quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Aníbal Jardim Bettencourt

Agrónomo, Fitopatologista e Geneticista



I. Introdução e Enquadramento Histórico


I.1. A Crise Fitopatológica e a Resposta Agronómica Portuguesa

Aníbal Jardim Bettencourt (1924–2015) emerge como uma figura central na agronomia tropical portuguesa do século XX, cuja vida e obra se dedicaram integralmente à salvaguarda de uma das culturas economicamente mais importantes a nível global: o cafeeiro. A sua carreira desenvolveu-se num período de intensa mobilização científica portuguesa, impulsionada pela necessidade de combater a ameaça fitopatológica mais grave que pairava sobre a produção mundial de Coffea arabica: a ferrugem alaranjada, causada pelo fungo biotrófico Hemileia vastatrix.

A obra de Aníbal Jardim Bettencourt está intrinsecamente ligada ao Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), uma instituição de vanguarda criada em Portugal para responder a esta crise. O trabalho do engenheiro agrónomo transcendeu as fronteiras nacionais, focando-se na pesquisa fundamental e aplicada de mecanismos de resistência genética, essenciais para garantir a sustentabilidade da cultura em regiões tropicais, especialmente após a deteção e expansão da doença em África e, posteriormente, nas Américas.[1] A sua atuação representou um esforço coordenado da ciência portuguesa em resposta a uma vulnerabilidade agrícola de alcance transnacional.

I.2. Necessidade de Rigor Biográfico e Distinções


Dada a recorrência de nomes em círculos académicos portugueses, é fundamental estabelecer a identidade e o foco do indivíduo em análise. Este estudo dedica-se exaustivamente ao engenheiro agrónomo Aníbal Jardim Bettencourt, nascido em 1924 em Moçambique, geneticista e investigador principal do CIFC-IICT.[2]

É imperativo distinguir esta figura central da agronomia tropical de um homónimo anterior, o Professor Aníbal Bettencourt (sem o "Jardim"), que foi uma figura proeminente na medicina e veterinária portuguesa da primeira metade do século XX. O Professor Aníbal Bettencourt foi professor catedrático de Parasitologia e Patologia Exótica na Escola Superior de Medicina Veterinária, chefe de serviço do Instituto de Agronomia e Veterinária, e participou em missões para o estudo da bilharziose.[3] Embora ambos estivessem ligados às ciências agrárias e tropicais, o foco do Professor Aníbal Bettencourt (medicina) e o do Engenheiro Aníbal Jardim Bettencourt (genética do cafeeiro) são distintos. A confusão de identidades seria um erro de escopo que comprometeria a análise da sua contribuição única para o melhoramento genético.[3, 4] O Agrónomo, que é o objeto deste estudo, pertence à geração subsequente e concentra o seu legado no combate à Hemileia vastatrix


II. Percurso Biográfico e Carreira Institucional em Moçambique (1924–1959)


II.1. Formação Académica e Início da Carreira


Aníbal Jardim Bettencourt nasceu em Moçambique em 1924, o que estabeleceu a base para a sua profunda ligação com os desafios da agricultura tropical.[2] Para a sua formação superior, deslocou-se para Portugal, onde obteve o grau de Engenheiro Agrónomo e, posteriormente, o título de Doutor em Agronomia, ambos pelo prestigiado Instituto Superior de Agronomia (ISA) de Lisboa.[2] O ISA, situado na Tapada da Ajuda, tem sido historicamente um centro de excelência no desenvolvimento e difusão do saber tropical em Portugal.[5]
II.2. Experiência Prática na Direcção de Agricultura e Florestas

O início da sua carreira profissional ocorreu no Ultramar, onde trabalhou na Direcção de Agricultura e Florestas de Moçambique durante dez anos, de 1949 a 1959.[2] Este período foi determinante, pois coincidiu com um grande impulso no desenvolvimento económico e agrícola das colónias portuguesas.

Durante a década de 1950, Aníbal Jardim Bettencourt ascendeu a cargos de elevada responsabilidade. Entre 1951 e 1959, exerceu as funções de Chefe da Repartição de Agricultura e Florestas e, por acumulação, atuou como Delegado da Junta de Exportação do Café, ambos em Moçambique.[2] Nesta função operacional, a sua atividade concentrou-se no desenvolvimento da cultura cafeeira local, que incluía tanto o C. arábica como o C. racemosa, e na implementação de estações experimentais.[2]

A sua experiência em Moçambique terminou com um revés que influenciou significativamente a sua trajetória subsequente. O seu testemunho documenta um estado de profunda desilusão e mesmo "depressão" após a notícia do fim da cultura do café em Moçambique.[2] Esta interrupção abrupta dos projetos e das atividades que coordenava, em consequência de decisões administrativas e políticas do poder colonial, sugere que a sua posterior transição para a investigação pura e fundamental no CIFC não foi apenas uma progressão de carreira, mas uma reorientação estratégica, permitindo-lhe procurar soluções científicas permanentes (genética e fitopatologia) que pudessem transcender a instabilidade e as decisões políticas do tempo colonial. A sua base de conhecimento prático em Moçambique, contudo, forneceu o contexto indispensável para a sua investigação posterior no CIFC.
III. A Fundação Científica: O Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC)
III.1. Transição para a Investigação Especializada

Em 1960, Aníbal Jardim Bettencourt iniciou a fase mais decisiva da sua carreira, voltada inteiramente para a investigação especializada. Iniciou um estágio no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), uma unidade de investigação de elite da Junta de Investigações do Ultramar.[2]

O CIFC era um polo de excelência em fitopatologia e genética tropical, fundado pelo Professor Branquinho d'Oliveira para enfrentar a ameaça da ferrugem. Após o estágio, Aníbal Jardim Bettencourt foi integrado na equipa, trabalhando em comissão de serviço como funcionário do Instituto do Café de Angola.[2] O modelo de financiamento do CIFC, assegurado pela Junta de Investigações do Ultramar e, notavelmente, pelo Instituto do Café de Angola [2], revela a estratégia geopolítica subjacente à investigação portuguesa: a ciência metropolitana era diretamente instrumentalizada para proteger os interesses económicos e a produção ultramarina de café contra pragas devastadoras.
III.2. Carreira Pós-Colonial e Aposentação

Após as mudanças políticas de 1974–1975 e o fim do Império Português, a maioria das estruturas de ciência tropical foi reestruturada. Em 1975, Aníbal Jardim Bettencourt integrou o quadro de pessoal da Junta de Investigações Científicas do Ultramar (JICU), que evoluiu para o Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT).[2]

A sua permanência e ascensão no IICT demonstram a importância crítica do CIFC e da sua experiência especializada. A sua expertise em fitopatologia e genética aplicada era demasiado valiosa para ser desmantelada. Continuou a sua carreira como Investigador Principal do CIFC-IICT a partir de 1983, aposentando-se em 1992 como Investigador Coordenador.[2]

IV. A Obra Científica Central: Especialização Fisiológica e Mecanismos de Resistência


A obra científica de Aníbal Jardim Bettencourt no CIFC concentra-se na fitopatologia e no melhoramento genético, com o objetivo singular de conferir resistência duradoura ao cafeeiro (Coffea spp)* contra a Hemileia vastatrix.

IV.1. O Diagnóstico: Caracterização da Hemileia vastatrix


Um dos primeiros e mais fundamentais contributos de Bettencourt no CIFC foi a caracterização detalhada do patógeno. A sua atividade científica incidiu inicialmente na especialização fisiológica da ferrugem do cafeeiro e na seleção de clones diferenciadores das raças do fungo.[2]

A rápida evolução e a variação da virulência do fungo H. vastatrix exigem uma compreensão constante e um mapeamento preciso das estirpes. O trabalho de Bettencourt nos primeiros tempos no CIFC dedicou-se à caracterização de raças e de grupos fisiológicos, manutenção das culturas e identificação de novas raças.[2] Este esforço de diagnóstico era o pré-requisito técnico para qualquer programa de melhoramento genético eficaz, assegurando que o material desenvolvido no CIFC tivesse uma resistência de largo espectro, capaz de enfrentar a diversidade genética do patógeno.

IV.2. A Solução Genética: Pesquisa e Transferência de Genes


A investigação de Aníbal Jardim Bettencourt rapidamente evoluiu para a aplicação genética. Ele concentrou-se no estudo do mecanismo hereditário da resistência à H. vastatrix em Coffea spp.[2]

O seu trabalho inovador centrou-se na transferência de genes de resistência para as principais variedades comerciais de C. arabica, utilizando o Híbrido de Timor (HDT) como fonte primária de resistência.[2] O HDT, um cruzamento natural entre C. arábica (suscetível, mas de alta qualidade) e C. canéfora (robusta, resistente, mas de baixa qualidade), provou ser um recurso genético inestimável.

