sábado, 23 de abril de 2022

Programa de Acção Política do Movimento de Oficiais das F.A.



Aparentemente, os responsáveis pelo regime derrubado em 25 de Abril de 1974 estavam convencidos que seriam apenas a liderança e as teses do general Spínola expressas no livro “Portugal e o Futuro”, teses aliás comungadas por sectores do regime próximos das cúpulas militares, que inspiravam o Movimento.

 
O desconhecimento ou desvalorização da existência de um programa político coerente, o “Programa do Movimento das Forças Armadas”, terão levado o regime a olhar para as movimentações dos jovens militares com menor cuidado.

 
O próprio general Spínola, a quem o programa foi apresentado com antecedência e nele fez cortes e introduziu alterações até merecer o seu acordo, terá provavelmente pensado que não passava de mais um papel e que depois do golpe prevaleceriam as suas teses, o seu projecto de poder pessoal e a sua rede de apoiantes.


Para ilustrar o processo de elaboração do programa do MFA, trago hoje uma referência ao bloco de apontamentos do então Major Melo Antunes, seu co-autor e principal redactor, guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Neste bloco, Melo Antunes escreveu à mão, em Março de 1974, uma exortação aos camaradas do Movimento e o que então designou por “Programa de Acção Política do Movimento de Oficiais das F.A.

 
Este programa foi depois discutido e melhorado com os contributos de outros oficiais do Movimento até se transformar no Programa do MFA que enquadrou politicamente as operações militares do dia 25 de Abril e foi publicado pelo jornal República no dia 26. Contudo esta versão, entregue pelo Martins Guerreiro na manhã de 25 como testemunho das intenções do Movimento no caso do golpe militar falhar, não foi ainda a versão final do Programa do MFA assinada pelo Presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola.


Na noite de 25 de Abril, terminado o essencial da operação "Viragem Histórica", os militares do Movimento que estavam no Posto de Comando da Pontinha foram surpreendidos com a proibição do general Spínola da distribuição de exemplares do Programa do MFA aos jornalistas, com o argumento de discordar do seu conteúdo. A discussão entre os generais da JSN e os oficiais do Movimento, prolongou-se pela madrugada do dia 26 de Abril e o documento, aprovado pelas duas partes, foi lido aos jornalistas, por volta das 8h30 da manhã.


Os pontos que causaram mais discussão foram os relacionados com a extinção da polícia política, a libertação dos presos políticos e a política ultramarina que deveria ser seguida pelo Governo Provisório. As relativas à libertação dos presos políticos e à neutralização da PIDE/DGS serviram para a atrasar até 27 de Abril; a eliminação da alínea onde constava o “Claro reconhecimento dos Povos à autodeterminação e adopção acelerada de medidas tendentes à autonomia administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efectiva e larga participação das populações autóctones”, causou dificuldades muito graves na resolução do problema colonial.


Note-se que o que foi cortado e alterado por Spínola na noite de 25 para 26 de Abril já constava do “Programa de Acção Política do Movimento de Oficiais das F.A.” manuscrito por Melo Antunes.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Conversa sobre o 25 de Abril

Um enorme bem-haja ao meu amigo Diniz Borges pela iniciativa de uma conversa sobre o 25 de Abril à escala do mundo lusófono, de Portugal à Califórnia.

Foi um prazer poder falar de Abril aos alunos do professor Diniz Borges na Universidade Estatual da Califórnia em Fresno e aos membros da comunidade luso-americana que tiveram a paciência de me ouvir durante uma hora e meia.

Penitencio-me pelo erro que cometi no final da conversa quando disse que o Destacamento de Fuzileiros Especiais que ocupou a sede da PIDE/DGS era comandado pelo Alves Gaspar. Quem de facto comandou o DFE que ocupou a PIDE/DGS  foi o hoje Almirante Vargas de Matos, como repetidamente tenho dito e escrito em várias instâncias.


 

terça-feira, 19 de abril de 2022

A arte da leitura

 

Em Setembro de 1939, quando as invasões da Polónia pelos exércitos da Alemanha e da União Soviética marcavam o início da Segunda Guerra Mundial, o filósofo norte-americano Mortimer Jerome Adler escrevia o prefácio do que viria a ser um dos grandes sucessos editoriais do século XX: o livro “How to Read a Book: The Art of Getting a Liberal Education”, editado pela Simon and Schuster, de New York, em 1940.

Escreveu então: “O título indica que me preocupo principalmente com a leitura de livros, mas a arte da leitura que descrevo aplica-se a qualquer tipo de comunicação. No ambiente de irrazoabilidade que paira sobre nós, pode fazer uso dela para ver através da propaganda dos Livros Brancos dos antagonistas e para lá das proclamações de neutralidade, e até mesmo para ler nas entrelinhas dos breves comunicados de guerra.

