para criar o presépio mais bonito das redondezas.

E a verdade é que, fosse pela beleza do presépio ou fosse pelo comportamento do miúdo, ano após ano, fizesse calor ou fizesse frio, em Moçambique ou em Portugal, o menino Jesus não falhava. Em cada dia de Natal, ao acordar, o miúdo ia espreitar o sapato deixado junto do presépio e lá estava ele, rodeado de prendas.

Seguia-se o ritual da abertura dos embrulhos, uma festa para todos, em especial para os pais. O miúdo não percebia bem porquê, eram só brinquedos para ele e para a irmã, mas parecia que os pais ficavam tão ou mais felizes do que eles.

O Natal tinha assim uma magia que o miúdo não queria perder. Mesmo quando a escola das brincadeiras de rua lhe ensinou que o menino Jesus não existia e que eram os pais que lhe davam os brinquedos, o miúdo calou-se bem calado e continuou como se nada soubesse.

Mas o avô José Francisco é que não estava muito satisfeito com a situação.
– Um matulão e ainda acredita no menino Jesus? Não pode ser! – terá ele pensado. E assim que achou oportuno, perguntou de chofre:
– Ouve lá, tu ainda acreditas no menino Jesus? Claro que o miúdo não podia mentir, em especial àquele avô, e respondeu naturalmente:
– Não, mas tenho de fingir por causa dos meus pais.

O miúdo não sabe o que o marcou mais, se a expressão de gozo do avô se a desilusão dos pais quando este lhes contou o que tinha descoberto. O que sabe é que o Natal não voltou a ser o mesmo, apesar do menino Jesus ter continuado a trazer brinquedos para a irmã mais nova.

Que saudades de quando os pais acreditavam no menino Jesus!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A Cerca Furada


Consegui viver seis décadas sem perceber o mundo da finança nem entender “financês”, fosse ele nacional ou internacional. Confesso que até tinha algum desdém por quem se preocupava com as questões do capital. Gosto de pensar que é uma característica genética mas sou capaz de admitir algum preconceito ideológico.

A crise financeira e a torrente de termos anglo-saxónicos debitados pelos analistas e comentadores que brotam na comunicação social veio perturbar, e de que maneira, o meu sossego. Os swaps e os futures, os hedge e os private equity funds, a leverage e a debt, passaram a martelar-me a cabeça e obrigaram-me a fazer o que julgava ser impossível. Primeiro procurar o significado dos palavrões (abençoados sites da Investopedia, do Financial Times Lexicon, e outros similares!), depois ler artigos da especialidade cada vez mais técnicos (pasmo-me!) e, por fim, estudar livros de economia! Estou empanturrado de matéria indigesta mas conformado porque conclui que não sou o único ignorante; estou acompanhado pela maioria dos políticos, dos analistas e dos comentadores responsáveis pelo meu desassossego.

Recentemente, o colapso do BES colocou na ribalta pública o conceito do ring fence. Teria sido uma das várias orientações do banco central que entrou a 100 e saiu a 200 das cabeças dos administradores do grupo. Não certamente porque estivessem no mesmo estado de ignorância que eu. Acredito até que o conceito lhes era bem familiar, em especial quando transferiam e protegiam a sua riqueza do lobo mau dos impostos, de preferência em offshores ou no santuário luxemburguês.

Mas eu, talvez por influência das bandas desenhadas juvenis, sempre que ouvia falar em ring fence pensava nas pradarias americanas e nas artes de conduzir e cercar o gado. Vinham-me logo à memória histórias fantásticas, de um mundo distante, cheio de bons e maus, ladrões e justiceiros. É certo que nelas apareciam sempre uns pistoleiros feios e malandros mas o herói, forte e invencível, punha-os na ordem e acabava escolhido pela miúda mais gira.

Depois do estoiro do império dos primos e associados, fiquei a saber que ring fence é afinal um faz-de-conta numa história sem graça nenhuma. Uma história onde só há bandoleiros, onde não há herói nem miúda gira. 
Que desilusão!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Se eu pudesse...