O esforço de transferência de fatores de resistência está bem documentado na sua publicação técnica, datada de 1981, intitulada Transferência de factores de resistência à Hemileia Vastatrix Berk. & Br. para as principais cultivares de Coffea Arabica L., editada pelo Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro da Junta de Investigações Científicas do Ultramar.[6]

A complexidade desta investigação exigiu colaboração internacional. Bettencourt trabalhou com o Dr. Alcides Carvalho, uma figura de proa da investigação cafeeira no Brasil. Esta ligação permitiu não só o aprofundamento das técnicas de análise genética, mas também a testagem e distribuição do material em ambientes geográficos críticos.[2] A crise da ferrugem impôs uma colaboração transcontinental onde Portugal, através do CIFC, fornecia o material genético de base, e o Brasil, com a sua infraestrutura, garantia a escala e a avaliação em campo.

A tabela que se segue resume as áreas centrais e os focos da investigação de Aníbal Jardim Bettencourt:


V. O Impacto Global e a Criação de Cultivares de Resistência (Sarchimor e Catimor)

V.1. Os Progenitores da Cafeicultura Moderna

O legado mais tangível e duradouro de Aníbal Jardim Bettencourt reside nas linhagens de cafeeiros resistentes à ferrugem que foram desenvolvidas sob a sua liderança e participação no CIFC.

Do seu trabalho resultaram as progénies Catimor e Sarchimor, que se tornaram a base de grande parte da cafeicultura moderna global, especialmente nas regiões onde a ferrugem é endémica.

1. Sarchimor: Este híbrido resultou do cruzamento efetuado nas estufas do CIFC entre a cultivar 971/10 (Villa Sarchí, de porte baixo) e o Híbrido de Timo (832/2).[7] As primeiras cinco plantas F1 obtidas foram rigorosamente analisadas quanto à sua resistência às raças de H. vastatrix e incluídas no grupo fisiológico A.[7] Esta linha genética é a fundação para muitas variedades modernas de C. arábica resistente.

2. Catimor: Desenvolvido a partir do cruzamento entre o Híbrido de Timor e a cultivar Caturra.[2] Tal como o Sarchimor, o Catimor combina a resistência do C. canéfora (via HDT) com as características de porte baixo e produtividade do C. arabica.

Historicamente, existia uma perceção generalizada de que a incorporação de genes do C. canephora (via HDT) para obter resistência resultaria numa inevitável degradação da qualidade da bebida. No entanto, o trabalho de melhoramento genético liderado por Bettencourt e a subsequente seleção das progénies Catimor e Sarchimor nos centros de pesquisa mundiais conseguiram contornar este problema. Variedades derivadas destes cruzamentos, como Tupi e Obatã no Brasil, têm obtido excelentes resultados em concursos de cafés especiais, desmistificando a ideia de que a resistência à ferrugem é incompatível com a alta qualidade da bebida.[9] A sua mestria em selecionar os indivíduos que herdaram a resistência sem comprometer as características sensoriais do C. arábica foi a chave para o sucesso comercial e global das suas linhagens.

V.2. Disseminação de Material Genético e Impacto no Brasil

A estratégia de difusão de conhecimento do CIFC, fortemente suportada pelo trabalho de Bettencourt, foi notavelmente aberta e cooperativa. Em 1960, o CIFC iniciou um programa de melhoramento com o objetivo de transferir resistência do HDT para as principais cultivares de Arabica.[8] Como parte desta estratégia, plantas F1 e F2 selecionadas, que demonstravam resistência a todas as raças conhecidas, foram fornecidas gratuitamente a todas as instituições de países produtores de café que solicitassem este material.[8]

Este ato de colaboração científica teve um impacto preventivo incalculável no Brasil. O Instituto Agronómico de Campinas (IAC), uma das principais instituições de pesquisa cafeeira do país, recebeu progénies F2 e F3 derivadas de cruzamentos HDT/C. arábica a partir de 1968.[9]

Esta transferência de material ocorreu preventivamente, antes da chegada da ferrugem à América do Sul. Quando o fungo foi introduzido no Brasil no final da década de 60 [9], as instituições já possuíam linhagens robustas, desenvolvidas no CIFC, que resultaram no lançamento de cultivares cruciais como Tupi e Obatã em 2000.[9] Ao garantir que o Brasil tivesse material genético resistente disponível antes da chegada da praga, Bettencourt e o CIFC criaram uma "apólice de seguro" genética que evitou uma devastação de escala continental, demonstrando uma visão estratégica notável na gestão de risco fitopatológico.

VI. Missões Internacionais e o Eixo Atlântico de Cooperação

VI.1. O Consultor Global (1965–1985)

O reconhecimento da expertise de Aníbal Jardim Bettencourt na genética da resistência à ferrugem levou-o a desempenhar um papel ativo como consultor internacional. Entre 1965 e 1985, ele realizou extensas missões e assistência técnica in loco aos programas de melhoramento genético do cafeeiro em diversos países.[2]

A sua influência estendeu-se geograficamente através de um eixo atlântico de cooperação que ligava a África, América do Sul e América Central:

• África: Angola, Cabo Verde.[2]

• América do Sul: Brasil, Colômbia, Venezuela.[2]

O seu trabalho garantiu que as metodologias de seleção de resistência e o material genético avançado fossem implementados de forma eficaz nestas regiões produtoras.

VI.2. O Papel no PROMECAFÉ

Um dos pontos altos da sua colaboração internacional foi a participação no PROMECAFÉ (Programa Cooperativo Regional para o Desenvolvimento Tecnológico Agrícola do Café), que engloba a América Central e o Caribe. A sua assistência abrangeu: Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, México, Panamá e República Dominicana.[2]

Esta colaboração sublinha o reconhecimento do seu conhecimento em nível pan-americano, necessário para a coordenação de esforços regionais. Através do PROMECAFÉ, Aníbal Jardim Bettencourt participou na montagem da Unidade Central de Melhoramento (OCM) em Turrialba, Costa Rica. O seu trabalho em Turrialba, um centro chave de pesquisa tropical, solidificou o legado do CIFC e a sua própria influência na infraestrutura científica da América Latina, onde os híbridos Catimor e Sarchimor seriam testados e distribuídos em larga escala.[2]

VII. Legado Documental e Conclusão

VII.1. A Preservação da Memória Científica

Embora a sua obra seja primariamente científica e técnica, existe uma importante componente documental que preserva a sua história institucional e metodológica. O seu trabalho técnico foi cristalizado na monografia de 1981, já mencionada, sobre a transferência de fatores de resistência.[6]

Aníbal Jardim Bettencourt contribuiu ainda com um "Depoimento" detalhado para o Arquivo Científico Tropical (ACT) do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) em 18 de Fevereiro de 2010.[2, 10] Este testemunho é uma fonte primária inestimável para a história da ciência portuguesa e do café, onde ele descreve em detalhe a sua experiência de 12 anos em Moçambique, o seu estado de depressão após o fim das experiências locais, como conheceu o Prof. Branquinho d’Oliveira (fundador do CIFC), a sua entrada no Centro, e os pormenores da fundação, gestão, financiamento e ligações internacionais do CIFC.[2] A preservação deste depoimento garante que a metodologia e as circunstâncias institucionais que levaram à criação dos híbridos de café mais bem-sucedidos do mundo sejam compreendidas pelas futuras gerações de investigadores.

VII.2. Cronologia Pessoal e Síntese Biográfica

Os registos indicam que Aníbal Jardim Bettencourt se manteve ativo e envolvido após a sua aposentação em 1992.[2] O seu testemunho de 2010 e a sua presença em plataformas digitais até 2014 [10] confirmam a sua longevidade. Detalhes pessoais revelam também o seu papel como avô, mencionando os seus netos e a sua esposa Maria da Conceição, providenciando um toque humano à figura do cientista de renome.[10]

VII.3. Conclusões e o Engenheiro da Resiliência Silenciosa

Aníbal Jardim Bettencourt é um expoente máximo da agronomia aplicada portuguesa do século XX. O seu trabalho no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro não foi apenas um sucesso nacional; foi uma contribuição de vanguarda que alterou a paisagem da cafeicultura global.

