terça-feira, 21 de novembro de 2023

O Festival

 


Tinha chegado o momento de conhecer os amigos do filho que estava na Escola Naval. Uma coisa era ouvir falar deles, outra era conversar, cara a cara, com cada um. Por isso, o Senhor Coronel autorizou o filho, recém-promovido a Aspirante, a convidar os camaradas mais próximos para um jantar de família.

Foi assim que os cinco jovens que há pouco mais de um ano tinham decidido concorrer à EN pelas mais díspares razões, mas que tinham, entretanto, construído uma tão sólida quanto improvável relação de amizade que ainda perdura apesar de todas as vicissitudes e diferentes visões e percursos de vida, iniciaram as actividades do final daquele sábado, dia 20 de Novembro de 1971: com uma reunião e jantar familiar, mas formal, na casa do Senhor Coronel, no Estoril.

É verdade que os jantares na casa do Senhor Coronel se repetiram mais tarde na garrafeira, cada vez mais informais e sempre servidos pelo inesquecível Domingos, jantares que só por si, mereceriam que lhes dedicasse um texto. Mas por ora lembro apenas aquele porque, para além de ter sido o primeiro, ocorreu na casa de jantar da família e nele o Senhor Coronel confirmou a autorização para que a filha mais nova, uma adolescente de treze anos, fosse com o irmão e os amigos assistir ao 1º Festival Internacional de Jazz de Cascais.

Não que o Senhor Coronel apreciasse jazz, mas que diabo, era o primeiro festival que se realizava em Portugal e, ainda por cima, com o patrocínio da Secretaria de Estado da Informação e Turismo e da Junta de Turismo da Costa do Sol. Nada de mal poderia acontecer à menina, ainda por cima acompanhada por cinco candidatos a oficiais da Armada.

Foi assim que, terminado o jantar que correu muito bem, os cinco amigos e a irmã mais nova de um deles, rumaram ao pavilhão do Dramático de Cascais, tal como quase uma dezena de milhar de jovens como eles.

O que viram e sentiram ao entrar no pavilhão foi diferente de tudo a que estavam habituados em Portugal. Nas bancadas predominava a juventude, universitários e alunos do ensino médio da área de Lisboa que se tinham reunido com os amigos e ido até Cascais ver o que aquilo dava. A maioria nada sabia de jazz e nunca tinha ouvido falar de Miles Davis, de Ornette Coleman ou de Dizzy Gillespie. Mas havia no ar uma sensação de novidade, de liberdade, como se de repente tivessem saído do Portugal cinzento e estivessem no estrangeiro.

Suportaram alegremente as más condições de um pavilhão gimnodesportivo cujas obras estavam paradas há anos e não protestaram contra as longas interrupções do espectáculo para substituir os instrumentos no palco. Aplaudiram músicos e temas musicais que mal conheciam, num ambiente de festa, de partilha de uma nova experiência, que compensava todos os incómodos.

Até que na segunda parte o contrabaixista Charlie Haden, do quarteto de Ornette Colleman, decidiu usar o microfone destinado a amplificar o som do contrabaixo para dedicar o tema “Song for Che” aos movimentos de libertação em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Seguiu-se uma enorme ovação de centenas de jovens na plateia e nas bancadas, muitos deles com os punhos no ar e a gritar palavras de ordem contra a guerra colonial. A imprensa oficial, fortemente condicionada pela censura, ignorou o incidente e só muito dificilmente podemos encontrar ténues alusões a ele nas notícias publicadas nos dias seguintes.

Hoje sabemos que não se passou nada de grave, mas os cinco amigos, ao verem a movimentação da polícia e dos pides que entraram logo no pavilhão, decidiram abandonar o espaço do espectáculo. Não porque não estivessem familiarizados com situações idênticas, alguns deles tinham-nas vivenciado noutros ambientes, mas porque receavam pela segurança da menina à sua guarda. À saída viram as carrinhas da polícia de choque e um oficial do Exército fardado a rigor, de botas e pingalim, provavelmente seria o comandante da força policial.

A polícia acabou por não intervir e deixou o espectáculo terminar, eventualmente receosa das repercussões dada a presença de muitos estrangeiros na assistência. Mas o Charlie Haden foi levado para a sede da PIDE/DGS na António Maria Cardoso e sujeito a um interrogatório cujo auto só foi conhecido depois do 25 de Abril de 1974. Deixou Lisboa na manhã do dia 22, com ordem para não voltar a entrar em território português. E o segundo dia do festival só não foi cancelado como inicialmente a PIDE/DGS ordenou porque os organizadores prometeram que o incidente não se repetiria e lhes forneceram os 500 livre-trânsitos que exigiram. Não imaginava que houvesse tantos pides a gostar de jazz!

Charlie Haden voltou a Portugal depois da Revolução dos Cravos e actuou com Carlos Paredes com quem gravou uma versão do tema “Song for Che” com guitarra portuguesa. Compôs e gravou também uma interpretação da “Grândola Vila Morena”.

Quanto ao Senhor Coronel, receamos que depois do episódio do festival, tenha pensado que os amigos do filho afinal não eram boas companhias para a filha adolescente. Os amigos não sabem se foi por isso, mas a verdade é que nunca mais autorizou a filha a sair com o irmão e os amigos marinheiros.





domingo, 10 de setembro de 2023

Despedida

 


Nasceu e cresceu no lugar da capela e das duas árvores no cimo do monte.

Quando partiu, pediu-me que a levasse para o lugar onde nasceu.

Hoje voltou ao lugar da capela e das duas árvores no cimo do monte.

E do cimo do monte, debaixo das duas árvores, toda a sua prole lhe disse adeus.




quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O ardil da memória

 

Aprendi muito jovem a questionar as testemunhas de eventos passados que afirmam categoricamente: “Creiam em mim, eu estava lá!” Essa desconfiança é maior quando se trata de eventos extraordinários ou traumáticos, como guerras ou revoluções.