Se eu pudesse
ir para a escola
quando me apetece
jogar à bola
sem me chatear com quem me aborrece!


Se eu pudesse
fazer magia
para tornar a fruta que apodrece
torná-la madura e entregar-me a uma matilha.

Se eu pudesse
viver num campo
chamar um ganso
que me leve para lá do monte
até que fique com espanto.

Se eu pudesse
proibir o mal
afastar o diabo
amar os outros
e tornar o mundo melhor.

Se eu pudesse
enganar a chuva
para tornar a chuva
em sol, montar uma
piscina, convidar os que
morrem de calor e mergulhar.

Se eu pudesse
ir a Bruxelas para
visitar o meu pai,
a Paris para ver a torre Eiffel e a
Itália ver a torre de Pisa.

Se eu pudesse
mas não posso
mas não faz mal
pois no futuro vão
inventar tudo e mais alguma coisa, 
mas até lá vou ser o que sou
o planeta é o que é.

E os meus sonhos não vão desaparecer,
mas sim duplicar.

De Mafalda Bettencourt Gamito (9 anos)

sábado, 22 de novembro de 2014

TI Silent 700

 


Hoje tropecei num catálogo do terminal da TI que usei em 1979, na fase final da minha tese, para trabalhar no IBM S/360 a partir de casa. 

Foi um avanço tremendo relativamente aos leitores de cartões perfurados, mas havia quem não gostasse de ficar com a linha telefónica ocupada, sem poder falar com as amigas!

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Sombras de Carlos Ricardo

 A arte é do Carlos Ricardo, a bola e a bicicleta são dos netos.












sábado, 20 de setembro de 2014

Coisas de Menina

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Para a inscrever numa atividade extra do jardim-de-infância, a mãe perguntou: – Queres inglês, motricidade – os miúdos hoje sabem que motricidade é ginástica – ou karaté?
– Karaté! – respondeu a menina, rápida e segura. – Porquê? – Para derrotar o Tomás. O Tomás é o irmão mais velho, sete anos mais velho!

É assim a Caracoletas. Muito sensível, mas forte e determinada. Sabe o que quer e, sempre que pode, manda.
Vai ser um quebra-cabeças para os namorados. O avô que o diga, precisou de se empenhar a sério para a conquistar!

Até esta neta, a sexta, tudo tinha corrido bem. A ligação com o avô estabelecia-se facilmente nos primeiros meses de vida dos netos, sem sobressaltos. Mas com esta houve uma mudança radical. A menina não queria ir para o colo do avô e, sempre que o via, virava-lhe as costas. E quando o avô a pegava, era um berreiro tremendo. O avô bem tentava, mas nada. Os banhos e os jantares das quintas-feiras, que com os irmãos corriam sempre bem, com a Caracoletas eram um calvário.

Mas o avô não podia nem queria desistir. Estava certo de que era uma questão de tempo e de muito amor. Continuou persistentemente a cortejar a neta e, perto do ano, deu-se o clique. Primeiro uns sorrisos, depois o estender dos braços e por fim o aconchegar saboroso no colo do avô. 
Ficou uma bela paixão entre a neta e o avô que se revela nos mais pequenos pormenores.

Coitados dos futuros pretendentes. Para além das atribulações do namoro, vão ter de aprender uma técnica de defesa pessoal!

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O “Pirata”

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O trabalho do pai levou-o muito cedo para terras distantes.
Ao contrário do que aconteceu com os outros netos, o avô só estava com o menino a espaços e por períodos curtos. Os poucos encontros entre eles eram bem aproveitados, mas mesmo assim o avô tinha receio que a ligação com aquele neto não fosse tão robusta como as que criou com os outros.