O impacto mais profundo da sua obra é económico e ecológico. Ao desenvolver, com a sua equipa, linhagens geneticamente resistentes à H. vastatrix, como os progenitores Catimor e Sarchimor, garantiu a resiliência de vastas áreas de produção de C. arábica que, de outra forma, teriam sucumbido ao fungo.[8, 9] Este melhoramento intrínseco permitiu reduzir a dependência de tratamentos químicos onerosos, promovendo, indiretamente, uma cafeicultura mais sustentável.

O facto de os nomes técnicos dos híbridos que criou — Catimor e Sarchimor — serem omnipresentes na literatura agronómica mundial, enquanto o seu nome é conhecido principalmente no meio científico e histórico, reflete a natureza do seu trabalho. Aníbal Jardim Bettencourt foi um engenheiro da resiliência, um cientista que trabalhou para garantir a continuidade produtiva, um feito fundamental cuja estabilidade se torna, paradoxalmente, rapidamente invisível, mas que continua a sustentar a cadeia de valor do café em todo o mundo. A sua carreira personifica a excelência da investigação portuguesa em ciência tropical, que produziu soluções de impacto global.

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1. Hemileia vastatrix Berkeley & Broome - CAPS, https://caps.ceris.purdue.edu/wp-content/uploads/2025/07/Hemileia-vastatrix.pdf

2. Depoimento de Aníbal Jardim Bettencourt - actd:MOAJB,  https://actd.iict.pt/view/actd:MOAJB

3. (PDF) Medicina, ciência e laboratório A investigação biomédica básica em Lisboa (1880-1950) - ResearchGate, https://www.researchgate.net/publication/338580781_Medicina_ciencia_e_laboratorio_A_investigacao_biomedica_basica_em_Lisboa_1880-1950

4. Universidade de Lisboa - Instituto de Ciências Sociais ... - ULisboa, https://repositorio.ulisboa.pt/bitstreams/1ae1fbee-55ba-4dc5-bb24-6ed97c19e22c/download

5. LISBOA GUARDIÃ DE SABER TROPICAL, https://www.lisboa.pt/fileadmin/informacao/publicacoes/ambiente/lisboa_guardia_saber_tropical.pdf

6. MELHORAMENTO GENÉTICO DO CAFEEIRO. by JARDIM BETTENCOURT. (Aníbal): Good Soft Cover | Livraria Castro e Silva - AbeBooks, https://www.abebooks.co.uk/MELHORAMENTO-GEN%C3%89TICO-CAFEEIRO-JARDIM-BETTENCOURT-An%C3%ADbal/30966018542/bd

7. Transferência de genes de resistência a Hemileia vastatrixdo Híbrido de Timor para a cultivar Villa Sarchí de Coffea arabica - Instituto Agronômico (IAC), https://www.iac.sp.gov.br/media/publicacoes/iacdoc84.pdf

8. The coffee leaf rust pathogen Hemileia vastatrix: one and a half centuries around the tropics - PMC - PubMed Central, https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC6638270/

9. Participação da UFV em pesquisas sobre café é destaque no site da Embrapa, https://www2.dti.ufv.br/noticias/scripts/exibeNoticiaMulti.php?codNot=8138

10. Dezembro 2014 - O Ser Humano, https://1ajbettencourt.blogs.sapo.pt/2014/09/

 


* Coffea spp. é o termo científico para as espécies do género Coffea, que inclui o cafeeiro, um arbusto da família Rubiaceae cujas sementes (grãos de café) são usadas para fazer café. O termo "spp." indica que se refere a múltiplas espécies dentro do género. As espécies comercialmente cultivadas mais conhecidas são a Coffea arábica (arábica) e a Coffea canéfora (robusta).


segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

O génio de Saramago na leitura de Diniz Borges

 


Foi com uma profunda admiração pela lucidez e pela coragem que li a crónica do meu amigo Diniz Borges no jornal Atlântico Expresso, "A Palavra como Responsabilidade: Saramago e Eu". Diniz Borges, ao partilhar a forma como a língua e a diáspora moldaram o seu olhar do mundo, lembra-nos a pertinência do pensamento de José Saramago no complexo tecido político e social que vivemos.

Tal como Diniz Borges, que descobriu Saramago na Califórnia, num Vale de São Joaquim "amplo e queimado de sol", também o meu encontro com o escritor foi marcante. Lembro-me bem, há 45 anos, de uma paragem numa livraria de Lisboa onde um outro meu amigo, o Manuel Begonha, me recomendou um livro de um autor que não conhecia: Levantado do Chão. Gostei de tal maneira que nunca mais me cansei de ler os seus livros e de os recomendar aos amigos. As personagens criadas por Saramago tornaram-se guias morais, desde a visionária Blimunda do Memorial do Convento até ao Cão das Lágrimas do Ensaio sobre a Cegueira.

A força intemporal de Saramago reside na sua capacidade de deslocar os alicerces das nossas certezas. Diniz Borges descreve a escrita de Saramago como "a lucidez de um velho profeta e a irreverência de um homem sem medo de ferir as certezas preguiçosas do mundo". Essa irreverência é, hoje, mais necessária do que nunca, pois as citações de Saramago estão constantemente no meu pensamento: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”, ou a observação devastadora de que "O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto, Vivemos na mentira, todos os dias." O mérito de Diniz Borges nesta crónica é traçar as fracturas do mundo que Saramago desvendou e mostrá-las reflectidas nos desafios que enfrentam as democracias actuais.

A crítica de Saramago à cegueira moral ressoa profundamente nas crises políticas. Diniz Borges sublinha que a cegueira descrita no Ensaio sobre a Cegueira não é oftalmológica; é ética. Esta miopia moral leva ao colapso social e civilizacional. Diniz Borges, observando a vida política americana a tornar-se mais polarizada, cínica e indiferente ao sofrimento, volta a Saramago com a pergunta: "como é possível recusarmos tantas vezes ver o que está ali?".

O pânico das instituições face à verdadeira participação democrática, explorado no Ensaio sobre a Lucidez, é outro ponto de contacto capital. Neste romance, o pavor do governo perante um eleitorado que vota em branco leva a uma reacção de “pânico autoritário”. Diniz Borges considera este romance profético num país (como os EUA) onde a supressão de votos, a desinformação e a erosão da confiança cívica ameaçam o próprio fundamento da democracia. Saramago "viu como as democracias se fraturam" e como "as instituições preferem a ordem à justiça, a obediência à compaixão".

Diniz Borges lembra-nos que a obra de Saramago é uma “admoestação”. Ler Saramago hoje é ouvir um aviso sussurrado através do Atlântico: "Cuidado com a cegueira que tomas por conforto. Cuidado com o silêncio a que chamas paz. Cuidado com a indiferença que tomas por normalidade".

Saramago não atacava só o poder; ele “elevava o silêncio à categoria de voz”. Diniz Borges, que cresceu rodeado por trabalhadores agrícolas e operários no Vale Central da Califórnia (e foi trabalhador a tempo parcial e inteiro durante quatro anos), sentiu o "compasso moral de Saramago" como seu.

Com o Memorial do Convento, aprendeu que os humildes e os sonhadores são os verdadeiros arquitetos dos milagres, e que a história é transportada pelas "mãos calejadas dos esquecidos" e não pelos reis. Saramago dignificou o “nome anónimo” — os avós, os trabalhadores, as mães — ao tornar a sua invisibilidade o centro da narrativa, como em Todos os Nomes. A pessoa comum, o imigrante, o trabalhador, o anónimo, nunca é comum, e cada vida merece o espaço narrativo reservado aos reis.

A análise de Diniz Borges ganha uma força inigualável por ser feita a partir da sua experiência como emigrante açoriano nos Estados Unidos da América. Para quem emigra, as palavras tornam-se a "primeira pátria verdadeira". Diniz Borges encontrou em Saramago não apenas um romancista, mas o "Portugal da coragem intelectual", que o formou como adulto, o Portugal da pergunta, do ceticismo e da dignidade.

Diniz Borges sublinha que a diáspora portuguesa, que muitas vezes herda um Portugal de nostalgia, precisa de Saramago para herdar o "Portugal do pensamento, da rebeldia, da profundidade". O nosso património, lembra-nos Diniz Borges inteligentemente, é também intelectual, politicamente consciente e eticamente exigente — uma cultura que "questiona o poder, não que o aceita docilmente".

Diniz Borges conclui que a voz de Saramago regressa hoje "como sino de aviso". Ele não nos elogia; convoca-nos. Convocou Diniz Borges, enquanto membro da classe trabalhadora, e convoca-nos a todos, à memória, à responsabilidade e à solidariedade.