Um exemplo da guerra é o combate do “Augusto Castilho” contra o cruzador submersível alemão U-139. A narrativa oficial, consagrada na História, privilegiou o heroísmo dos doze elementos da guarnição que chegaram à Ponta de Arnel, no nordeste de São Miguel. Os outros, que foram para Santa Maria no salva-vidas do navio, foram retratados como menos corajosos e disciplinados. Foi assim que percebi o porquê do meu Avô não gostar de falar do combate em que participou. Ele achava que a história oficial não era rigorosa, mas não tinha poder, nem vontade, de a contestar.

Um exemplo de revolução é o 25 de Abril. Apesar do trabalho de historiadores competentes para analisar os antecedentes e a execução do golpe militar, acredito que a narrativa que prevalecerá, sobretudo nas comemorações do cinquentenário, será a dos que sabem comunicar melhor as suas memórias pessoais, tenham ou não estado lá. O problema é que quem os ouve ou lê confunde muitas vezes a História com essas memórias pessoais, esquecendo-se de que elas não correspondem à impressão original dos eventos reais na mente de quem as transmite, mesmo que os tenha vivido ou observado, nem representam a verdade histórica desses eventos.

Na realidade, sabemos hoje que as nossas memórias pessoais são construídas pela interação com outros indivíduos, quase sempre no seio de grupos sociais particulares, e que cada um de nós não controla totalmente o processo de recuperação do passado mais distante. A memória pessoal é um produto da interação social, que molda as recordações individuais de acordo com os grupos a que pertencemos. Mesmo que acreditemos que a nossa memória é puramente pessoal, baseada em experiências únicas que vivemos ou testemunhamos, a verdade é que a memória individual se transforma em coletiva ao longo do tempo, devido aos acréscimos e esquecimentos que resultam das diversas interações sociais.

Cada pessoa percebe o mundo, e o passado, através de construções coletivas como a linguagem. Além disso, a seletividade da memória, reforçada pelas narrativas, faz com que os mesmos factos não sejam lembrados da mesma maneira em diferentes momentos. Tudo isso gera um equívoco persistente entre o conhecimento histórico e a memória e torna ilusório alguém pensar que a sua memória representa a verdade histórica sobre qualquer assunto.

A memória de cada um de nós, tenhamos ou não consciência disso, foi influenciada e afetada pelas interações sociais, ao longo dos anos. As recordações são de facto narrativas e, como tal, são inevitavelmente seletivas. Se não somos capazes de nos lembrar de tudo, somos ainda menos capazes de narrar tudo; a ideia de uma narrativa exaustiva é um absurdo.

Por isso, as atitudes de apropriação do passado histórico pelos que usam o argumento irrefutável de que “Eu estava lá!”, são muito prejudiciais. A ideologização da memória, e todas as formas de manipulação da mesma natureza, tornaram-se possíveis exactamente através da elaboração de narrativas que alimentam a memória coletiva.

E é difícil separar a responsabilidade pessoal dos actores individuais, da das pressões sociais que actuam subterraneamente na memória coletiva, seja ela sobre um combate naval da Primeira Guerra Mundial, seja sobre o que aconteceu antes e durante o 25 de Abril de 1974.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Lugares



Texto escrito e lido pela Catarina na despedida da Avó:

A árvore está enraizada no cimo de um monte perto de uma aldeia perdida no orgulho de quem por lá vive, caiando as casas, podando os pomares e canteiros, mantendo as ruas para que quem os visite, encontre um lugar acolhedor e belo.

Ao som dos sinos da pequena capelinha os netos sobem à vez para o baloiço artesanal pendurado na oficina da casa. O avô encontra em todos os objectos e pequenos seres uma forma de explicar a vida. A avó atarefa-se nos infindáveis afazeres domésticos, que dão ordem e paz ao dia-a-dia. Os netos vivem cada experiência como uma aventura inesquecível e percorrem os trilhos e montes, descobrindo infortunados sapos e frutos apetecíveis.

A casa tem uma adega, símbolo e memória de outros tempos, onde se pisavam as uvas de pés descalços e se cantavam músicas da terra para marcar compassos. Nas salas permanecem molduras imóveis com imagens imóveis de quem deixou marcas e foi marcado pela vida. Num corredor existe uma pequena porta com umas pequenas escadas até um pequeno sótão, onde de uma pequena janela surge, ao longe, a árvore enraizada no cimo do monte.

Quando a lua aparece e o sol se despede, os netos trepam o monte e sentam-se na copa da árvore. Ali encontram a serenidade do campo e o cheiro da terra. Partilham a descoberta da imensidão da paisagem visível a partir daquele lugar e sabem que, aquele é, apenas o início.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A nossa força

 


Pela sua força interior, pela sua perseverança, pelo seu gosto de viver, pela sua entrega aos outros, foi sempre o nosso exemplo.

Alguém disse que tal como num conto, na vida não é a duração que importa, mas a sua qualidade. A minha mãe conseguiu juntar a qualidade à duração e isso fez dela um ser humano excepcional.

Viveu com o meu pai o mais belo romance de amor. Deu o melhor de si aos dois filhos. Inquietou-se com os seis netos e os doze bisnetos. Foi a amiga com que todos podiam contar.

Sentia-se feliz quando podia ser útil aos outros. Essa foi a força e a lição de vida da minha Mãe!

