Foi com uma profunda admiração pela lucidez e pela coragem que li a crónica do meu amigo Diniz Borges no jornal Atlântico Expresso, "A Palavra como Responsabilidade: Saramago e Eu". Diniz Borges, ao partilhar a forma como a língua e a diáspora moldaram o seu olhar do mundo, lembra-nos a pertinência do pensamento de José Saramago no complexo tecido político e social que vivemos.
Tal como Diniz Borges, que descobriu Saramago na Califórnia, num Vale de São Joaquim "amplo e queimado de sol", também o meu encontro com o escritor foi marcante. Lembro-me bem, há 45 anos, de uma paragem numa livraria de Lisboa onde um outro meu amigo, o Manuel Begonha, me recomendou um livro de um autor que não conhecia: Levantado do Chão. Gostei de tal maneira que nunca mais me cansei de ler os seus livros e de os recomendar aos amigos. As personagens criadas por Saramago tornaram-se guias morais, desde a visionária Blimunda do Memorial do Convento até ao Cão das Lágrimas do Ensaio sobre a Cegueira.
A força intemporal de Saramago reside na sua capacidade de deslocar os alicerces das nossas certezas. Diniz Borges descreve a escrita de Saramago como "a lucidez de um velho profeta e a irreverência de um homem sem medo de ferir as certezas preguiçosas do mundo". Essa irreverência é, hoje, mais necessária do que nunca, pois as citações de Saramago estão constantemente no meu pensamento: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”, ou a observação devastadora de que "O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto, Vivemos na mentira, todos os dias." O mérito de Diniz Borges nesta crónica é traçar as fracturas do mundo que Saramago desvendou e mostrá-las reflectidas nos desafios que enfrentam as democracias actuais.
A crítica de Saramago à cegueira moral ressoa profundamente nas crises políticas. Diniz Borges sublinha que a cegueira descrita no Ensaio sobre a Cegueira não é oftalmológica; é ética. Esta miopia moral leva ao colapso social e civilizacional. Diniz Borges, observando a vida política americana a tornar-se mais polarizada, cínica e indiferente ao sofrimento, volta a Saramago com a pergunta: "como é possível recusarmos tantas vezes ver o que está ali?".
O pânico das instituições face à verdadeira participação democrática, explorado no Ensaio sobre a Lucidez, é outro ponto de contacto capital. Neste romance, o pavor do governo perante um eleitorado que vota em branco leva a uma reacção de “pânico autoritário”. Diniz Borges considera este romance profético num país (como os EUA) onde a supressão de votos, a desinformação e a erosão da confiança cívica ameaçam o próprio fundamento da democracia. Saramago "viu como as democracias se fraturam" e como "as instituições preferem a ordem à justiça, a obediência à compaixão".
Diniz Borges lembra-nos que a obra de Saramago é uma “admoestação”. Ler Saramago hoje é ouvir um aviso sussurrado através do Atlântico: "Cuidado com a cegueira que tomas por conforto. Cuidado com o silêncio a que chamas paz. Cuidado com a indiferença que tomas por normalidade".
Saramago não atacava só o poder; ele “elevava o silêncio à categoria de voz”. Diniz Borges, que cresceu rodeado por trabalhadores agrícolas e operários no Vale Central da Califórnia (e foi trabalhador a tempo parcial e inteiro durante quatro anos), sentiu o "compasso moral de Saramago" como seu.
Com o Memorial do Convento, aprendeu que os humildes e os sonhadores são os verdadeiros arquitetos dos milagres, e que a história é transportada pelas "mãos calejadas dos esquecidos" e não pelos reis. Saramago dignificou o “nome anónimo” — os avós, os trabalhadores, as mães — ao tornar a sua invisibilidade o centro da narrativa, como em Todos os Nomes. A pessoa comum, o imigrante, o trabalhador, o anónimo, nunca é comum, e cada vida merece o espaço narrativo reservado aos reis.
A análise de Diniz Borges ganha uma força inigualável por ser feita a partir da sua experiência como emigrante açoriano nos Estados Unidos da América. Para quem emigra, as palavras tornam-se a "primeira pátria verdadeira". Diniz Borges encontrou em Saramago não apenas um romancista, mas o "Portugal da coragem intelectual", que o formou como adulto, o Portugal da pergunta, do ceticismo e da dignidade.
Diniz Borges sublinha que a diáspora portuguesa, que muitas vezes herda um Portugal de nostalgia, precisa de Saramago para herdar o "Portugal do pensamento, da rebeldia, da profundidade". O nosso património, lembra-nos Diniz Borges inteligentemente, é também intelectual, politicamente consciente e eticamente exigente — uma cultura que "questiona o poder, não que o aceita docilmente".
Diniz Borges conclui que a voz de Saramago regressa hoje "como sino de aviso". Ele não nos elogia; convoca-nos. Convocou Diniz Borges, enquanto membro da classe trabalhadora, e convoca-nos a todos, à memória, à responsabilidade e à solidariedade.
A homenagem mais justa que podemos prestar a Saramago, e que o meu amigo Diniz Borges tão bem realça, é reconhecer que a sua luz não se apagou e que a palavra é, como ele próprio disse, “dever e não ornamento”. A sua crónica é um apelo para voltarmos a ler Saramago, para que o nosso país, a nossa diáspora e a nossa democracia continuem a ver.
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