A homenagem mais justa que podemos prestar a Saramago, e que o meu amigo Diniz Borges tão bem realça, é reconhecer que a sua luz não se apagou e que a palavra é, como ele próprio disse, “dever e não ornamento”. A sua crónica é um apelo para voltarmos a ler Saramago, para que o nosso país, a nossa diáspora e a nossa democracia continuem a ver.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

A viragem da Revolução portuguesa no tabuleiro da política internacional


O Presidente Costa Gomes, o Embaixador dos EUA Frank Carlucci, com a mulher Marcia, e o Embaixador da URSS Arnold Kalinin.

Para entender os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, é indispensável compreender as profundas divisões ideológicas e as lutas pelo poder que fragmentaram a sociedade e as forças armadas portuguesas no período conhecido como "Verão Quente". A desagregação do consenso revolucionário inicial, que derrubou a ditadura do Estado Novo em 25 de Abril de 1974, abriu caminho a uma polarização extrema, criando as condições para o confronto inevitável que se materializou em Novembro de 1975. Num cenário de crise tripartida — política, económica e militar —, contradições inultrapassáveis minaram a coesão do Movimento das Forças Armadas, a espinha dorsal do processo revolucionário. Esta fragmentação refletia a ausência de um projeto político unificador e abria espaço para o aprofundamento das clivagens ideológicas.

Mas não podemos perder de vista que esta escalada de tensões internas se desenrolou num dos momentos mais complexos da Guerra Fria, em plena era da détente. Para os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética, a revolução em Portugal não era apenas um assunto interno de um pequeno país europeu, mas um potencial factor de desequilíbrio na estabilidade estratégica do continente. A análise comparativa das suas abordagens revela diferentes prioridades globais e táticas de influência que, em última análise, foram decisivas para o desenlace da crise.

A política dos EUA em relação a Portugal sofreu uma evolução notável durante 1975, contrastando a visão inicialmente pessimista do Secretário de Estado Henry Kissinger com a estratégia activista do embaixador em Lisboa, Frank Carlucci. Depois dos desaires spinolistas, Kissinger encarava uma tomada de poder comunista em Portugal como quase inevitável. A sua visão era profundamente céptica, considerando figuras como Mário Soares como fracas e ineficazes. Segundo esta abordagem, seria preferível "vacinar" o resto da Europa, deixando Portugal “cair” para demonstrar os perigos do comunismo, em vez de investir num combate perdido.

No terreno, Carlucci desenvolveu uma perspectiva radicalmente diferente. Defendia um apoio directo e robusto às "forças moderadas", estabelecendo contactos com o "Grupo dos Nove", em especial com Melo Antunes, e exercendo pressão diplomática constante sobre o presidente Costa Gomes para que este se demarcasse da ala radical.

Numa viagem decisiva a Washington, Carlucci conseguiu convencer Kissinger a inverter a política dos EUA. A partir desse momento, a Casa Branca passou de uma postura de contenção para uma de apoio activo a Mário Soares e ao PS, apesar de Soares ser um político de esquerda e, em Washington, a ideia de apoiar um partido socialista em plena Guerra Fria era, para muitos, um anátema. A mudança foi inequívoca, com o discurso de Kissinger a transformar-se num "aviso à União Soviética e um apoio a elementos portugueses".

A nova estratégia americana materializou-se num conjunto de ações coordenadas: aumento significativo da ajuda económica a Portugal para estabilizar o país; apoio secreto, canalizado pela CIA, aos opositores do PCP e da extrema-esquerda; ameaça de cortar o acesso de Portugal à informação classificada da NATO como forma de pressionar Costa Gomes a afastar Vasco Gonçalves; coordenação com os embaixadores britânico e francês para exercerem uma pressão diplomática concertada sobre a presidência portuguesa.

O Reino Unido e os seus parceiros europeus, em particular a Alemanha Ocidental, adoptaram uma estratégia coordenada que colocou a social-democracia internacional no centro da sua intervenção. O Primeiro-ministro britânico, Harold Wilson, e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, James Callaghan, pressionaram diretamente o líder soviético Leonid Brejnev, argumentando que o envolvimento da URSS em Portugal era "incompatível com a détente e a CSCE" (Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa). A mesma mensagem foi transmitida por líderes como o Chanceler alemão Helmut Schmidt e o presidente francês Giscard d'Estaing.

Foi criado o "Comité de Amizade e Solidariedade para a Democracia e o Socialismo em Portugal", um organismo que funcionou como um canal de "colaboração secreta" para apoiar financeiramente o Partido Socialista. Estima-se que, através de partidos como o SPD alemão, o Partido Trabalhista britânico e outros, tenham sido canalizados "aproximadamente 2 a 3 milhões de dólares por mês" para o PS de Mário Soares.

Em encontros directos, líderes como Harold Wilson e Helmut Schmidt condicionaram a concessão de ajuda económica da Comunidade Económica Europeia (CEE) à garantia por parte do presidente Costa Gomes de que Portugal seguiria "uma solução democrática de socialismo pluripartidário".

A política de Moscovo em relação a Portugal foi, em contraste, caracterizada por uma abordagem de "baixo risco e investimento limitado", na qual a estabilidade das relações com o Ocidente prevaleceu sobre as ambições revolucionárias em Lisboa. Para Leonid Brejnev, o sucesso da Conferência de Helsínquia e a consolidação da détente com os Estados Unidos eram muito mais importantes do que o apoio a "uma mão-cheia de comunistas portugueses ansiosos". A estabilidade europeia era a prioridade máxima do Kremlin.

O presidente Costa Gomes relatou uma conversa com Brejnev em Helsínquia, na qual o líder soviético lhe terá dito claramente que Portugal não deveria "mudar de regime", devido à sua posição geográfica, à sua pertença à NATO e ao "pensamento católico do povo português". Análises da CIA concluíram que o principal objetivo estratégico da URSS não era garantir a tomada do poder pelo PCP, mas sim "evitar a destruição do PCP" como força política relevante. A "serenidade" com que Moscovo acabou por aceitar a derrota da ala radical em Portugal confirma esta análise de uma aposta contida.

Estas diferentes estratégias internacionais convergiram para o cenário de confronto de Novembro de 1975, capacitando e encorajando os actores internos ligados aos EUA e aos parceiros europeus a procurarem uma solução de força.

Em Washington e Londres, a reacção no próprio dia 25 de Novembro foi de apoio inequívoco e imediato aos seus aliados internos, mostrando que estavam preparados para intervir. Em transcrições de conversas desse dia, Henry Kissinger surge a exigir ação imediata. Existia um plano de contingência anglo-americano, coordenado entre a CIA e o MI6, para apoiar as forças aliadas internas. Este plano previa o uso de "meios aéreos e marítimos para abastecimento e manutenção da resistência portuguesa na zona Norte do País" e a realização de "raids aéreos para imobilizar as posições comunistas na zona de Lisboa", caso a situação militar se tornasse desfavorável.

O desfecho rápido e vitorioso dos “Nove” e dos seus aliados tornou esta intervenção directa desnecessária, mas os acontecimentos do 25 de Novembro permaneceram como um caso de estudo sobre a eficácia das estratégias de influência na Guerra Fria. A abordagem ocidental revelou-se altamente eficaz. A combinação de apoio financeiro maciço via Internacional Socialista, a pressão diplomática constante e a prontidão para uma intervenção clandestina (através do plano CIA/MI6) capacitou e deu confiança às forças internas aliadas. Em contraste, a abordagem contida da União Soviética, que deu prioridade à détente em detrimento de um apoio arriscado aos aliados, deixou o PCP isolado num momento crítico.

Por isso os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 não podem ser interpretados como um episódio interno isolado. Foram, antes, o produto da convergência inevitável entre uma profunda crise de poder interna, que dividiu Portugal em projetos políticos irreconciliáveis, e um complexo jogo de influências estratégicas travado pelas superpotências e pelos seus aliados europeus. A fragmentação do Movimento das Forças Armadas e a polarização da sociedade criaram o palco para o confronto, mas foram as diferentes estratégias de Washington, Londres e Moscovo que ajudaram a definir os recursos, a confiança e os limites de cada uma das facções.