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Anamnese



Quando em Agosto de 1977 viajei para a Califórnia com a João e a Joana, mais precisamente para Monterey, sabia que seria uma mudança significativa na nossa vida. Profissionalmente, ia fazer uma pós-graduação de mais de dois anos e teria oportunidade de conhecer o que de mais avançado se investigava e realizava em engenharia. Familiarmente, era o desafio de vivermos um longo período num país muito diferente do nosso, numa sociedade que mal conhecíamos e afastados de tudo a que estávamos habituados. É certo que teríamos o conselho dos quatro camaradas que já lá estavam há um ano e o apoio do sistema social da Marinha dos EUA. Mas o desconhecido e os condicionalismos financeiros que a desvalorização do escudo tinham criado, faziam com que a mudança fosse uma aventura.

Fomos morar numa pequena moradia com relvado à volta no bairro de La Mesa, na periferia de Monterey, onde éramos conhecidos como os pais da Joana. Como não era possível viver na Califórnia sem carro, optámos por um velho e muito rodado VW 1600 Fastback adquirido com um empréstimo do banco local, em vez dos enormes consumidores de gasolina “made in USA”, símbolos de uma indústria que então já estava ferida de morte pelos choques petrolíferos. Passámos também a auferir dos múltiplos serviços de apoio à família militar – “Exchanges”, saúde, etc. – que caracterizam o sistema militar norte-americano e foi assim que, pouco mais de um ano depois, a Catarina nasceu no Silas B. Hays Army Hospital, em Fort Ord, “Home of the 7th Infantary Division”, a pouco mais de 9 milhas (15 km) da nossa casa.



Academicamente, passei a preocupar-me em aprender tudo o que fosse possível sobre a optimização das instalações motoras baseadas nos ciclos de Brayton, as para mim novidade turbinas a gás, e de Diesel, os já bem conhecidos motores de combustão interna que equipavam a esmagadora maioria dos navios militares portugueses. Tratava-se de preparar um futuro que se previa dominado por aquelas tecnologias, assim como pela electrónica dos sistemas de automação. Todo o meu quadro mental foi condicionado para exercer a profissão num mundo de motores de combustão interna de combustíveis fósseis, em que o principal objectivo era maximizar o rendimento, a segurança e a fiabilidade das instalações, com emissões ambientais mínimas.
 
Quando ainda antes dos graves acidentes de Three Mile Island e Chernobil já se contestava o nuclear (lembram-se de Ferrel?), os estudantes de engenharia eram preparados para um futuro dominado pelos combustíveis fósseis como fonte principal de energia. A central de produção de energia eléctrica de Moss Landing, a menos de 20 milhas de Monterey, com duas instalações de vapor de ciclo supercrítico, era apresentada nos livros de termodinâmica como um exemplo de inovação. E mesmo quando uns anos mais tarde foi modernizada, a opção foi instalar duas novas unidades de ciclo misto de turbinas a gás e melhorar o controlo de emissões, sem abandonar os hidrocarbonetos como fonte de energia.


Foi este o mundo para que me preparei. E foi nele que exerci a profissão de engenheiro mecânico durante mais de duas décadas e em que o cume terá sido o projecto e a construção das fragatas da Classe “Vasco da Gama”, com motores Diesel e turbinas a gás exemplarmente eficientes e fiáveis. Mesmo na vida privada e apesar das artimanhas electrónicas da VW para viciar os valores das emissões dos motores automóveis, habituei-me a confiar na fiabilidade e na resistência dos motores Diesel. Fiabilidade e resistência que os motores eléctricos, apesar de terem apenas 1% do número de peças móveis dos motores de combustão interna, ainda não atingiram.

Passado quase meio século, o mundo alterou-se profundamente. Os donos do mundo condenaram os motores de combustão interna, em especial os Diesel, a desaparecer nos automóveis e com eles toda a estrutura de abastecimento e reparação, com a inevitável eliminação de milhões de postos de trabalho. E determinaram que o futuro pertence aos veículos com motores eléctricos e, imaginem, ao nuclear, para fazer face à procura de energia eléctrica.
 
Estou certo de que em Monterey também muito se terá alterado relativamente ao que encontrámos em Agosto de 1977. Há alguns anos confirmei no local que a nossa casa já não existe. Sei também que o hospital de Fort Ord onde a Catarina nasceu, assim como a base do Exército norte-americano, foram encerrados. E sei que a central de Moss Landing é hoje uma enorme instalação de baterias de lítio da Tesla, ligada à rede eléctrica da Califórnia.

  
Da antiga central, sobram as duas chaminés que em 1977 já eram usadas pelos pescadores como pontos conspícuos em terra.


quarta-feira, 14 de junho de 2023

Semear Abril



Hoje fomos à EB1 José Jorge Letria do Agrupamento de Escolas da Cidadela para a sexta e última conversa do projeto “Semear Abril”. Conversámos sobre o impacto do 25 de Abril e da Revolução dos Cravos na vida dos portugueses em Portugal e no estrageiro e, em especial, lembrámos a luta, em 1984, das mulheres da comunidade portuguesa de Toronto, no Canadá, por melhores condições de trabalho e salariais. Foi o culminar de uma sequência de conversas com crianças dos 3º e 4º anos do ensino básico sobre o 25 de Abril e os seus valores. 

No corrente ano letivo, duas escolas do 1º ciclo do ensino básico aderiram ao projeto “Semear Abril”: a EB1 José Jorge Letria do Agrupamento de Escolas da Cidadela e a EB1 Fausto Cardoso de Figueiredo do Agrupamento de Escolas Ibn Mucana, ambas no concelho de Cascais. 


Como até este ano letivo o "Abril Hoje" e as palestras sobre o 25 de Abril foram dirigidas a escolas secundárias ou do 2º e 3º ciclos do ensino básico, divulgar e debater o 25 de Abril e os seus valores com crianças de idades entre os 7 e os 9 anos constituiu um novo e aliciante desafio.

Cada sessão de 90 minutos foi dividida em duas partes: a primeira, de evocação do processo de organização do MFA e de preparação e execução do golpe militar, tomando como referência as ocorrências no período correspondente, há 49 anos; a segunda, de apresentação e debate de um tema que interessasse às crianças e de alguma forma estivesse relacionado com os valores de Abril.