Tinha o menino um ano quando a família veio passar um par de semanas em Portugal. O menino saiu do aeroporto a dormir e assim se manteve até à porta da casa onde a família ia ficar. Enquanto os pais foram buscar a chave da casa, o menino permaneceu no carro, vigiado por uma amiga da mãe.
Por pouco tempo. Assim que o menino acordou e viu que estava num ambiente desconhecido, desatou a chorar. A amiga da mãe, aflita, foi procurar os pais para o acalmarem.

O avô, que estava por perto, aproximou-se do menino e falou com ele. Instantaneamente, o choro parou e no rosto do menino surgiu o sorriso mais bonito que o avô tinha sentido.

Os receios do avô esfumaram-se naquele momento. E o sorriso ficou para sempre!

sábado, 6 de setembro de 2014

Baptismo de Voo


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Apesar do ruído do motor, ouviu-se alto e claro:
– Dói-me a barriga, quero fazer cocó!
A avioneta pilotada pelo pai acabara de levantar para o baptismo de voo do menino mas aquela proclamação não deixava alternativa, tinha de voltar à pista do campo de aviação. O amigo que o levava ao colo, no lugar de trás, não podia sofrer as consequências. Mas logo que o menino sentiu os pés em terra e correu para a mãe, foi-se embora o medo e com ele, todas as aflições fisiológicas.

As alturas e o espaço exíguo não eram claramente a sua zona de conforto, mesmo gostando muito de aviões. Sempre conviveu com as avionetas do aeroclube, faziam parte do seu imaginário infantil. Não tanto o tristonho “Filipito”, um Piper Vagabond baptizado com o diminutivo do filho do governador, tiques do poder colonial, mas muito o reluzente Chipmunk. Para o menino, o mundo mágico dos aviões era acima de tudo o Chipmunk e só depois duas ou três avionetas sem muita graça.

Estava habituado a passar os domingos a ver o pai subir e descer nos ares naquelas máquinas de tela e metal, a tentar a aterragem perfeita. Sabia também que o pai saía naquelas avionetas para ir trabalhar. E principalmente sabia que a mãe ficava muito feliz e ele voltava a ter o colo do pai, quando uma daquelas avionetas sobrevoava a baía e acenava com as asas, antes de seguir para o campo de aviação.

Mas nem sempre as coisas correram assim. Uma tarde, terminado o trabalho no campo experimental que instalou a centenas de quilómetros de casa, o pai deu início ao procedimento de preparação da avioneta. Feitas todas as verificações, pediu ao regente agrícola que rodasse a hélice mas o motor da avioneta não pegou. Novas verificações, novas insistências, mas o motor teimava em não responder.

Quando finalmente e depois de muitas tentativas, o motor resolveu trabalhar, tinha ficado tarde para a viagem de regresso. A alternativa era voar na manhã seguinte mas não tinha forma de avisar quem o esperava no destino. Por isso, após um momento de reflexão, fez-se à pista e levantou voo, confiante que seria poupado à lei de Murphy.

Mas enganou-se redondamente. Ao fim de pouco tempo de voo solitário, levantou-se um vento que contrariava o avanço do avião e que quase o parava quando a rajada era mais forte. O tempo foi passando com o combustível a esgotar-se e o pai percebeu que não iria alcançar a cidade antes do anoitecer. Era um problema sério porque nem o avião tinha faróis nem a pista de aterragem tinha iluminação.

Contornou a larga baía para manter as referências no terreno, não sobrevoou a casa nem acenou como de costume e dirigiu-se logo para o campo de aviação. Ficou muito admirado ao ver uma fila de faróis de carros a deslocarem-se na mesma direcção. Soube depois que era uma cadeia de ajuda organizada por um amigo, alertado pela mãe do menino quando viu a noite a cair sem sinais da avioneta do marido.

E assim alcançou o campo de aviação com a gasolina no zero, mas com a pista iluminada pelos faróis dos carros, uns ao lado dos outros. Como não sabia a que altura estava do solo mas tinha uma ideia aproximada da altura do hangar, passou rente ao topo do telhado e fez-se à pista. Quando estimou que estava perto do solo, deixou a avioneta cair em perda.

