terça-feira, 6 de junho de 2017

O aluno do poeta António Gedeão


Aníbal Jardim Bettencourt, 1956


Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão, Movimento Perpétuo, 1956


Esta é a história de um jovem nascido em Moçambique nos anos vinte do século passado mas que vamos encontrar em Lisboa, no último ano do liceu Camões, nas aulas de Química do professor Rómulo de Carvalho, o poeta António Gedeão da Pedra Filosofal. Filho de um casal de madeirenses que três ou quatro anos antes da primeira Grande Guerra cumpriram a sina de muitos portugueses, deixaram a terra natal e emigraram para Moçambique para fugir à pobreza e procurar uma vida melhor.

O pai teve vários empregos, foi colocado na ilha de Moçambique e mobilizado para combater os alemães no norte da província ultramarina até que estabilizou como funcionário dos correios na capital. A mãe, uma lutadora, criou os filhos, uma menina e quatro rapazes, e fazia o possível e o impossível para dilatar o magro ordenado do marido. Com os negócios que inventava, conseguiu mandar três filhos para a metrópole para tirarem cursos superiores. Medicina ou engenharia, queria ela. Os mais velhos fizeram-lhe a vontade e matricularam-se no Técnico.

O nosso jovem, excelente aluno, decidiu ser diferente e assim que acabou o liceu escolheu Agronomia. A mãe não achou muita graça, disse-lhe até que ia estudar para “engenheiro das nabiças,” mas sempre o apoiou. Terminou o curso de engenheiro agrónomo em 1948 e foi estagiar na Junta de Hidráulica Agrícola, no projecto de Idanha-a-Nova. Terminado o estágio ficou desempregado e regressou a Moçambique.

Concorreu aos Serviços de Agricultura e depois de meses de espera, foi admitido na Secção de Hidráulica Agrícola. Quando ocorreu um problema no vale do rio Incomáti, encarregaram-no de ir à Manhiça saber o que se passava. Elaborou um projecto de enxugo e rega para uma parcela do vale mas não o pôde executar por falta de financiamento e vontade política. Convencido que a burocracia de Lourenço Marques nunca o deixaria fazer obra válida, pediu transferência para Inhambane para estudar e trabalhar a cultura do café racemosa, espécie espontânea no litoral arenoso de Moçambique.

Em Inhambane dedicou‑se de corpo inteiro a apoiar os pequenos agricultores que encontravam na cultura do café uma alternativa às culturas do algodão, caju, chá, sisal, arroz e cana-de-açúcar, impostas pela administração colonial. Para estas culturas, cabia às empresas concessionárias, protegidas pelo Estado colonial, a organização de mercados de venda e o monopólio da compra do produto final. Em Moçambique o café escapava a estes circuitos monopolistas e durante alguns anos o mercado funcionou normalmente. O nosso jovem agrónomo foi instalando de raiz estações experimentais a centenas de quilómetros de casa, primeiro na Malamba, a sul de Inhambane, e depois no Gurué, na Zambézia, para o arábica, quando foi transferido para Quelimane. Produzia e distribuía sementes aos fazendeiros e agricultores que assumiam por inteiro todo o circuito de produção e venda do café. Claro que esta situação era intolerável para os poderes coloniais e em 1958 a cultura do café foi proibida em Moçambique. Quem quisesse trabalhar em café, que fosse para Angola!

O nosso agrónomo entregou toda a obra feita e preparou-se para mudar para Angola. Mas a destruição abrupta de mais de uma década de trabalho intenso afectou-o, física e psicologicamente, e adoeceu gravemente. Recuperou depois de quase um ano de tratamento em Portugal mas viu-se de novo à procura de emprego. A experiência na cultura do café permitiu-lhe um trabalho precário no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro, uma instituição científica sediada em Oeiras que se dedica ao melhoramento genético das plantas com o objectivo de encontrar variedades produtivas e resistentes às pragas e doenças que atacam as plantações nos países produtores de café. Agarrou a oportunidade com entusiasmo, sem hesitar. Consolidou e expandiu as suas competências com o trabalho para o Instituto do Café de Angola, do qual dependia administrativamente, e para o Instituto Brasileiro do Café, porque o Brasil era um dos países produtores mais afectados pela ferrugem do cafeeiro.

Quando ocorreu o 25 de Abril, foi colocado no Quadro Geral de Adidos e partilhou a saga da integração vivida por milhares de portugueses das ex‑colónias, mas nem por isso deixou de ser um apoiante incondicional do movimento libertador.

Ao longo de mais de trinta anos, seleccionou e apurou variedades híbridas de cafeeiros resistentes, distribuiu as suas sementes por todo o mundo produtor de café. Pediam-lhe para trabalhar em Angola, Brasil, Venezuela, Colômbia, México, Guatemala, Nicarágua, Honduras, Costa Rica, Panamá, República Dominicana, para criar estações experimentais, para ensinar nas universidades, para apoiar centros de investigação, a tal ponto que passava no máximo dois meses por ano em Portugal e o resto andava a calcorrear o mundo. Ganhou reconhecimento mundial como um dos maiores cientistas no melhoramento genético do cafeeiro. Reformou-se aos 70 anos e publicou o último de inúmeros artigos científicos em 2008, encerrando a carreira científica.

Esta é a história da carreira profissional do jovem aluno de Química do poeta António Gedeão, a história de quem me marcou indelevelmente por ser meu Pai!

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