Em outubro, falámos do Portugal do Estado Novo, das condições de vida difícil que empurraram muitos portugueses para a emigração, da repressão e restrições à liberdade individual, social e política, e da guerra em África. Depois de descrevemos o processo de maturação do MFA, propusemos que os alunos trabalhassem a história d’“O Carapau de Corrida” e participassem no júri de Turma com o objetivo de compreenderem a importância do contributo individual e coletivo para o bem-estar e sucesso do grupo.

Em novembro, detalhámos o processo de consciencialização e debate interno no MFA que culminou com as reuniões de São Pedro do Estoril e Óbidos e contámos a história da Casa da Cerca e da família Ribeiro que a habitou até 1988. Depois ensinámos nós de marinheiro, lembrámos que sem nós o que seria de nós, procurámos nos nós o que gostaríamos de ter em nós, falámos de justiça a propósito do nó direito e aconselhámos a evitar o nó cego ou… górdio.

Em janeiro, explicámos como se deu a estruturação do MFA e como se esboçaram as grandes linhas políticas do seu programa. Para que os alunos chegassem à definição de uma sociedade justa que assegure o acesso aos bens básicos a todos, os direitos e as liberdades fundamentais de todos os cidadãos, a igualdade real de oportunidades, uma vida digna para todos e uma distribuição da riqueza que beneficie os menos favorecidos, debatemos a vida no “Reino de Sikkal”, um país situado no alto das montanhas que, durante séculos, teve pouco contato com o resto do mundo.

Em fevereiro, continuámos a falar da estruturação do MFA que culminou com a aprovação do documento “O Movimento, as Forças Armadas e a Nação” na reunião de Cascais. Depois, para debater os temas da “Gestão de Conflitos”, da “Liderança e Disciplina” e da “Responsabilidade e Limites das Liberdades Individuais”, debatemos o conto “Estúpidas são as galinhas” que descreve a atribulada partida de uma nau da Índia de Goa, em 1750.

Em abril, descrevemos o planeamento e a execução das operações militares do dia 25 de Abril de 1974 e conversámos sobre o texto “A Casa e o Forte” que relata a libertação dos presos políticos da cadeia de Peniche em 27 de Abril de 1974.

Durante o ano letivo, os alunos participaram em outras iniciativas do “Semear Abril” como, por exemplo, a edição do jornal escolar, o debate sobre bullying, o cuidar de um canteiro de cravos ou a exposição de trabalhos sobre o 25 de Abril.

Para nós, foi uma experiência extraordinariamente gratificante. Ainda hoje, depois de uma hora a falar de um tema “puxado” para uma turma do 4º ano, foi bom ouvir as opiniões positivas e os agradecimentos de quase todos os jovens. E em especial, foi bom receber um pequeno bilhete com esta mensagem manuscrita: “Jorge, muito, mas muito obrigada pela história e atenção. Alice.”

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Abrilimagem

 


Disse Saramago que “nós estamos constantemente a (re)elaborar a nossa memória. Não quer dizer que a transformemos noutra coisa, não quer dizer que as transformemos em memórias diferentes, mas transformamo-las em memórias de memórias.” Foi o que senti quando o motor de busca do Google mostrou, por acaso, uma imagem que me fez recuar a Abril de 1980.

A imagem, mais propriamente a Abrilimagem, é de uma colagem de Marcelino Vespeira de recortes de cartazes da Dinamização Cultural e da serigrafia de António Inverno (o Vespeira marcou bem a diferença entre os dois objectos artísticos), criada para comemorar o 6º Aniversário do 25 de Abril. Foram impressas 150 serigrafias com 54x34 cm assinadas por Vespeira e 1000 miniaturas com 18x27 cm e legenda, tal como a reproduzida na imagem.

A Abrilimagem foi a primeira de uma série de serigrafias de grandes artistas, editadas pelo Clube Militar Naval para comemorar o 25 de Abril. As miniaturas foram entregues a quem veio festejar a noite de 24 para 25 de Abril nesse ano de 1980, nas antigas instalações do CMN no Marquês de Pombal.

Lembro-me particularmente bem das comemorações desse ano no CMN. Acabado de regressar de uma estadia de mais de dois anos nos EUA, fazia parte da recém-eleita Direcção. O Comandante Duarte Costa, meu professor na Escola Naval e meu comandante na corveta “António Enes” onde vivemos os tempos conturbados do Verão de 1975 no Continente e do Inverno de 1975/76 nos Açores, entendeu por bem convidar-me apesar de eu não ser um frequentador do CMN. Como é natural, aceitei sem hesitar e com o espírito de missão que ele me ensinou.

Se nunca fui dado a actividades sociais, naquela altura estava ainda mais afastado de tudo o que era o mundo político e artístico lisboeta e não sabia quem era quem na sociedade da época. Mais de dois anos a estudar na Califórnia, num tempo em que as comunicações em nada se comparavam com as actuais, era como viver noutra galáxia. De Portugal chegava apenas o que a família e os amigos escreviam, mas era inevitavelmente pouco.

Por isso, quando na noite de 24 para 25 de Abril de 1980 estive na porta do CMN, com outros camaradas da Direcção, a receber os convidados e a controlar as entradas de milhares de pessoas que queriam marcar presença no que então era o local mais “in” para celebrar o 25 de Abril, a maioria dos que entravam, muitos acompanhados de cortes numerosas, eram perfeitos desconhecidos.

Ao longo da noite apareceram os mais e os menos famosos, os mais e os menos importantes, os mais e os menos familiares dos famosos, os mais e os menos amigos dos importantes, e nós tivemos de arranjar maneira de evitar que um espaço que se encheu rapidamente nas primeiras horas, se tornasse ainda mais sobrelotado e perigoso. Muitos ficaram na rua e acabaram por desistir. Não sei se contou como marcação do ponto no evento, mas foi inevitável dadas as características do edifício.