O embate com o solo foi um tanto violento, muito diferente da suavidade domingueira, mas não houve prejuízos. O problema mais sério foi acalmar a mãe do menino quando chegou a casa.

Quanto ao menino, acabou por perder o medo de voar nas muitas viagens aéreas entre continentes e um dia, já adolescente, pensou tirar o brevet. Mas a mãe foi peremptória:
– Nem penses nisso, para sustos já me chegou o teu pai!

E assim se perdeu um potencial marinheiro aviador.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O Requerimento

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Os cadetes davam os primeiros passos da formação militar e naval na Escola Naval. Sabe‑se lá porque estranhas razões, cinquenta e um jovens decidiram juntar-se num austero edifício na mata do Alfeite. Vieram dos locais mais díspares, do nordeste transmontano às terras moçambicanas. Se alguém tivesse calculado a probabilidade de cada um deles se encontrar com os outros cinquenta, teria concluído que era inferior à de sair o jackpot do Euromilhões! Mas apesar da baixíssima probabilidade da ocorrência, ali estavam num novo mundo, a aprender a conviver uns com os outros. Havia de tudo: os altos e os baixos, os gordos e os magros, os militarões e os paisanos, os vivaços e os tímidos, os brincalhões e os alvos das brincadeiras.
De entre os ingénuos, houve um que se destacou logo no primeiro dia das provas de ingresso, quando pediu ao candidato sentado na carteira da frente que o deixasse copiar as respostas aos testes psicotécnicos. Depois, no mês de instrução militar básica, passou a ser a vítima de muitas das partidas. Por exemplo, quando o comandante de companhia pernoitava na Escola Naval como oficial de serviço, o candidato acordava-o a meio da noite, ansioso, só porque os brincalhões do costume passavam o serão a convencê-lo que tinha sido excluído pelas razões mais estapafúrdias. As alvoradas prematuras do oficial de serviço tinham naturalmente consequências para o pobre candidato que, para além da chacota dos pares, sofria as represálias do oficial, em regra consubstanciadas numa multa convertida em bebidas do bar. Mas apesar dos percalços, o candidato atingiu finalmente a honrosa condição de cadete.
As semanas dos cadetes eram passadas com aulas teóricas e práticas, educação física, ordem unida, desporto, estudo e o que já esqueci, tudo o que servisse para ocupar um grupo de jovens habituados a tudo menos ao regime intensivo de uma escola militar. Mas como aquilo era Marinha, tinham de ir mais longe. E nada seria melhor que ocupar um ou outro fim de semana com embarques no draga-minas Ribeira Grande, a navegar entre o Alfeite e Setúbal, para habituar os estômagos mais sensíveis ao balanço. O Ribeira Grande era um navio velho, construído em 1957 nos estaleiros da CUF (atual NavalRocha) a partir de planos ingleses e não primava pela habitabilidade. Os espaços exíguos e as péssimas condições de navegabilidade propiciavam o tratamento de choque dos cadetes nos primeiros contactos com o mar.
Logo que foi anunciado o primeiro embarque, os brincalhões do costume vislumbraram uma excelente oportunidade para uma nova partida: decidiram convencer o nosso cadete de que era possível embarcar num navio moderno desde que fosse apresentada oficialmente uma razão ponderosa que desaconselhasse o velho draga-minas. E se bem o pensaram, melhor o concretizaram. Depois de devidamente industriado pelos camaradas, o cadete foi falar com o “penico” (o mais antigo do curso), pedindo conselho sobre a entrega do requerimento que tinha preparado. Pensava entregá-lo na secretaria do Comando, o que o “penico” percebeu logo ser arriscado para o camarada. Convenceu-o a fazê-lo através do comandante de companhia, assim como assim o oficial já estava habituado aos desvarios do cadete.
E foi assim que em plena formatura para o almoço, o “penico” pediu autorização ao comandante de companhia para que o cadete lhe fizesse a entrega formal de um requerimento. O oficial anuiu e recebeu uma folha de papel almaço azul de 25 linhas, manuscrita e conforme os preceitos legais da época, onde o cadete requeria respeitosamente ao Senhor Comodoro Comandante da Escola Naval que o autorizasse a realizar o embarque de fim de semana numa das então modernas fragatas da classe “João Belo”, dado que não podia embarcar no Ribeira Grande por sofrer de … claustrofobia!

