O Comércio do Funchal (CF), com o Jornal do Fundão, foram os
dois jornais regionais que marcaram o processo de politização de muita gente da
minha geração. Só conheci o CF na Escola Naval, provavelmente apresentado pelo
meu camarada e amigo madeirense Agostinho Ramos da Silva, mas lembro-me que o
lia com interesse, em particular os artigos sobre a actualidade internacional,
isto num jornal regional.
O CF foi (re)lançado em 1966, usando o título de um jornal
sem leitores que se publicava na Madeira desde 1934. No Portugal de Salazar, um
grupo de jovens amigos ligados por ideais comuns e experiências jornalísticas
de adolescência, conseguiu que o CF (sigla adoptada posteriormente para diluir
a conotação comercial do título) que imprimiram em papel cor-de-rosa para
sublinhar a diferença e porque na altura era o mais barato do mercado, se
transformasse num sucesso, chegando a vender 15 mil exemplares.
Como quase tudo em Portugal, houve o CF de antes e o CF de
depois do 25 de Abril de 1974. O segundo não teve vida longa, o último número
foi publicado em 24 de Abril de 1976, e confesso que não lhe dei grande atenção
no turbilhão que passou a ser a imprensa do período revolucionário. Sobre o
primeiro tenho várias recordações e por isso resolvi revisitar o CF da IV
série. N.º 2247, curiosamente com a data de 25 de Abril de 1974 e cobrindo a
semana até 1 de Maio de 1974. Pode ser consultado e descarregado na HemerotecaDigital da Câmara Municipal de Lisboa.
O número do CF de 25 de Abril de 1974 não faz qualquer
referência nem foi influenciado pela Operação Viragem Histórica.
Foi escrito e imprimido antes da vitória do MFA e por isso documenta bem o que
era o CF na ditadura.
Por se considerar “o único órgão anti-fascista da
imprensa regional” e tudo fazer para honrar essa caracterização, o CF tinha
naturalmente problemas com a censura. Estou convencido que os censores não
entendiam os debates ideológicos e as reflexões indirectas sobre a guerra
colonial, mas mesmo assim eram implacáveis e tudo faziam para dificultar o
trabalho dos colaboradores, na generalidade “pro bono”.
O número de 25 de Abril de 1974 trazia desde logo três
trabalhos que denunciavam as preocupações políticas e sociais do jornal: um
sobre a Indústria Vidreira com testemunhos de operários da Marinha Grande,
outro sobre a Indústria de Pesca e “Os armadores, o gasóleo e os pescadores”
com homens do mar de Setúbal e o terceiro sobre os bairros “marginais” das
grandes cidades, habitados por uma população que procurava fugir à pobreza do
Portugal rural e interior.
Depois lá está página de análise das eleições francesas por
Vicente Jorge Silva e as tradicionais polémicas ideológicas tão comuns nos
jornais progressistas da época, neste caso com um texto de Fernando Piteira
Santos que os censores, ao verem a abundância de frases latinas, de certeza não
leram. Assim como não terão dado importância à divulgação da Nota da DGS que
dava conta da prisão de 15 indivíduos em Lisboa e 15 no Porto por incitarem “a
acções revolucionárias no 1º de Maio” contra o “esforço da Nação em
defesa dos territórios portugueses no Ultramar” e “a defesa das
organizações terroristas que nos atacam e dos métodos que empregam, com os
quais criminosamente se solidarizam”, dos dados completos de identificação
dos militares mortos na guerra entre 15 e 23 de Abril de 1974 extraídos dos
comunicados oficiais, ou da transcriação a negrito da referência do
Comando-Chefe das Forças Armadas de Angola que em Março “as baixas sofridas
pelas nossas forças totalizaram 12 mortos e 20 feridos”.
Para mim foi particularmente saboroso ler as “Passagens
do discurso do Ministro do Interior Dr. Moreira Baptista na cerimónia de posse
do novo Governador Civil do Porto Dr. Mário Valente Leal”. O governante
marcelista recordou a sua passagem por um liceu do Porto, num “momento da
vida nacional politicamente muito agitado”. Disse ele que “Os espíritos
andavam perturbados, as propagandas desenfreadas, e os conluios e conspirações
faziam-se e desfaziam-se ao sabor das manobras dos que ambicionavam travar o
passo ao ressurgimento nacional que, então, se iniciava”. E lembrou que “Foi
na altura em que, na Madeira, eclodiu uma intentona que marcaria o fim do
aventureirismo de uns quantos que, por essas épocas, intentavam usar as forças
armadas procurando fazê-las intervir em dissidências da política que nada tinha
a ver com os autênticos interesses da Nação”, numa alusão clara ao falhanço
do 16 de Março, sem suspeitar do destino próximo do regime.
Mas acima de tudo apreciei a publicação em página inteira da
«Conclamação de universitários à juventude portuguesa intitulada «Autêntico
Sentido da Grandeza Lusa» feita pelo «Centro Cultural Reconquista» com sede em
Coimbra. Nela os signatários António Carlos de Azeredo e Simão Pedro de Aguiã
conclamavam a continuação da defesa da "Civilização Cristã, que
esquerdistas e comunistas querem extirpar," e apelavam os jovens
portugueses a "insurgirem-se contra os móveis, obviamente censuráveis e
maus, da campanha oposta à união das províncias do Ultramar à Metrópole"
e a "formar fileiras, mais do que nunca, em torno da bandeira
portuguesa, num protesto veemente contra essa fermentação antilusa."
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