Hoje não é fácil descrever o que então se passou. Só quem lá esteve tem ideia do fervor abrilista que muitos procuravam mostrar. E quem viveu essa noite de 1980, não de 1974 ou 1975, não pode deixar de sorrir quando mais de quarenta anos depois, ouve alguns dizerem que só se libertaram do poder dos militares em 1982. Se se sentiam oprimidos pelos militares, não se notava nada...

António Pedro da Silva Chora Barroso
À medida que a noite avançava, fui afinando o critério para barrar os penetras que diziam ser este ou aquele, ou amigos do fulano ou sicrano que já tinha entrado. No caso dos alegados amigos de artistas conhecidos, cedo percebi que o objectivo era quase sempre usufruir dos mimos com que os recebíamos. Até que um homem da minha idade, solitário, se aproximou e disse: “Sou Pedro Barroso e estive nos Fuzileiros. Gostava de actuar, mas já vi que isto está muito cheio.” E enquanto falava, entregou-me um folheto de apresentação.

Confesso que não sabia quem era. Não conhecia o artista nem o fuzileiro. Percebi mais tarde que já nos tínhamos cruzado, ele era do 24.º Curso Especial de Oficiais da Reserva Naval e, provavelmente, conhecia-me. Eu é que, muito fraco a fixar fisionomias, não o reconheci. No entanto, simpatizei com a sua abordagem e convidei-o a entrar, havíamos de arranjar maneira de actuar. Não terei sido suficientemente convincente e o Pedro Barroso agradeceu e foi-se embora. E o folheto de apresentação perdeu-se na confusão da mesa da entrada do CMN.

Só mais tarde reconheci a qualidade do seu trabalho. E fiquei com pena de não ter insistido que entrasse. Teria gostado de o ver actuar.

terça-feira, 18 de abril de 2023

A Casa e o Forte

 

Foto Ezequiel Santos

Viu os presos de delito comum construírem os novos blocos prisionais. Três pavilhões, o A, o B e o C, arquitectados a pensar nos presos políticos. É verdade que outros prisioneiros já tinham passado pela fortaleza, alemães e austríacos na Grande Guerra, portugueses com o Estado Novo. Mas agora era uma cadeia a sério, de alta segurança.

O Forte, orgulhoso da sua nova condição, continuou a contar à Casa tudo que se passava no seu interior, agora ainda com mais detalhes. E a Casa, curiosa, ouvia-o do outro lado do Campo da Torre e partilhava com ele o que via e ouvia, dentro e fora das suas paredes. Mas nenhum deles, ao longo de décadas, alguma vez revelou a terceiros os segredos que trocaram.

Eu bem tentei que Casa me contasse alguns, mas ela até hoje não me fez a vontade. Guardou para si tudo o que o Forte lhe contou, com o mesmo cuidado com que guardou e guarda os segredos de cinco gerações da família que a habita. Guardou para si as histórias dos presos e da cadeia, os pormenores da fuga de Janeiro de 1960, as conversas dos pides que passaram a abrigar-se junto a ela nas vigílias noturnas, as entradas e saídas das visitas dos presos e até a libertação deles depois do 25 de Abril de 1974.

A Casa soube, porque o Forte lhe disse, da preocupação dos presos e dos guardas quando receberam as primeiras notícias do golpe militar em Lisboa. Assistiu à chegada dos militares do RI10[1] de Aveiro no início da manhã de 25[2], convencidos que as forças do RAP3[3] e CICA2[4], que com eles e o RI14[5] constituam o “Agrupamento NOVEMBER”, já tinham tomado a cadeia do Forte.

Surpreendeu-se com a rapidez com que os feirantes desmontaram as bancas e as tendas da tradicional feira da última quinta-feira do mês no Campo da Torre, depois de terem recebido ordem para abandonarem o espaço em cinco minutos.

Testemunhou a surpresa do Tenente da GNR que comandava o destacamento responsável pela segurança da cadeia quando o comandante da companhia do RI10 bateu à porta e exigiu a rendição. Assistiu ao cerco do Forte pela força do CICA2, maioritariamente constituída por recrutas, depois da partida das restantes forças do agrupamento para Lisboa.

Mas quando lhe pedi que pelo menos me contasse a libertação dos presos políticos, a Casa e o Forte fecharam-se em copas e nada disseram. Se não fossem os dois amigos Carlos, o Machado dos Santos do lado dos “libertadores”[6] e o Saraiva da Costa do lado dos “libertados”[7], só muito dificilmente teria sabido os detalhes do que se passou no Forte naqueles dois dias.

No dia 25 de Abril de 1974 estavam 36 presos políticos no Forte. O “Carlos libertado” estava no pavilhão B, reservado aos presos políticos das organizações maoistas, da LUAR e oriundos das então colónias africanas. Às 8 horas da manhã do dia 25, ele e alguns dos seus companheiros notaram que o aparelho de rádio fora silenciado. “Uma avaria, já está a ser reparada", explicou o guarda de serviço ao pavilhão. O dia anunciava-se de grande tensão porque iam iniciar uma greve de fome de solidariedade com os presos de Caxias que se encontravam em luta contra as condições prisionais.

Por volta das 11 horas aperceberam-se que a RTP transmitia marchas militares e recearam um golpe militar do Kaúlza de Arriaga. Quando às 13 horas as visitas não foram autorizadas a entrar, insistiram junto do chefe dos guardas que acabou por confessar que ocorrera em Lisboa um levantamento militar, que o Governo de Marcello Caetano fora deposto e que foram detidos os principais responsáveis do regime. Atribuiu a direção do golpe militar a um tal MFA e ao general Spínola.