Não me recordo da extensão exata do castigo decretado pelo comandante de companhia mas estou certo que se traduziu numa conta calada no bar do refeitório. Quanto ao famoso requerimento, julgo que está algures entre os papéis que coleccionei na Escola Naval.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

O Avô de Todos

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Dizem que é de vez à terceira e de facto assim foi. Só ao terceiro soube o que era desfrutar plenamente os primeiros meses da vida de um filho.
O primeiro, o Miguel, concedeu-nos apenas dez dias muito agitados; talvez volte a essa vivência noutra ocasião.
O nascimento da segunda, a Joana, foi-me anunciado por mensagem, no centro de comunicações do velho USS Forrest Sherman, a navegar algures no Mediterrâneo. Foi devidamente festejado em Nápoles, mas apenas com amigos marinheiros americanos. Só a tive no meu colo a partir dos três meses e mesmo assim interrompido por várias ausências no mar, mais ou menos prolongadas.

Notícia do nascimento da Joana
Mas com a terceira, a Catarina, tudo foi diferente.
Vibrei com as primeiras contracções e alegrei-me com a ida para a maternidade na segunda-feira. Enervei-me com a espera na pequena labour room. Invejei as mães que entravam, pariam e saíam, enquanto a João continuava com contrações fortes, mas sem dilatação, hora atrás de hora. Ironizei com o falhanço de todas as técnicas de coaching que aprendi nas aulas de preparação para o parto. Fiquei frustrado com a rejeição das várias tentativas de ajuda, até das massagens com a bola de ténis, porque a João já só queria que a deixassem em paz. Refilei contra a passividade dos médicos americanos, mesmo quando os provocava dizendo que em Portugal as coisas não se passariam assim. Na manhã de quarta-feira, fiquei com o coração apertado quando o monitor mostrou que o batimento cardíaco da bebé estava cada vez mais fraco. Preocupei-me com os preparativos para a cesariana, mas rejubilei quando, de repente, a meio do dia, tudo começou a correr bem: a dilatação completou-se, o batimento cardíaco da bebé normalizou e quase nem sobrou tempo para vestir a farpela para entrar na sala de partos.

A partir desse momento, foi a felicidade pura.
Assisti a um parto lindo. Todo o sofrimento tinha desaparecido do rosto da João. A Catarina nasceu perfeita, de uma brancura extrema. Cortei o cordão umbilical, peguei nela e mostrei-a à mãe. Esperei pelos primeiros testes, pus a primeira fralda e vesti a primeira roupa. Assisti aos primeiros momentos ao peito da mãe. Despedi-me e fui para casa descansar, felicíssimo!

Estava nessa altura no último ano da pós-graduação em engenharia mecânica, a preparar uma tese cheia de “semifusas” e com o título sinistro de “Finite Element Analysis Program (FEAP) for Conduction Heat Transfer”, enchendo e transportando caixas de cartões perfurados para serem engolidos por um ser criado pela IBM que vivia no centro de informática da Naval Postgraduate School em Monterey. Para os interessados em arqueologia, a tese jaz aqui

Claro que com a chegada da Catarina, as prioridades foram redefinidas. À terceira, estava finalmente a viver momentos inesquecíveis.
Acompanhava o esforço da mãe para lhe dar de mamar. Brincava com a João por ter conseguido ser a única a beber cerveja no hospital com receita médica, mas de facto, depois de muitas dores, algumas latas de cerveja e as massagens de uma possante enfermeira, a João conseguiu o que queria: dar de mamar à filha! E com tal sucesso que a Catarina nunca aceitou um biberão de leite, mesmo com fome!
Vivia cada momento dos seus primeiros meses de vida com grande intensidade. E só depois pensava no curso.