Embora a acção militar tenha sido decidida e executada por portugueses, o seu resultado foi inegavelmente moldado pelo contexto geopolítico da Guerra Fria, demonstrando que o futuro de Portugal foi decidido tanto nas ruas de Lisboa como nas chancelarias das grandes potências.

sábado, 25 de outubro de 2025

O 25 de Abril e o separatismo açoriano


Passados 50 anos, reconheço que a reação imediata do MFA e do poder instituído após a Operação Viragem Histórica, ao desafio político separatista nos Açores não terá sido a mais adequada. Num contexto geopolítico em que os EUA consideraram apoiar a independência dos Açores, os movimentos separatistas açorianos, com fortes e evidentes ligações ao regime deposto, emergiram como uma reação conservadora e de extrema-direita ao processo revolucionário. O poder instituído e o MFA responderam inicialmente à agitação e violência separatista, como a manifestação de 6 de Junho de 1975, com repressão militar, ordenando detenções, mas optaram posteriormente, em Agosto de 1975, pela criação da Junta Regional dos Açores que assumiu o papel de governo provisório. Finalmente, a consagração da autonomia político-administrativa na Constituição de 1976, neutralizou a ameaça e levou ao declínio daqueles grupos com matriz ideológica fascista.

Alguns dos meus amigos açorianos, que conheciam bem a História dos Açores e os factores sociais e políticos por detrás do desafio separatista, afirmam que os militares de Abril não conheciam os Açores e, por isso, não terão tomado as melhores decisões. De facto, os militares de Abril, salvo o caso dos açorianos por nascimento ou afinidade, não tinham razões para conhecer melhor os Açores do que qualquer outra região desfavorecida de Portugal. É certo que as ilhas tinham condições geográficas particulares que agravaram as condições socioeconómicas a que o regime do Estado Novo votava tudo o que estava afastado do poder político e económico centralizador, burocrático, arrogante e autoritário, ou seja, de Lisboa e pouco mais. Não era preciso atravessar o Atlântico para conhecer a pobreza, o atraso, as dificuldades de sobrevivência que condenaram milhares e milhares de portugueses à emigração, em condições duríssimas, para as Américas e a Europa.

No entanto, não devemos esquecer que a sublevação militar contra a ditadura, concretizada por um grupo muito heterogéneo de jovens militares, foi preparada em poucos meses em torno de uma plataforma política mínima que naturalmente não contemplou a questão das regiões ou das autonomias. E depois do dia 25 de Abril de 1974, a torrente de problemas e conflitos não permitiu uma reflexão profunda no seio do MFA. A questão dos Açores e da Madeira, que alguns comparam errada e abusivamente à questão das colónias, nunca foi uma prioridade da acção do MFA e todas as decisões foram tomadas, para bem ou para mal, pelas forças políticas e partidárias da sociedade civil a quem foi entregue o poder. Os militares de Abril podem ser acusados de muitos erros, mas nesta questão não terão muitas responsabilidades.

No meu caso pessoal, pouco sabia sobre os Açores quando ali desembarquei durante o período de actividade mais acesa da FLA. Pouco mais de um mês depois do comunicado que reproduzo, em Novembro de 1975, cheguei a Ponta Delgada como oficial da guarnição da corveta “António Enes”, nomeada para uma comissão de seis meses nos Açores. Era um dos dois primeiros navios da Marinha que iriam permanecer nos Açores por um período prolongado depois dos incidentes de Junho. A "António Enes", comandada pelo então Capitão-tenente Duarte Costa, um oficial íntegro e competente implicado no 25 de Abril, era um navio altamente disciplinado e operacional, e talvez por isso tenha recebido aquela difícil missão.

É desnecessário descrever a hostilidade e as provocações ensaiadas pela minoria independentista, em particular em Ponta Delgada. Mas apesar disso, fomos capazes de cumprir integralmente a nossa missão. Permanecemos em Ponta Delgada nos períodos em que se justificava a nossa presença, sem nunca cedermos às ameaças de várias origens. Navegámos por todo o mar dos Açores, verificámos todos os alertas, em regra falsos, de pesca ilegal, actualizámos o roteiro de todos os fundeadouros como há muito não se fazia, tocámos todas as ilhas, arrostámos com temporais violentos para levar mantimentos e medicamentos a ilhas isoladas, em especial à Graciosa e a S. Jorge, cumprimos tudo o que nos foi exigido ao serviço do povo açoriano. E lembro-me que fomos sempre muito bem recebidos por quem compreendia a nossa missão. Passámos a quadra do Natal na Horta e a população tudo fez para que esquecêssemos a saudade das nossas famílias. Descontado o triste folclore dos apoiantes da FLA, só tive razões para gostar dos Açores e respeitar as suas gentes.

Regressado a Lisboa em Maio de 76, desembarquei para uma missão diferente noutro navio, mas a "António Enes" regressou aos Açores para nova comissão no Verão. Sei que, com outras unidades da Marinha, participou no esforço de transporte de material para construção ou melhoria das infraestruturas aeroportuárias das ilhas mais desfavorecidas. Em Novembro de 1976, regressei ao Açores na “João Roby” para uma nova comissão de seis meses. Cumpri de novo a missão com muito gosto, mesmo quando lutámos contra vagas impressionantes para transportar um doente grave das Flores para a Terceira.

Depois andei pelo mundo e tive oportunidade de conhecer alguma coisa da diáspora portuguesa e, em particular, da originária dos Açores. E apesar das características particulares relacionadas com a cultura e os hábitos de cada uma das regiões de origem, senti-me sempre, como português, profundamente irmanado com todos os açorianos, assim como com todos os madeirenses, transmontanos, beirões, alentejanos, algarvios, etc., que encontrei.

É por isso que sempre relativizei as questões do separatismo, do independentismo ou o que lhe queiram chamar. Para mim a questão fundamental em Portugal não era essa. Era sim a luta contra uma máquina do Estado e um poder económico centralizador, autoritário e burocrático, contrário aos interesses da maioria dos portugueses. E essa sim, foi uma luta que o MFA não teve engenho e arte para vencer.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Memória de uma casa


Vista da casa em 1955 (foto colorida)

Uma casa não é apenas pedra, tijolo e argamassa. Cada tábua do soalho, cada parede interior, cada telha do telhado guarda em si os ecos dos risos e dos prantos da família que ali viu nascer e desaparecer várias vidas. Por isso, estou certo de que a casa que os meus avós madeirenses — Maria Isabel Jardim Bettencourt, da freguesia de São Jorge, concelho de Santana, e António Jorge Bettencourt, da freguesia de Gaula, concelho de Santa Cruz — construíram em Moçambique, na Avenida Pinheiro Chagas, em Lourenço Marques, também guarda os ecos da minha família paterna.

Três gerações da família na casa (1955)

Nela vivi o meu primeiro ano de vida. Contava a minha mãe que só chorava ao fim do dia, quando o meu avô se atrasava a pegar-me ao colo para me mostrar todos os relógios da casa. Nela brinquei com os meus primos nas breves passagens por Lourenço Marques, determinadas pela atividade profissional do meu pai. Era o porto de abrigo na capital quando o meu pai foi colocado, primeiro, em Inhambane e, depois, em Quelimane. Nela fiz os trabalhos de casa durante o curto período em que frequentei a escola primária Rebelo da Silva, mesmo em frente, do outro lado da avenida. Dela me despedi há sessenta e seis anos, quando a grave doença do meu pai nos trouxe definitivamente para Portugal.

Mas a casa continuou a ser o lar da avó Isabel e do avô Bettencourt até à sua morte e, depois, do tio Toni e da tia Carlota. Só deixou de ser habitada pela minha família paterna quando os ventos da História permitiram que a terra onde nasci se tornasse um país independente. Depois disso, nada sei sobre quem ali viveu. Mas para mim, será sempre a casa dos avós.

Vista da casa no Google Maps (2025)

Hoje, a casa está diferente: mudou de cor, tem uma cobertura estranha, uma antena de satélite e aparelhos de ar condicionado. A avenida é agora Eduardo Mondlane, a escola primária chama-se 3 de Fevereiro e a cidade é Maputo. Nela está instalada a Direção Operacional da Lin Ambulâncias, uma das empresas do Grupo Lin, do empresário moçambicano Lineu Candieiro.

Mas não duvido que, de vez em quando, ao fim do dia, quem estiver mais atento naquela casa ouve o choro de uma criança à espera do colo do avô.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O Miguel e o Avô Aníbal




− Mamã, eu conheci o Avô Aníbal[1]?

− Não sei, meu Amor... o que tu achas?

− Eu acho que sim!

A paixão pela terra, pela natureza, o fascínio por transformar e construir coisas a partir de tudo e mais alguma coisa, o interesse no outro e a vontade de cumprimentar estranhos na rua ou no trânsito parado, herdaste do teu Bisavô.

Sim, Miguel, conheceste o teu Bisavô Aníbal! Tenho a certeza!