Receosos de serem utilizados como reféns, os presos políticos romperam o diálogo com as forças prisionais e ergueram barricadas. Exigiam a libertação imediata e por ela mantiveram-se barricados até cerca das 16 horas do dia 26.

A essa hora, na Cova da Moura[8], em Lisboa, o Coronel Vasco Gonçalves entrou no gabinete onde estavam os oficiais da Armada e pediu um voluntário para participar na libertação dos presos políticos do Forte de Peniche. O Capitão-tenente Machado dos Santos, o “Carlos libertador”, ofereceu-se para a missão e, com o Major Moreira de Azevedo, foi levado por Vasco Gonçalves à presença do General Spínola.

Spínola, depois de uma dissertação sobre as limitações que impunha à libertação dos presos − os que estivessem acusados de crimes tais como homicídio, assalto a bancos, falsificação de documentos, não seriam libertados − e de um murro na mesa depois do “Carlos libertador” o contrariar, ordenou que os dois oficiais partissem de imediato para Peniche, acompanhados de três advogados que resolveriam todas as questões jurídicas.

Feita a viagem no Mercedes do ex-Ministro da Defesa, o grupo chegou ao Campo da Torre por volta das 22 horas, onde cerca de um milhar de populares e de familiares dos presos os aplaudiram e criticaram por virem tarde. Bateram à porta do Forte e foram recebidos pelo tenente da GNR que comandava a guarnição que ali se manteve após a ocupação.

Quando se aperceberam que o comandante da força do Exército que tinha ocupado o Forte não se encontrava em condições de poder colaborar, substituíram-no pelo seu segundo numa espécie de tribunal que foi constituído no gabinete do Director da prisão: o “Carlos libertador” a presidir, o segundo da Companhia do Exército à sua esquerda e os três advogados nomeados por Spínola à sua direita.

Chamado o primeiro preso, o “Carlos libertador” fez sentir aos advogados que não estavam ali a fazer nada pelo que o processo de libertação avançou rapidamente até chegarem aos quatro presos acusados de crimes de sangue: Francisco Martins Rodrigues, João Pulido Valente e Rui d'Espiney, ligados à FAP (Frente de Acção Popular), por causa da execução de um informador da PIDE que os denunciara e Filipe Viegas Aleixo, envolvido no assalto ao paquete Santa Maria, na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961.

Depois de terem saído os presos ligados ao PCP, encarcerados nos outros pavilhões, os presos do pavilhão B, onde estava o “Carlos libertado”, decidiram unanimemente: "Ou saímos todos ou não sai ninguém!" E assim, de facto, aconteceu. Só depois de o “Carlos libertador” ter proposto que fosse lavrado um termo de responsabilidade, em papel timbrado da prisão e em triplicado, assinado por Moreira de Azevedo, Machado dos Santos e o advogado Macaísta Malheiros, que declarou que os três presos acusados de crimes de sangue permaneceriam na sua residência particular, em Lisboa, nos Olivais, aguardando decisão definitiva da Junta de Salvação Nacional, é que o processo de libertação foi concluído.

E foi assim que, já no dia 27, a Casa viu sair do Forte todos os restantes presos políticos para receberem o abraço inesquecível do povo de Peniche. E soube que o Tenente da GNR, antes do regresso do grupo a Lisboa no Mercedes ministerial, convidou os dois oficiais e os três advogados a atacar uma ceia de peixe acabado de chegar do mar e assado “in loco”, acompanhado pelos adequados complementos sólidos e líquidos.

A Casa e o Forte não souberam, mas eu soube porque o “Carlos libertador” contou, que no dia 27 à tarde, os dois oficiais do MFA foram à Cova da Moura procurar o General Spínola para relatarem a missão e colocarem a questão dos libertados condicionais.

Só encontraram o Almirante Rosa Coutinho, que tendo presenciado a cena da véspera e ao lhe ser apresentado o termo de responsabilidade de Macaísta Malheiro, nele escreveu e assinou um despacho de prescrição da custódia, enquanto dizia: “Sabem, isto está a andar muito mais depressa do que aquilo que se previa!”


[1] Regimento de Infantaria N.º 10 – Aveiro.

[2] CONTREIRAS, Carlos de Almada. Operação “Viragem Histórica” - 25 de Abril de 1974 (1ª Edição), pág. 287. Edições Colibri, 2017.

[3] Regimento de Artilharia Pesada N.º 3 – Figueira da Foz.

[4] Centro de Instrução de Condução Auto Nº 2 – Figueira da Foz.

[5] Regimento de Infantaria N.º 14 – Viseu.

[6] CONTREIRAS, Carlos de Almada. Operação “Viragem Histórica” - 25 de Abril de 1974 (1ª Edição), pág. 636. Edições Colibri, 2017.

[7] COSTA, Carlos Saraiva da. Os "últimos dias" de Peniche. Diário de Notícias, 27 Abril 2019 (https://www.dn.pt/poder/os-ultimos-dias-de-peniche-10838196.html).

[8] Palácio da Cova da Moura, sede da Junta de Salvação Nacional.

sábado, 18 de março de 2023

As lições do Comandante Saturnino Monteiro

Escola Naval - 25 de Novembro de 2010

O Comandante Saturnino Monteiro prestou serviço na Escola Naval (EN) em dois períodos distintos, o primeiro na viragem da década de 1960 e o segundo dez anos depois, na viragem da década de 1970 (de Outubro de 1968 a Julho de 1972).

Muitos anos depois, num depoimento sobre a sua experiência na EN para o projecto de História Oral da Academia de Marinha, afirmou que o segundo período representou uma diferença “como de água para vinho” em relação ao primeiro. “O ambiente era completamente diferente, existia uma descrença muito grande entre os cadetes da Escola, e muitos deles, entre os mais ativos, criavam um clima claramente subversivo.” E especificou: “Isto passa-se mais ou menos entre 1970 e 1972, já na fase final da guerra em que havia uma grande propaganda nos meios académicos, e esses rapazes, através das namoradas, muito ligadas pelas Universidades, estavam perfeitamente contagiados.