Procurei repetir o método com os netos. Julgo que com sucesso porque já me chamaram o avô de todos!

A Lição da Bicicleta

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Ensinou-a a andar de bicicleta, lembra-se?

Claro que sim, todos o sabemos mas eu senti vontade de perguntar porque viver é recordar.
A Joana ia fazer quatro anos, a Catarina estava quase a nascer e os avós não podiam perder eventos tão importantes. Só havia uma solução: voar 10 mil quilómetros até Monterey, custasse o que custasse!
E de facto custou uma mala cheia de prendas, desaparecida sem deixar rasto na trapalhada que se seguiu à desregulamentação da aviação comercial americana e que culminou com a greve e paragem total da United Airlines durante quase dois meses.

Mas como a menina não podia ficar sem uma boa prenda, os avós foram comprar uma bicicleta. E claro, uma bicicleta para durar, até porque o pai também tinha aprendido numa roda 26. A Joana, que estava num percentil elevado, parecia um mosquito em cima dela. Foi preciso instalar uns grossos calços de madeira para chegar aos pedais!
E como ter uma espileca e não saber andar nela não fazia sentido, lá foram, avô e neta, treinar para o pátio da La Mesa Elementary School, perto da nossa casa. E sem rodinhas, só com o avô a correr atrás da espileca.

Corria tudo muito bem porque o espaço era amplo e a Joana tinha um bom equilíbrio. A espileca rolava, mais ou menos a direito, e o avô e a neta sentiam-se cada vez mais entusiasmados.
Não fosse um poste solitário, plantado no meio de nada, e a manhã não teria história. Mas a lei da atracção universal aplicada ao pátio da escola de La Mesa fez com que a espileca se dirigisse para o poste solitário, contra todas as probabilidades e sem fazer caso dos gritos e dos esforços do avô!
Resultado: um grande trambolhão e perda de um incisivo central superior!
Mas apesar do choque e do berreiro, o avô não hesitou. Lavou a boca da neta com água fria até estancar o sangue, sentou-a de novo no alto da espileca e o treino continuou, como se nada se tivesse passado!
Não sei o que os manuais de pedagogia infantil dizem sobre estas situações mas sei que a Joana voltou para casa a conduzir a espileca, sem ajuda, segura e orgulhosa da sua nova capacidade e com um troféu na mãozita: o dente de leite cujo buraco só foi preenchido um bom par de anos mais tarde!


É esta, e muitas outras lições como esta, que reconheço na relação entre o avô Aníbal e a neta Joana. Por isso senti vontade de perguntar:
Ensinou-a a andar de bicicleta, lembra-se?

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O Tenente Martins


– Em Chaves achei uma chapa de chumbo chapada no chão; chapada a achei, chapada a deixei – era um dos trava-línguas que gostava de dizer ao netos, acentuando o sotaque da sua terra natal. Fazia-o com uma alegria e uma doçura que nada tinham a ver com o ar austero, por vezes carrancudo, que o Tenente Martins mostrava aos de fora.

O porte altivo e sério do Tenente Martins foi-lhe dado pela luta dura de um menino transmontano, feito homem num mundo estranho e hostil. A doçura e a alma boa foram-lhe dadas pelas mulheres da sua vida: a avó Joana que o criou e que revia na filha Maria da Conceição, a mãe Albertina, e a mulher Emília, o grande amor e companheira ao longo de 53 anos.

O José Francisco, de apelido Martins, foi o primeiro dos nove filhos gerados pela Albertina do Carmo, então uma bonita jovem de 18 anos. Nasceu no 24º dia de um Janeiro frio, faltavam dois anos para o século XX, e viveu a infância na casa dos avós maternos, na freguesia de Santa Maria Maior da Vila de Chaves.