[1] Aníbal Jardim Bettencourt, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, em 6 de Junho de 1924. Casado com Maria da Conceição Martins Bettencourt, tiveram dois filhos, seis netos e doze bisnetos. Faleceu em 16 de Setembro de 2015, em Cascais, dois dias depois do Miguel nascer.


Saudade

 


Faz hoje dez anos que o meu Pai partiu, tinha cumprido o seu último objectivo.

Os últimos anos da vida do meu Pai foram difíceis. A saúde, bastante frágil, obrigou-o a sucessivos internamentos hospitalares. Mas, por mais grave que fosse a crise, dizia sempre que só iria para o forno crematório quando nascesse o décimo segundo bisneto. Como nem sequer havia projeto para esse bisneto, brincávamos com ele.

Mas inesperadamente, a neta Joana engravidou do Miguel. E durante toda a gravidez, sempre que estava com a Joana, o meu Pai perguntava quanto tempo faltava para o Miguel nascer. A resposta, mesmo que o tempo fosse cada vez menor, suscitava sempre a mesma reacção do meu Pai: "Eh pá, tanto tempo!"

Na semana que antecedeu o nascimento do Miguel, o meu Pai estava de novo internado, em estado muito crítico. Durante toda a semana, a Joana foi ao hospital à hora do almoço. No início da tarde, eu levava a minha Mãe, que tinha autorização para estar ao lado do meu Pai até eu voltar ao fim do dia, para o ver e trazê-la de volta a casa.

No dia 12, sábado, a Joana viu o Avô pela última vez. Aproximou-se, disse-lhe ao ouvido que gostava muito dele e que podia descansar, faltavam apenas dois dias, e tudo correria bem. O Avô respondeu com o seu habitual "Eh pá!!! Dois dias!". No domingo, a Joana já não foi ao hospital. Na segunda-feira, dia 14, nasceu o Miguel, em Lisboa — o tão desejado décimo segundo bisneto!

Os primeiros dias do Miguel não foram fáceis, devido a problemas respiratórios. Quando fui visitar a Joana na maternidade e conhecer o Miguel, não pude deixar de reparar na coincidência: o número do quarto era o mesmo daquele onde o meu Pai estava internado. E, ao olhar para o Miguel, impressionou-me a semelhança entre os equipamentos de suporte de vida de que ambos necessitavam.

Na terça-feira, dia 15, alterei a rotina: deixei a minha Mãe em Cascais e fui para Lisboa, para estar com a Joana e o Miguel. Depois, regressei a Cascais para ver o meu Pai e trazer a minha Mãe para casa. Pensava que aquela rotina se manteria por mais alguns dias, mas no dia seguinte, quarta-feira, 16, tudo mudou.

Estava com a João no quarto da maternidade em Lisboa, depois de deixar a minha Mãe em Cascais, quando recebi a má notícia. E recorro ao testemunho da Joana: “Recordo vivamente o que aconteceu no dia 16, na neonatologia, quando o Miguel começou a chorar desalmadamente do nada... quando cheguei ao quarto e vos contei, recebeste o telefonema da Avó. Há coisas que não se explicam, sentem-se. E é esse sentir que me conforta o coração. O Avô conseguiu alcançar o seu último objectivo. Tenho a certeza.”

Regressei imediatamente a Cascais para dar o último beijo ao meu Pai.

________________

“Perguntava muitas vezes se eramos felizes.
Preocupava-o não o sermos.
Para ele a felicidade nada tinha de supérfluo.
Fazer os outros felizes, respeitá-los e ser fiel eram a sua forma de ser e estar na vida, a fórmula correcta para descobrir a felicidade.
O outro era o lado maravilhoso da vida, da sua vida.
O privilégio foi nosso.
O lado maravilhoso da sua vida fomos nós.
Foi assim que nos fez sentir desde sempre e até ao fim.
E é assim que nos sentimos hoje.
Vivemos com saudade.
Mas celebraremos a vida e a felicidade.
Por ele e por causa dele.”

As palavras são da neta Catarina.
A saudade, essa, é de todos nós.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Pesar o Sol

 


Em 2019, para assinalar o Dia dos Oceanos, com o meu amigo professor Carlos Saraiva da Costa, falámos aos jovens do uso do astrolábio náutico na expansão marítima portuguesa e ensinámos a "Pesar o Sol", no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras (hoje abandonado e degradado).

O Carlos usou o seu saber e experiência náutica, e um PowerPoint do projeto educativo "Este Mar" da Escola Secundária de Carcavelos, para enquadrar historicamente o uso do astrolábio. Eu procurei explicar o mecanismo de funcionamento daquele instrumento.
 
Preparei para isso um texto em que, para além dos componentes do astrolábio, citava a descrição de João de Barros e de Camões, no Canto V dos Lusíadas, da chegada da esquadra de Vasco da Gama à Angra de Santa Helena, onde desembarcaram para aguada e "tomar do Sol a altura". E na introdução, deixei esta brincadeira poética que intitulei "Pesar o Sol":

Suspende o piloto a roda, em metal forjada,
Com medeclina e pínulas, a luz a mirar.
No convés, um círculo solar vai projetar,
No limbo inverso, a distância é contada.

"Pesar o Sol", buscar seu ponto zenital,
Quando a alidade pára, em meio-dia exato.
Lê-se o grau preciso, em registo ou em trato,
Para a latitude certa, avanço capital.

Instrumento simplificado, de invenção lusa,
Do astrolábio planar, ao mar adaptado.
Superando o balanço, com engenho provado.

Foi farol na incerteza, rota que se recusa,
A navegar por estima, método limitado,
Traçando o Império, em caminho desvendado.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Do grito ao sonho

 


No palco de um país que um dia se sonhou,
Chegam vozes de longe, um grito ecoou.
Promessas de pão, de um futuro largo,
Mas o drama se revela, cruel e amargo.

No sítio que labuta, sob o sol a queimar,
Mão-de-obra que a terra insiste em chamar.
Qualificados na alma, com saber e pensar,
Em trabalhos sem rumo, a vida a definhar.

Nos contentores que abrigam, sem lei, sem pudor,
Muitas almas num espaço, de humilhação e dor.
Rendas que disparam, serviços a escassear,
Terra sonhada, a dignidade a roubar.

Redes de engano, com sorrisos de luz,
Retêm passaportes, amarrando à cruz.
Dívidas que sufocam, sem fim à vista,
Ameaças de denúncia, na sombra que insiste.

O medo das autoridades, uma prisão sem grade,
Onde a precariedade é mestre, e a liberdade se evade.
Exploração velada, em cada canto a espreitar,
Um trabalho sem contrato, que pode matar.

Discriminação, um olhar que fere e exclui,
Sobrecarga de horas, a saúde se esvai.
Frustrações e desânimo, no rosto se vê,
Um sonho que se perdeu, sem saber porquê.

Mas a solução não está no que já foi,
Nem no lamento, do que o tempo levou.
É erguer novas estruturas, num futuro a criar,
Onde terra, teto e trabalho sejam para se dar.

Que a economia não mate, mas sim faça viver,
E que a dignidade humana possa florescer.
Dar poder os oprimidos, para ouvir a sua voz,
Porque o sonho comanda a vida, e nos faz caminhar.


(Inspirado pelos artigos do jornal Público "Trabalho: estrangeiros sobrequalificados são quase o triplo dos nacionais" e "Mais de 2200 presumíveis vítimas de tráfico de seres humanos em seis anos. Apenas 11 tiveram direito a indemnização". E também pelo Papa Francisco e António Gedeão.)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Educação, Democracia e Cidadania em Portugal - Uma Análise Crítica




A comparação dos documentos da Direção-Geral da Educação (DGE) sobre a educação para a cidadania em consulta pública – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) 2025 - consulta pública e "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais" (AE) - consulta pública) – com os documentos antigos – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) de setembro de 2017 e "Educação para a Cidadania – linhas orientadoras" de novembro de 2013 – revela uma evolução significativa na estrutura, obrigatoriedade e no aprofundamento de conteúdos, reflectindo o que a DGE entende serem novos desafios da sociedade contemporânea.