Ora eu, que entrei na EN em 1970 e tinha uma namorada na Faculdade, não podia ficar indiferente e escrevi um texto intitulado “A culpa foi das namoradas” sobre a explicação do Comandante Saturnino Monteiro para a minha descrença na ditadura e na guerra. Mas não interpretem a minha ironia como uma manifestação de menor respeito pelo autor do depoimento, tanto mais que o Comandante Saturnino Monteiro, embora conservador, era um oficial educado, íntegro, coerente e leal, e foi um dos quatro que mais me influenciaram na EN.

O Comandante Saturnino Monteiro, para além de Comandante do Corpo de Alunos, foi o nosso professor de Organização e Arte de Comando. Foi ele que nos transmitiu os valores essenciais da condição militar e nos ensinou como as leis que a regem, desde logo o Regulamento de Disciplina Militar, obrigam tanto os subordinados como os superiores hierárquicos. Certamente por isso, convidámos o Comandante Saturnino Monteiro para proferir uma lição no 40° aniversário da entrada do nosso curso na EN.

Pois foi no tal período de 1970 a 1972, em que segundo o Comandante Saturnino Monteiro existiam “cenas e ações que excediam todos os limites da disciplina”, que ocorreu um Juramento de Bandeira assim descrito pelo próprio Comandante Saturnino Monteiro:

Na véspera do Juramento [os cadetes] puseram a Escola em pé de guerra, aqueles bustos das figuras históricas foram postos em situações incríveis, cortaram os botões das fardas aos oficiais, mas isso não era uma rapaziada, isso estava inserido naquele ambiente subversivo, que então existia a Escola Naval. No dia em que se ia realizar a cerimónia de Juramento, de manhã, achei por bem dizer ao Comandante da Escola que telefonasse ao Chefe do Estado-Maior explicando que não podia haver Juramento, e que pedisse um pelotão de Fuzileiros para ir á Escola e mandasse esses cadetes todos presos para o Corpo de Marinheiros, porque era inacreditável o seu comportamento.

Foi assim neste contexto que, como chefe do meu curso, acabei por participar em várias reuniões da hierarquia da EN com os mais antigos de todos os cursos para tentarem resolver os sucessivos impasses que foram criados. Nesses concílios ouvi de tudo, assisti à desorientação total, aos convites à delação, à discussão das mais estapafúrdias sugestões e ameaças. Mas apesar disso, observei que o Comandante Saturnino Monteiro acabou por ser o oficial que se manteve mais lúcido, que assumiu a liderança do processo de resolução do imbróglio, sempre dentro das regras da arte de comando e da disciplina militar. Aliás, se não fosse ele a coisa podia ter sido muito mais feia.

E a verdade é que o comportamento e as lições do Comandante Saturnino Monteiro foram uma ferramenta essencial para as iniciativas contestatárias do nosso curso ao longo dos quatro anos na EN. Até sairmos da EN, procurávamos não fazer nada que pudesse ser atacado como acto de indisciplina militar. E depois de sairmos da EN, cada um de nós continuou a usar as lições de Arte de Comando do Comandante Saturnino Monteiro nas situações difíceis que tivemos de enfrentar como oficiais.

Não sei se os efeitos práticos foram relevantes, mas não era fácil apanharem-nos em falso. E essa aptidão, que parece faltar a alguns dos protagonistas dos mais recentes acontecimentos na Marinha, aprendemos com o Comandante Saturnino Monteiro.

quarta-feira, 8 de março de 2023

A cadela que morava na lua

 


Era uma vez uma cadela que morava na lua. Era uma cadela muito curiosa e brincalhona, que gostava de explorar a superfície lunar. Brincava com tudo o que encontrava, embora na lua não tivesse muito com que brincar. Pegava nas pedras, atirava-as ao ar, corria para as apanhar, mas pouco mais podia fazer.

Por isso a cadela que morava na lua olhava para as estrelas no céu e imaginava que eram os amigos que não tinha na lua. Sonhava que um dia iria ter com eles e se assim pensou, melhor o fez. Construiu uma nave espacial e partiu em direcção à bola azul que via no céu.

Quando chegou, abriu a porta da nave e viu um menino a correr para ela, a sorrir. Surpreendida, correu para ele e latiu.
– Olá, amiguinha, eu sou o Miguel! Quem és tu, como te chamas? – perguntou o menino.
– Eu venho da lua – respondeu a cadela, abanando o rabo.
– Se vens da lua, então és a Lua! – decidiu o Miguel.
– Está bem, gosto, é um nome bonito! E que lugar é este? – perguntou a Lua, sempre curiosa.
– Isto é a Terra e se quiseres vir comigo eu mostro o que aqui há – disse o Miguel.
– Oh, sim! Vamos! – disse a Lua, pulando de alegria.

A Lua e o Miguel gostaram logo um do outro. O Miguel mostrou à Lua as árvores, as flores, os animais, as montanhas, os vales, os mares e as praias da Terra. Apresentou a Lua aos amigos, aos pais e aos irmãos, que ficaram muito felizes por conhecerem uma visitante da lua.

A Lua e o Miguel divertiram-se muito e tornaram-se os melhores amigos. Jogaram à bola, fizeram construções, contaram histórias e cantaram canções. Também aprenderam um com o outro. A Lua ensinou ao Miguel sobre a vida na lua, o Miguel ensinou à Lua sobre a vida na Terra.