E explicou o subtítulo: “Numa democracia, devemos cumprir as responsabilidades de homens livres. A educação liberal é aqui um meio indispensável para este fim. Ela não só nos faz homens desenvolvendo as nossas mentes, como também as liberta, disciplinando-as. Sem mentes livres, não podemos agir como homens livres. Tentarei mostrar que a arte de ler bem está intimamente relacionada com a arte de pensar com clareza, crítica e livremente.

Após o sucesso da 1ª edição, Adler reviu o texto e publicou uma nova edição, em 1967, com o subtítulo “A Guide to Reading the Great Books”. Finalmente, em 1972, procedeu a uma grande revisão e actualização que desta vez publicou em parceria com o editor Charles Van Doren, com o subtítulo “TheClassic Guide to Intelligent Reading”. Foi essa edição do “How to Read a Book” que fez parte da minha formação como cidadão na década de 1970.

Na introdução da nova edição, Adler fez uma reflexão sobre os meios de comunicação social modernos, questionando se o seu advento melhorou a nossa compreensão do mundo em que vivemos. Escreveu então: “Talvez (hoje) saibamos mais sobre o mundo do que costumávamos saber (em 1940), e na medida em que o conhecimento é um pré-requisito para a compreensão, isso é bom. Mas não tanto como como comumente se supõe. Não precisamos de «saber» tudo sobre algo para o «entender»; factos a mais são frequentemente um obstáculo para a compreensão, tanto como o são factos a menos. Fica a sensação que nós, modernos, somos inundados de factos em detrimento da compreensão.

Uma das razões para essa situação é que os media modernos são concebidos de modo a fazer com que o pensamento pareça desnecessário (embora isso seja apenas uma aparência). O empacotamento de posições e pontos de vista é uma das mais brilhantes realizações de algumas das melhores mentes dos nossos dias. Ao espectador de televisão, ao ouvinte de rádio, ao leitor de jornais, é apresentado um conjunto complexo de elementos - desde uma retórica engenhosa até dados e estatísticas cuidadosamente seleccionados - para tornar mais fácil para ele «formar a sua própria opinião» com o mínimo de dificuldade e esforço.

Mas o empacotamento é muitas vezes feito de forma tão eficaz que o espectador, ouvinte ou leitor não toma nenhuma decisão. Em vez disso, ele introduz uma opinião empacotada na sua mente, mais ou menos como introduz uma cassete num leitor. Depois só carrega no botão e «reproduz» a opinião sempre que lhe parece apropriado fazê-lo. E assim tem um desempenho socialmente aceitável sem precisar de pensar.

No ambiente de irrazoabilidade que de novo paira sobre nós, a reflexão de Adler mantém-se tão oportuna como há cinco décadas.


sexta-feira, 8 de abril de 2022

O Comércio do Funchal

 

O Comércio do Funchal (CF), com o Jornal do Fundão, foram os dois jornais regionais que marcaram o processo de politização de muita gente da minha geração. Só conheci o CF na Escola Naval, provavelmente apresentado pelo meu camarada e amigo madeirense Agostinho Ramos da Silva, mas lembro-me que o lia com interesse, em particular os artigos sobre a actualidade internacional, isto num jornal regional.

O CF foi (re)lançado em 1966, usando o título de um jornal sem leitores que se publicava na Madeira desde 1934. No Portugal de Salazar, um grupo de jovens amigos ligados por ideais comuns e experiências jornalísticas de adolescência, conseguiu que o CF (sigla adoptada posteriormente para diluir a conotação comercial do título) que imprimiram em papel cor-de-rosa para sublinhar a diferença e porque na altura era o mais barato do mercado, se transformasse num sucesso, chegando a vender 15 mil exemplares.

Como quase tudo em Portugal, houve o CF de antes e o CF de depois do 25 de Abril de 1974. O segundo não teve vida longa, o último número foi publicado em 24 de Abril de 1976, e confesso que não lhe dei grande atenção no turbilhão que passou a ser a imprensa do período revolucionário. Sobre o primeiro tenho várias recordações e por isso resolvi revisitar o CF da IV série. N.º 2247, curiosamente com a data de 25 de Abril de 1974 e cobrindo a semana até 1 de Maio de 1974. Pode ser consultado e descarregado na HemerotecaDigital da Câmara Municipal de Lisboa.

O número do CF de 25 de Abril de 1974 não faz qualquer referência nem foi influenciado pela Operação Viragem Histórica. Foi escrito e imprimido antes da vitória do MFA e por isso documenta bem o que era o CF na ditadura.

Por se considerar “o único órgão anti-fascista da imprensa regional” e tudo fazer para honrar essa caracterização, o CF tinha naturalmente problemas com a censura. Estou convencido que os censores não entendiam os debates ideológicos e as reflexões indirectas sobre a guerra colonial, mas mesmo assim eram implacáveis e tudo faziam para dificultar o trabalho dos colaboradores, na generalidade “pro bono”.

