Apesar do ruído do motor, ouviu-se alto e claro:
– Dói-me a barriga, quero fazer cocó!
A avioneta pilotada pelo pai acabara de levantar para o baptismo de voo do menino mas aquela proclamação não deixava alternativa, tinha de voltar à pista do campo de aviação. O amigo que o levava ao colo, no lugar de trás, não podia sofrer as consequências. Mas logo que o menino sentiu os pés em terra e correu para a mãe, foi-se embora o medo e com ele, todas as aflições fisiológicas.
As alturas e o espaço exíguo não eram claramente a sua zona de conforto, mesmo gostando muito de aviões. Sempre conviveu com as avionetas do aeroclube, faziam parte do seu imaginário infantil. Não tanto o tristonho “Filipito”, um Piper Vagabond baptizado com o diminutivo do filho do governador, tiques do poder colonial, mas muito o reluzente Chipmunk. Para o menino, o mundo mágico dos aviões era acima de tudo o Chipmunk e só depois duas ou três avionetas sem muita graça.
Estava habituado a passar os domingos a ver o pai subir e descer nos ares naquelas máquinas de tela e metal, a tentar a aterragem perfeita. Sabia também que o pai saía naquelas avionetas para ir trabalhar. E principalmente sabia que a mãe ficava muito feliz e ele voltava a ter o colo do pai, quando uma daquelas avionetas sobrevoava a baía e acenava com as asas, antes de seguir para o campo de aviação.
Mas nem sempre as coisas correram assim. Uma tarde, terminado o trabalho no campo experimental que instalou a centenas de quilómetros de casa, o pai deu início ao procedimento de preparação da avioneta. Feitas todas as verificações, pediu ao regente agrícola que rodasse a hélice mas o motor da avioneta não pegou. Novas verificações, novas insistências, mas o motor teimava em não responder.
Quando finalmente e depois de muitas tentativas, o motor resolveu trabalhar, tinha ficado tarde para a viagem de regresso. A alternativa era voar na manhã seguinte mas não tinha forma de avisar quem o esperava no destino. Por isso, após um momento de reflexão, fez-se à pista e levantou voo, confiante que seria poupado à lei de Murphy.
Mas enganou-se redondamente. Ao fim de pouco tempo de voo solitário, levantou-se um vento que contrariava o avanço do avião e que quase o parava quando a rajada era mais forte. O tempo foi passando com o combustível a esgotar-se e o pai percebeu que não iria alcançar a cidade antes do anoitecer. Era um problema sério porque nem o avião tinha faróis nem a pista de aterragem tinha iluminação.
Contornou a larga baía para manter as referências no terreno, não sobrevoou a casa nem acenou como de costume e dirigiu-se logo para o campo de aviação. Ficou muito admirado ao ver uma fila de faróis de carros a deslocarem-se na mesma direcção. Soube depois que era uma cadeia de ajuda organizada por um amigo, alertado pela mãe do menino quando viu a noite a cair sem sinais da avioneta do marido.
E assim alcançou o campo de aviação com a gasolina no zero, mas com a pista iluminada pelos faróis dos carros, uns ao lado dos outros. Como não sabia a que altura estava do solo mas tinha uma ideia aproximada da altura do hangar, passou rente ao topo do telhado e fez-se à pista. Quando estimou que estava perto do solo, deixou a avioneta cair em perda.
O embate com o solo foi um tanto violento, muito diferente da suavidade domingueira, mas não houve prejuízos. O problema mais sério foi acalmar a mãe do menino quando chegou a casa.
Quanto ao menino, acabou por perder o medo de voar nas muitas viagens aéreas entre continentes e um dia, já adolescente, pensou tirar o brevet. Mas a mãe foi peremptória:
– Nem penses nisso, para sustos já me chegou o teu pai!
E assim se perdeu um potencial marinheiro aviador.
Gostei imenso de tomar conhecimento destas aventuras do teu pai que de facto foi preciso ele já não estar entre nós para eu por mero acaso em conversa com a tua mãe ter o início deste episódio !
ResponderEliminarMagnifico! Parabéns Jorge!
ResponderEliminarEnternecedora e cheia de graça esta estória! Parabéns! Calculo que o menino se sentia melhor no mar…
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