O pai Francisco era um homem forte mas bruto, por vezes mau, mulherengo e desligado da família. Emigrou mais tarde para os EUA e quando regressou não quis saber dos filhos nem conhecer os netos. A mãe Albertina, uma mulher de trabalho, morreu no parto do nono filho, com 30 anos de uma vida muito sofrida.

Sempre que nascia um irmão, lá ia o menino José Francisco ajudar na casa dos pais, numa aldeia a quatro quilómetros de Chaves; quando deixava de ser útil, voltava para a avó Joana. Foi assim, entre o trabalho e o gosto pelo estudo, que o menino viveu uma infância dura e fez a instrução primária. Manteve sempre uma ligação muito estreita com a avó Joana até que a morte a levou aos 89 anos.

Com 14 anos, corria o ano de 1912, veio para Lisboa como marçano, à guarda do casal Bárbara Garcia e Carlos Inácio Marques, proprietários de uma sapataria na Rua de São Bento, no rés-do-chão da residência. Voltaremos a esta casa para conhecermos uma menina que marcou a vida do José Francisco.

A Bárbara, natural de Chaves, confirmou a tradição transmontana de entreajuda. Ainda sem filhos, o casal quis ajudar o José Francisco na aventura da grande cidade. Só viriam a ter um filho em 1917, o Benjamim Inácio Garcia, que mais tarde se tornou carpinteiro de moldes do Arsenal da Marinha e militante político. No final de 1935, esteve preso na Fortaleza de Peniche por "ordem superior" e alguns meses depois integrou a 2ª leva dos deportados que inauguraram o Campo do Tarrafal. Foi libertado em 1944, muito debilitado pela tuberculose.

Na primeira metade do século XX, a distribuição de alimentos nos centros urbanos era feita por uma vasta rede de mercearias. Os jovens do interior como o José Francisco, com dificuldades económicas, abandonavam as suas aldeias e famílias para servir como marçanos nas pequenas lojas. O marçano era um aprendiz de caixeiro de mercearia, pouco remunerado para além do alojamento no próprio estabelecimento ou na casa do patrão, com cama, comida e roupa lavada. O merceeiro era em regra uma pessoa remediada, simples e humilde, pouco culto mas educado.

Para além do trabalho na mercearia e na casa do patrão, cabia ao marçano José Francisco subir as íngremes escadas, de cabaz às costas, para entregar produtos aos fregueses. Sempre cumpridor, conquistou as boas graças dos patrões que lhe propiciaram condições para continuar a estudar e consolidar a profissão de empregado do comércio. Mas ele queria ir mais longe e em 1916, em plena 1ª Guerra Mundial, decidiu alistar-se na Marinha de Guerra.

Assentou praça na Armada em 6 de Maio de 1916 como Voluntário por 4 anos, sendo readmitido por períodos de 3 anos, sucessivamente, até atingir o posto de Sargento ajudante artilheiro em Julho de 1940. Em 28 de Abril de 1944 foi promovido a oficial, como Sub-tenente auxiliar. Reformou-se em 23 de Agosto de 1956, com 58 anos, como Primeiro tenente, para se dedicar à vida rural e agrícola na terra natal da mulher.

Ao longo de 40 anos de dedicação exclusiva, o Tenente Martins cumpriu uma carreira exemplar na Armada. E foi um dos heróis portugueses da 1ª Guerra Mundial.


Embarcado no “Augusto de Castilho” como 2º artilheiro, ele e os camaradas da guarnição do arrastão de pesca do bacalhau transformado em navio de guerra, enfrentaram um submarino alemão quando comboiavam o paquete Loanda em viagem do Funchal para Lisboa, em 23 de Março 1918; o submarino retirou. Em 20 de Agosto, lutaram contra outro submarino alemão ao largo do Cabo Raso; o submarino retirou.