Comparação dos Documentos

1. Reorganização das Dimensões de Cidadania

  • Antigo Modelo (ENEC 2017): A estratégia antiga organizava os domínios em três grupos com diferentes níveis de obrigatoriedade.
    • 1º Grupo (Obrigatório em todos os níveis e ciclos): Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa), Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).
    • 2º Grupo (Obrigatório em pelo menos dois ciclos do ensino básico): Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva), Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária.
    • 3º Grupo (Opcional em qualquer ano de escolaridade): Empreendedorismo (nas suas vertentes económica e social), Mundo do Trabalho, Risco, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal, Voluntariado.
  • Novo Modelo (ENEC 2025): A nova estratégia congrega oito Dimensões, organizadas em dois grupos.
    • Grupo 1 (Obrigatório em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e do Ensino Secundário): Direitos Humanos, Democracia e Instituições Políticas, Desenvolvimento Sustentável, Literacia Financeira e Empreendedorismo.
    • Grupo 2 (Obrigatório no 1.º ciclo do Ensino Básico, no conjunto dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, e no Ensino Secundário, cabendo à escola escolher o(s) ano(s) de escolaridade em que cada uma será desenvolvida): Saúde, Risco e Segurança Rodoviária, Pluralismo e Diversidade Cultural, Media.

Esta reorganização significa uma clarificação e um reforço da obrigatoriedade de certas dimensões, que passam a ser abordadas de forma contínua ao longo de todo o percurso escolar.

2. Alterações e Redefinições de Dimensões Específicas

2.1. Retirado como Dimensão Autónoma

  • Sexualidade: Esta dimensão, que era explicitamente listada no 2º Grupo da estratégia antiga, foi retirada como dimensão autónoma na nova ENEC. A "Educação para a Saúde e a Sexualidade" na antiga estratégia visava dotar os alunos de conhecimentos, atitudes e valores para decisões adequadas à sua saúde e bem-estar, com foco na proteção da saúde e prevenção de risco, nomeadamente na área da sexualidade.
  • Igualdade de Género: Era um domínio explícito no 1º Grupo da estratégia antiga. Deixou de ser uma dimensão autónoma na nova ENEC.
  • Educação do Consumidor: Presente no 2º Grupo da estratégia antiga, não aparece como dimensão separada na nova ENEC.
  • Outros Domínios: Domínios do 3º Grupo da estratégia antiga como "Mundo do Trabalho", "Bem-estar animal", e "Voluntariado" não são dimensões autónomas na nova estrutura.

2.2. Conteúdos Integrados e Aprofundados (mesmo que a dimensão autónoma tenha sido retirada)

  • Sexualidade e Educação Sexual (Integração): Embora não seja uma dimensão autónoma, as Aprendizagens Essenciais (AE) da nova ENEC integram aspetos relacionados em outras dimensões:
    • A dimensão Saúde foca-se na promoção do "bem-estar físico e mental" e na "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)". No 2.º e 3.º ciclos, é explicitamente mencionada a necessidade de "Respeitar questões relacionadas com a intimidade e a privacidade de cada pessoa" e "Estabelecer relações interpessoais saudáveis, baseadas no respeito, na comunicação, na confiança e no consentimento".
    • A dimensão Direitos Humanos no 3.º ciclo inclui a análise de casos de "abusos sexuais" e "violência de género", bem como "violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas".
  • Igualdade de Género (Integração): Os conteúdos são integrados principalmente na dimensão Direitos Humanos, com aprendizagens como "Reconhecer que meninos e meninas podem realizar as mesmas atividades e ter as mesmas oportunidades" no 1.º ciclo, e "Debater a (des)igualdade de género em contextos como a educação, o trabalho e o exercício de cargos políticos" no 3.º ciclo. Na dimensão Democracia e Instituições Políticas do Ensino Secundário, a "desigualdade de género" é abordada como um desafio atual da democracia.
  • Educação Ambiental (Integração): Parece ser totalmente absorvida pela dimensão Desenvolvimento Sustentável na nova ENEC, que aborda explicitamente tópicos como a conservação da biodiversidade e práticas de produção e consumo sustentável.
  • Segurança, Defesa e Paz (Integração): Aspetos da segurança, defesa e paz, que eram um domínio opcional na antiga estratégia, são agora integrados na dimensão Democracia e Instituições Políticas da nova ENEC, que prevê o debate sobre o papel internacional de Portugal, nomeadamente na União Europeia, na co-construção de um mundo pacífico e livre, e a análise da importância da União Europeia na defesa da democracia e da paz.

2.3. Destaques e Novas Abordagens em Dimensões Atuais

  • Democracia e Instituições Políticas:
    • Maior Obrigatoriedade: Elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade, o que representa um aumento significativo face ao modelo anterior onde estava no 2º Grupo.
    • Foco na Ética e Combate à Corrupção: A nova ENEC introduz explicitamente a temática da ética e integridade na governança democrática, detalhando a aprendizagem para "identificar comportamentos de integridade e de corrupção" (1.º ciclo), "compreender a natureza, incidência e extensão do fenómeno da corrupção" (2.º ciclo), "compreender as causas e os múltiplos efeitos da corrupção" (3.º ciclo) e "refletir, criticamente, sobre o papel dos cidadãos, do Estado e das organizações da sociedade civil na prevenção e combate à corrupção" (Ensino Secundário).
    • Papel Internacional de Portugal e União Europeia: Maior ênfase no debate sobre o papel internacional de Portugal e da UE.
  • Literacia Financeira e Empreendedorismo:
    • Combinação e Maior Obrigatoriedade: Na nova ENEC, estas duas áreas são combinadas e elevadas para o Grupo 1 (obrigatório em todos os anos). Na anterior, "Literacia financeira e educação para o consumo" estava no Grupo 2 e "Empreendedorismo" no Grupo 3.
    • Aprofundamento: Foco na tomada de decisões informadas sobre orçamento, poupança e investimento, e na ética e responsabilidade social no empreendedorismo.
  • Saúde:
    • Foco Ampliado: Além da alimentação e atividade física, a nova dimensão "Saúde" destaca a promoção da saúde mental e do bem-estar dos jovens, a "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)" e a "prevenção de consumos, comportamentos aditivos e dependências", bem como os "malefícios do uso excessivo de ecrãs".

·         Risco e Segurança Rodoviária:

    • Combinação: Combina o "Risco" e a "Segurança Rodoviária" da antiga estratégia (que estavam em grupos diferentes) numa só dimensão do Grupo 2.
    • Abordagem Integrada: Foco na identificação de perigos, minimização de vulnerabilidades e ações conscientes face a riscos naturais, tecnológicos e mistos, além da mobilidade segura e sustentável.
  • Media:
    • Novos Desafios: A nova ENEC aborda explicitamente o impacto da Inteligência Artificial na edição e publicação de conteúdos nas redes sociais, e foca-se na prevenção dos riscos online como "dependência, cyberbullying, discurso de ódio, polarização, trolling, sexting, sextorsão". Há um reforço da ênfase na "utilização crítica e segura das tecnologias digitais, da informação e dos conteúdos gerados por inteligência artificial".
  • Pluralismo e Diversidade Cultural:
    • Nova Designação e Abordagem Detalhada: Substitui a "Interculturalidade" da antiga estratégia por uma dimensão mais abrangente no Grupo 2.
    • Foco na Discriminação: Inclui a análise de "diferentes formas de discriminação, como racismo, xenofobia, anticiganismo, islamofobia, antissemitismo, misoginia, entre outras". Aborda também os desafios vivenciados por pessoas migrantes e a proteção dos direitos das minorias.

3. Aprendizagens Essenciais (AE) e Abordagem Pedagógica

  • Acréscimo de Detalhe nas AE: Os novos documentos, especialmente o "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais ", fornecem uma descrição muito mais detalhada das Aprendizagens Essenciais por ciclo de ensino para cada dimensão. Isto inclui conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, bem como ações estratégicas de ensino. A estratégia antiga de 2017 listava apenas os domínios sem o mesmo nível de detalhe nas AE por ciclo.
  • Ênfase na Experiência e Atitude Cívica: Ambas as estratégias enfatizam que a cidadania se aprende através de processos vivenciais e da participação ativa. A nova ENEC reforça a importância de os alunos serem autores e terem situações de aprendizagens significativas.

4. Operacionalização e Governança da Estratégia

  • Estrutura Mantida: A operacionalização mantém a abordagem transdisciplinar no 1.º ciclo do ensino básico, a disciplina autónoma nos 2.º e 3.º ciclos, e a componente transversal no ensino secundário.

·         Maior Detalhe e Clarificação de Papéis (Novo):

    • A nova ENEC especifica que o agrupamento de escolas/escola não agrupada deve elaborar e aprovar a sua própria "Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola", definindo os anos para as dimensões do Grupo 2, o modo de trabalho, os projetos com a comunidade, as parcerias e os critérios de avaliação.
    • São claramente definidas as competências do Conselho Geral (aprovação da estratégia da escola) e do Conselho Pedagógico (aprovação dos critérios de avaliação).
    • O papel e as responsabilidades do Coordenador da Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola são detalhados.
    • A avaliação interna das aprendizagens deve ser contínua, sistemática e com formas de recolha diversificadas.