Mas quando o Miguel ia para a escola, a Lua voltava a ficar sozinha, sem ninguém para brincar. Por isso a mãe do Miguel levava a Lua para o trabalho para estar com meninos que viviam sozinhos e não sabiam brincar. E a Lua, sempre brincalhona, ensinou-os a brincar. E eles ficaram muito felizes.

Assim, todos os dias, a Lua e o Miguel abraçavam-se e despediam-se. O Miguel ia para a escola e a Lua ia brincar com os meninos que moravam sozinhos. Até se reencontrarem no fim do dia e, juntos, olharem as estrelas no céu.

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The dog who lived on the moon

Once upon a time there was a female dog that lived on the moon. She was a very curious and playful dog, who liked to explore the lunar surface. She played with everything she found, although there was not much to play with on the moon. She picked up the rocks, threw them in the air, ran to catch them, but little else she could do.

The dog that lived on the moon looked at the stars in the sky and imagined they were the friends she didn't have on the moon. She dreamed that one day she would go with them and if she thought so, better she did. She built a spaceship and headed towards the blue ball she saw in the sky.

When she arrived, she opened the door of the ship and saw a boy running towards her, smiling. Surprised, she ran to him and barked.

– Hello, little friend, I'm Miguel! Who are you, what's your name? – asked the boy.

– I come from the moon – answered the dog, wagging her tail.

– Wow, that's amazing! Then I'll call you Lua, because that means moon in my language! – decided Miguel.

– Okay, I like it, it's a beautiful name! And what place is this? – asked Lua, always curious.

– This is Earth and if you want to come with me, I'll show you what's here – said Miguel.

– Oh, yes! Let's go! – said Lua, jumping with joy.

Lua and Miguel liked each other right away. Miguel showed Lua the trees, flowers, animals, mountains, valleys, seas, and beaches of Earth. He introduced Lua to his friends, parents, and siblings, who were very happy to meet a visitor from the moon.

Lua and Miguel had a lot of fun and became best friends. They played ball, made constructions, told stories, and sang songs. They also learned from each other. Lua taught Miguel about life on the moon, Miguel taught Lua about life on Earth.

But when Miguel went to school, Lua went back to being alone, with no one to play with. So Miguel's mother took Lua to work to be with children who lived alone and didn't know how to play. And Lua, always playful, taught them how to play. And they were very happy.

From then on, every day, Lua and Miguel hugged and said goodbye. Miguel went to school and Lua went to play with the children who lived alone. Until they met again at the end of the day and, together, looked at the stars in the sky.

segunda-feira, 6 de março de 2023

A queda de um mito

 
Quando ouço falar de reestruturações de empresas, lembro-me logo de uma empresa e de uma marca: Philips. E adianto já que não é pelas melhores razões.

É que sou de uma geração que cresceu rodeado de equipamentos que ostentavam um destes logotipos, em especial os dois primeiros, que a gigante holandesa Philips colocava nos seus produtos. Uma geração que se habituou a associar a marca Philips a inovação tecnológica e empreendedorismo, fosse na iluminação, na radiofonia, no áudio, na televisão, na electrónica de consumo, nas tecnologias de informação, nas comunicações, nos semicondutores, etc. Arrisco-me a dizer que em determinada altura não havia uma divisão das casas, um espaço dos locais de trabalho onde não fosse possível encontrar um dos logos da Philips.

Até mesmo quando na Marinha, na segunda metade da década de 1980, dei os primeiros passos no programa de aquisição das fragatas da classe Vasco da gama, lá apareceu a Philips como proprietária da solução de comando e controlo dos sistemas de combate dos navios. A Philips era omnipresente e simbolizava o sucesso empresarial nos mais variados sectores da economia mundial.

A partir da década de 1990, restruturação após restruturação, todas ela justificadas por presidentes executivos brilhantes e qualificados com os melhores MBA, a Philips foi-se desfazendo das áreas de negócio que tinham feito dela um dos mais conglomerados mundiais. A razão das reestruturações, quase sempre com o despedimento de trabalhadores, era sempre a mesma: livrar-se do que dava prejuízo para se concentrar no que, na opinião dos responsáveis, seria rentável. E assim a Philips acabou reduzida ao negócio original criado pelos seus fundadores, a iluminação, e ao dos equipamentos médicos, para tirar partido da crescente procura induzida por uma população cada vez mais envelhecida e doente.

A realidade, contudo, mostrou-se bem diferente do que os “reestruturadores” anunciaram. Várias das unidades descartadas, entres elas, por exemplo, a TSMC de Taiwan que é apenas o segundo maior produtor mundial de semicondutores, acabaram por se valorizar e obter lucros muito superiores aos da empresa mãe. E a fazer fé do relatório de resultados de 2022 (https://www.results.philips.com/), tudo leva a crer que até o negócio da saúde da Philips não tem a rentabilidade que foi anunciada em 2016.

Sem querer ser faccioso, mas não posso deixar de citar o comentário que li algures: “A Philips é um exemplo do que acontece quando se substitui engenheiros por MBA's e contadores de feijões.”

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Bodas de ouro

 

De facto, as nossas vidas cruzaram-se há mais tempo, quando fomos morar para o mesmo prédio em Lisboa, teria eu uns dez anos e a João oito. Mas há cinquenta anos decidimos entrar na igreja de São Roque e fazer a nossa festa. 

Uma festa bonita, em que dois dos protagonistas não seguiram o guião: o noivo porque não acreditava no ritual e o sacerdote porque falava para um tipo que não sabia as orações e não abria a boca.

A verdade é que, por mérito do simpático clérigo, correu tudo bem. Certamente convencido que um dia o noivo veria a luz, cumpriu a sua função, abençoou a união e desejou-nos felicidades. 

Passados cinquenta anos, não vi a luz mas o amor que nos levou à igreja de São Roque é hoje muito mais forte. E a festa fazemo-la com duas filhas, dois genros e oito netos.