Por fim, em 14 de Outubro, enfrentaram o cruzador submarino alemão U-139, um dos 3 mais poderosos da Marinha alemã, a 170 milhas a sul de Santa Maria (Açores), quando comboiavam o paquete San Miguel em viagem da Madeira para os Açores, com 206 passageiros e 54 tripulantes a bordo. No combate que se prolongou por mais de duas horas, perderam a vida o Comandante Carvalho Araújo e seis elementos da guarnição de 42 homens, o "Augusto Castilho" foi irremediavelmente danificado e posteriormente afundado, mas o San Miguel conseguiu alcançar incólume o porto de Ponta Delgada. Os seis artilheiros do navio foram louvados “por se terem distinguido entre toda a guarnição do caça-minas, pela energia, sangue frio e disciplina que mostraram durante todo o combate, não temendo abrir as culatras ao falharem as escorvas, a fim de não haver interrupção no tiro.” Ferido no combate, o 2º artilheiro José Francisco Martins foi condecorado com a Cruz de Guerra.

O Tenente Martins era um barra no trabalho e nos estudos. O jeito para a matemática justificou a alcunha do “Testa de Ferro” conferida pelos camaradas. Mas acima de tudo, foi sempre de uma honestidade extrema. Em 1921, ainda como 1º artilheiro, o Comandante do Cruzador Carvalho Araújo louvou-o “pelo procedimento honrado e digno do seu porte e das suas qualidades de carácter digno de apreço o que muito nobilitam a corporação a que pertence; entregando ao oficial de serviço uma carteira que continha 62$05 centavos que achara abandonada avante a qual pertencia ao 1º telegrafista nº 6993.”

Mas a faceta mais marcante do Tenente Martins foi a sua estatura humana. O carácter e a vida dura blindaram-no contra as injustiças e as traições, viessem de onde viessem. Soube sempre ultrapassá-las e concentrar o seu melhor no que para ele era essencial: o bem estar da mulher, dos filhos, dos netos e dos muitos que procurava ajudar.

Conheceu o amor da sua vida, a Emília da Conceição Inácio, ainda menina de 12 anos. Nascida em 12 de Fevereiro de 1905, numa aldeia no sopé da Serra de Montejunto, era filha de Mariana e de José, irmão de Carlos Inácio. Foi na casa deste, lembram-se do casal Bárbara e Carlos que visitámos na Rua de São Bento, que a viu pela primeira vez. Apaixonado, esperou que ela fizesse 18 anos para lhe pedir namoro. Casaram-se no 16º dia de Setembro de 1925 e tiveram dois filhos: Maria da Conceição, em 27 de Julho de 1927, e Joaquim Alberto, em 31 de Maio de 1934.

Foi a este núcleo familiar que o Tenente Martins dedicou o melhor de si. Austero e disciplinado, e aparentemente inflexível, era de uma compreensão extrema para com os netos. A eles e, em particular, ao mais velho, dava e perdoava tudo; até uma birra monumental quando, nas suas lides de floricultura, arrancou uma plantinha que o miúdo tinha resolvido pôr, sem dizer nada, num dos canteiros do terraço. As longas férias escolares e os Natais na casa de Palhais da avó Emília e do avô José eram sempre um tempo cheio para a miudagem. Carregavam as baterias de ar puro, de espaço e liberdade para brincar, e, acima de tudo, recebiam muito amor.

Na véspera do Natal de 1971, um acidente vascular traiçoeiro e inesperado derrotou o Tenente Martins. Perdeu o derradeiro combate mas não perdeu o rumo que, ainda menino, traçou para a sua vida. Na ambulância que o levou para o Hospital da Marinha na noite de 26 de Dezembro, com muito esforço, quis dizer ao genro Aníbal quanto o considerava. Mesmo nos últimos minutos de vida quis fazer bem aos outros e deixar as contas certas.

Hoje continuamos a sentir a doçura e a alegria com que dizia: − Em Txaves atxei uma txapa de txumbo txapada no txão; txapada a atxei, txapada a deitxei