5. Contexto e Desafios

  • Atualização dos Desafios (Novo): A nova ENEC atualiza a lista de desafios contemporâneos, adicionando explicitamente "a emergência da inteligência artificial, a saúde mental e o bem-estar dos jovens, as desigualdades socioeconómicas, a sustentabilidade, as migrações e a mobilidade internacional". A estratégia anterior mencionava desafios como sustentabilidade, interculturalidade, igualdade, e os riscos de fragmentação social, desinformação e polarização.


Fragilidades Estruturais da Educação para a Cidadania

Antes de prosseguir, quero expressar a minha opinião de que, enquanto a Educação para a Cidadania for um edifício com fundações muito frágeis, construído de cima para baixo com textos oriundos do Ministério da Educação, e a responsabilidade pela Educação para a Cidadania nas escolas for quase exclusivamente atribuída aos Diretores de Turma (DT), pouco do que se propõe terá real impacto.

Para que as estratégias sejam bem-sucedidas, mesmo as bem pensadas com boas intenções, é necessário que a maioria das escolas tenha vontade ou condições para fazer da Educação para a Cidadania um projeto multidisciplinar que envolva a direção, professores de diferentes áreas, assim como especialistas e entidades externas.

No entanto, há escolas que apesar de tudo continuam a realizar "milagres" na área da Cidadania. A título de exemplo, refiro os projetos "Semear Abril" e "Abril Hoje", nos quais participei nos últimos anos, considerando-os muito gratificantes para mim e, a julgar pelas avaliações, para os alunos.

Análise da Nova Dimensão Democracia e Instituições Políticas

Revistas as alterações globais que os documentos em consulta pública introduzem na Educação para a Cidadania, concentrar-me-ei agora na análise crítica do que é estabelecido, em particular, para a dimensão Democracia e Instituições Políticas, anteriormente designada Instituições e Participação Democrática.

Em 2018, participei na elaboração de uma proposta da Associação 25 de Abril à DGE para um referencial do domínio Instituições e Participação Democrática. Com base nas recomendações do Conselho da Europa, definimos objetivos para os diferentes níveis de escolaridade. O nosso propósito era preparar os futuros cidadãos para viver em sociedade, resolver conflitos, assumir responsabilidades, compreender e aceitar as regras do Estado de Direito e os mecanismos de representação democrática, e participar na governação do país.

O referido referencial, que contou com contributos de outras instituições, só foi divulgado em 2024, após uma muito longa gestação para uma muito curta vida (um ano). Embora não tenha cumprido os objetivos nele estabelecidos, irei usá-lo como referência para a avaliação das Aprendizagens Essenciais (AE) definidas nos novos documentos para a dimensão Democracia e Instituições Políticas.


Omissões e Modificações Relevantes nos Novos Documentos

Abaixo, apresento um levantamento do que é retirado ou modificado nos novos documentos da DGE, em comparação com o referencial de 2024:

  • História da Democracia Portuguesa: É retirada qualquer alusão a factos relevantes da História da democracia e das instituições democráticas em Portugal. Não é referida nem reconhecida a importância do 25 de Abril de 1974 na construção da democracia política em Portugal.
  • Conceitos Fundamentais da Democracia: São omitidos os critérios que permitem identificar as características de uma democracia, os princípios e os valores em que assenta, assim como a distinção entre os tipos de democracia (directa, semidirecta, representativa) e a sua aplicação ao sistema português.
  • Poderes do Estado e Órgãos de Soberania: Não há qualquer referência à importância da separação e interdependência dos três poderes do Estado – legislativo, executivo e judicial – nem aos órgãos de soberania que os exercem.
  • Sistemas de Governo e Actores Políticos: Não são identificados e comparados os diferentes tipos de sistemas de governo: parlamentarismo, presidencialismo, semipresidencialismo. Não é abordado o papel dos partidos políticos e dos movimentos de cidadãos no exercício do poder político.
  • Funcionamento do Estado Português: Não é dado a conhecer como funciona o Estado Português, incluindo os princípios fundamentais da organização do Estado português, o Orçamento do Estado como instrumento de coesão política e social, e a importância do Orçamento do Estado na vida dos cidadãos.
  • Regiões Autónomas e Comunidades Portuguesas: Não são referidas as Regiões Autónomas (importância da existência de órgãos de governo próprio nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira). Não são referidas a diversidade das comunidades portuguesas fora do território de Portugal e as suas preocupações.
  • Mecanismos de Participação Cívica: Não são especificadas as formas de participação no processo legislativo (petição, referendo, iniciativa legislativa de cidadãos), nem outros mecanismos de participação para além do voto.
  • Sistema Eleitoral e Responsabilidade dos Eleitos: Não é explicado o sistema eleitoral português, a responsabilidade dos eleitos e os diferentes tipos de eleições.
  • Instituições de Defesa de Direitos: Não é explicitado o papel de instituições como o Provedor de Justiça, Ministério Público e Tribunais na defesa de direitos, nem a forma de recorrer ou reclamar junto das instituições públicas.


Novos Focos Introduzidos pelos Documentos

Por outro lado, os documentos em consulta pública introduzem novos focos, com especial ênfase em:

  • Combate à Corrupção: Abordado em todos os ciclos de ensino, desde a identificação de comportamentos de integridade (1.º Ciclo) até à reflexão crítica sobre o papel dos cidadãos, do Estado e da sociedade civil na prevenção e combate (Ensino Secundário).
  • Desenvolvimento de Competências de Diálogo: Valoriza a importância da paz e da não-violência no convívio diário.
  • Boa Governança: Salienta a importância dos valores constitucionais e dos princípios éticos e de integridade para uma governança democrática.
  • Reflexão Crítica sobre Desafios Contemporâneos da Democracia: Incentiva os alunos a refletir sobre desafios atuais como o discurso de ódio e a desigualdade de género.


Conclusão Crítica

Em suma, a nova "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" e as "Aprendizagens Essenciais" para a componente curricular de Cidadania e Desenvolvimento representa uma reestruturação mais coesa e focada, elevando a obrigatoriedade de dimensões consideradas fulcrais para a cidadania ativa (como a Democracia e Instituições Políticas), e integrando explicitamente novos desafios sociais (como a ética e combate à corrupção, a saúde mental e os riscos da inteligência artificial e online). Paralelamente, os conteúdos de dimensões como a sexualidade e a igualdade de género são integrados transversalmente em outras áreas, em vez de terem um estatuto autónomo. A operacionalização é mais detalhada, com uma clarificação de responsabilidades e uma forte ênfase na implementação de Aprendizagens Essenciais concretas.

No que concerne às Aprendizagens Essenciais da dimensão Democracia e Instituições Políticas, omitem os conceitos históricos da construção da democraticidade de Portugal e a sua contribuição para o exercício da cidadania na democracia representativa e participativa consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Embora a nova dimensão Democracia e Instituições Políticas seja elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e Secundário, ela tende a focar-se exclusivamente no atual sistema político, em detrimento do estudo de outras soluções ou do aprofundamento dos mecanismos de participação dos cidadãos no governo do país.

Parece-me também haver uma clara influência dos "novos ventos políticos", em particular do discurso populista da corrupção. No entanto, estou convencido de que a corrupção não é a causa principal da fragilidade da Democracia portuguesa e do afastamento dos portugueses do regime democrático. Outros factores relevantes para o mau funcionamento do regime democrático como, por exemplo, o processo eleitoral de escolha dos representantes dos cidadãos, não são sequer abordados

Podemos encarar a Educação para a Cidadania como a construção de uma casa. Os novos documentos da DGE são como as "plantas" mais recentes para esta casa. Apesar de algumas novidades e reforços (como o combate à corrupção em todos os andares), estas novas plantas removeram importantes pilares históricos do alicerce da casa (como o 25 de Abril e os princípios fundamentais do nosso regime democrático). Além disso, a casa continua a ter "fundações muito frágeis", pois a sua construção depende demasiado de um pequeno grupo de "empreiteiros" (os Diretores de Turma) e de ordens "de cima para baixo". É como tentar modernizar uma casa adicionando novas comodidades, mas, ao mesmo tempo, ignorando ou removendo elementos cruciais da sua estrutura e da sua história, o que pode comprometer a sua solidez a longo prazo.