O número de 25 de Abril de 1974 trazia desde logo três trabalhos que denunciavam as preocupações políticas e sociais do jornal: um sobre a Indústria Vidreira com testemunhos de operários da Marinha Grande, outro sobre a Indústria de Pesca e “Os armadores, o gasóleo e os pescadores” com homens do mar de Setúbal e o terceiro sobre os bairros “marginais” das grandes cidades, habitados por uma população que procurava fugir à pobreza do Portugal rural e interior.

Depois lá está página de análise das eleições francesas por Vicente Jorge Silva e as tradicionais polémicas ideológicas tão comuns nos jornais progressistas da época, neste caso com um texto de Fernando Piteira Santos que os censores, ao verem a abundância de frases latinas, de certeza não leram. Assim como não terão dado importância à divulgação da Nota da DGS que dava conta da prisão de 15 indivíduos em Lisboa e 15 no Porto por incitarem “a acções revolucionárias no 1º de Maio” contra o “esforço da Nação em defesa dos territórios portugueses no Ultramar” e “a defesa das organizações terroristas que nos atacam e dos métodos que empregam, com os quais criminosamente se solidarizam”, dos dados completos de identificação dos militares mortos na guerra entre 15 e 23 de Abril de 1974 extraídos dos comunicados oficiais, ou da transcriação a negrito da referência do Comando-Chefe das Forças Armadas de Angola que em Março “as baixas sofridas pelas nossas forças totalizaram 12 mortos e 20 feridos”.

Para mim foi particularmente saboroso ler as “Passagens do discurso do Ministro do Interior Dr. Moreira Baptista na cerimónia de posse do novo Governador Civil do Porto Dr. Mário Valente Leal”. O governante marcelista recordou a sua passagem por um liceu do Porto, num “momento da vida nacional politicamente muito agitado”. Disse ele que “Os espíritos andavam perturbados, as propagandas desenfreadas, e os conluios e conspirações faziam-se e desfaziam-se ao sabor das manobras dos que ambicionavam travar o passo ao ressurgimento nacional que, então, se iniciava”. E lembrou que “Foi na altura em que, na Madeira, eclodiu uma intentona que marcaria o fim do aventureirismo de uns quantos que, por essas épocas, intentavam usar as forças armadas procurando fazê-las intervir em dissidências da política que nada tinha a ver com os autênticos interesses da Nação”, numa alusão clara ao falhanço do 16 de Março, sem suspeitar do destino próximo do regime.

Mas acima de tudo apreciei a publicação em página inteira da «Conclamação de universitários à juventude portuguesa intitulada «Autêntico Sentido da Grandeza Lusa» feita pelo «Centro Cultural Reconquista» com sede em Coimbra. Nela os signatários António Carlos de Azeredo e Simão Pedro de Aguiã conclamavam a continuação da defesa da "Civilização Cristã, que esquerdistas e comunistas querem extirpar," e apelavam os jovens portugueses a "insurgirem-se contra os móveis, obviamente censuráveis e maus, da campanha oposta à união das províncias do Ultramar à Metrópole" e a "formar fileiras, mais do que nunca, em torno da bandeira portuguesa, num protesto veemente contra essa fermentação antilusa."


segunda-feira, 4 de abril de 2022

Memória profissional

Ao mexer em papéis antigos, encontrei este quadro de cores dos encanamentos das fragatas da classe "Vasco da Gama". Pouco dirá à maioria dos leitores desta publicação, mas está ligado a um período muito especial da minha vida profissional e por isso decidi reproduzi-lo.

A aquisição e construção das fragatas da classe Vasco da Gama provocou uma verdadeira revolução na engenharia naval militar portuguesa. O salto tecnológico que aqueles navios induziram foi um enorme desafio para quem estava no centro das discussões e decisões técnicas, como foi o caso do grupo de quatro oficiais em que me incluía e que, a partir do final de 1986, discutiu com o estaleiro alemão e os fornecedores, a especificação contratual da plataforma dos navios e dos seus sistemas electrónicos e electromecânicos.

Muitas das tecnologias, dos conceitos e dos sistemas dos navios eram novidade para a nossa Marinha e foi preciso rever muitas práticas e definir até coisas muito simples como, por exemplo, as cores das fitas adesivas que iriam ser usadas para identificar os encanamentos do navio em função do sistema a que pertenciam e do fluido que transportavam.

Pois este foi o desenho produzido com uma das primeiras versões do AutoCad, num caríssimo computador desktop Zenith Z-286 com 640kb de RAM e um gigantesco disco de 20 Mb, e num plotter de canetas Roland. Foi a forma expedita de produzir um documento discutido por meia dúzia de “especialistas” do Gabinete de Estudos que se substituíram ao moroso processo de normalização e que foi entregue ao estaleiro Blohm+Voss como a norma da Marinha portuguesa.

Para os colegas engenheiros navais, poderá ser interessante comparar o nosso trabalho de 1986 com a norma ISO 14726 que mais de uma década depois normalizou as cores das fitas adesivas de identificação dos encanamentos dos navios. Não ficámos muito longe…