terça-feira, 25 de novembro de 2025

A viragem da Revolução portuguesa no tabuleiro da política internacional


O Presidente Costa Gomes, o Embaixador dos EUA Frank Carlucci, com a mulher Marcia, e o Embaixador da URSS Arnold Kalinin.

Para entender os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, é indispensável compreender as profundas divisões ideológicas e as lutas pelo poder que fragmentaram a sociedade e as forças armadas portuguesas no período conhecido como "Verão Quente". A desagregação do consenso revolucionário inicial, que derrubou a ditadura do Estado Novo em 25 de Abril de 1974, abriu caminho a uma polarização extrema, criando as condições para o confronto inevitável que se materializou em Novembro de 1975. Num cenário de crise tripartida — política, económica e militar —, contradições inultrapassáveis minaram a coesão do Movimento das Forças Armadas, a espinha dorsal do processo revolucionário. Esta fragmentação refletia a ausência de um projeto político unificador e abria espaço para o aprofundamento das clivagens ideológicas.

Mas não podemos perder de vista que esta escalada de tensões internas se desenrolou num dos momentos mais complexos da Guerra Fria, em plena era da détente. Para os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética, a revolução em Portugal não era apenas um assunto interno de um pequeno país europeu, mas um potencial factor de desequilíbrio na estabilidade estratégica do continente. A análise comparativa das suas abordagens revela diferentes prioridades globais e táticas de influência que, em última análise, foram decisivas para o desenlace da crise.

A política dos EUA em relação a Portugal sofreu uma evolução notável durante 1975, contrastando a visão inicialmente pessimista do Secretário de Estado Henry Kissinger com a estratégia activista do embaixador em Lisboa, Frank Carlucci. Depois dos desaires spinolistas, Kissinger encarava uma tomada de poder comunista em Portugal como quase inevitável. A sua visão era profundamente céptica, considerando figuras como Mário Soares como fracas e ineficazes. Segundo esta abordagem, seria preferível "vacinar" o resto da Europa, deixando Portugal “cair” para demonstrar os perigos do comunismo, em vez de investir num combate perdido.

No terreno, Carlucci desenvolveu uma perspectiva radicalmente diferente. Defendia um apoio directo e robusto às "forças moderadas", estabelecendo contactos com o "Grupo dos Nove", em especial com Melo Antunes, e exercendo pressão diplomática constante sobre o presidente Costa Gomes para que este se demarcasse da ala radical.

Numa viagem decisiva a Washington, Carlucci conseguiu convencer Kissinger a inverter a política dos EUA. A partir desse momento, a Casa Branca passou de uma postura de contenção para uma de apoio activo a Mário Soares e ao PS, apesar de Soares ser um político de esquerda e, em Washington, a ideia de apoiar um partido socialista em plena Guerra Fria era, para muitos, um anátema. A mudança foi inequívoca, com o discurso de Kissinger a transformar-se num "aviso à União Soviética e um apoio a elementos portugueses".

A nova estratégia americana materializou-se num conjunto de ações coordenadas: aumento significativo da ajuda económica a Portugal para estabilizar o país; apoio secreto, canalizado pela CIA, aos opositores do PCP e da extrema-esquerda; ameaça de cortar o acesso de Portugal à informação classificada da NATO como forma de pressionar Costa Gomes a afastar Vasco Gonçalves; coordenação com os embaixadores britânico e francês para exercerem uma pressão diplomática concertada sobre a presidência portuguesa.

O Reino Unido e os seus parceiros europeus, em particular a Alemanha Ocidental, adoptaram uma estratégia coordenada que colocou a social-democracia internacional no centro da sua intervenção. O Primeiro-ministro britânico, Harold Wilson, e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, James Callaghan, pressionaram diretamente o líder soviético Leonid Brejnev, argumentando que o envolvimento da URSS em Portugal era "incompatível com a détente e a CSCE" (Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa). A mesma mensagem foi transmitida por líderes como o Chanceler alemão Helmut Schmidt e o presidente francês Giscard d'Estaing.

Foi criado o "Comité de Amizade e Solidariedade para a Democracia e o Socialismo em Portugal", um organismo que funcionou como um canal de "colaboração secreta" para apoiar financeiramente o Partido Socialista. Estima-se que, através de partidos como o SPD alemão, o Partido Trabalhista britânico e outros, tenham sido canalizados "aproximadamente 2 a 3 milhões de dólares por mês" para o PS de Mário Soares.

Em encontros directos, líderes como Harold Wilson e Helmut Schmidt condicionaram a concessão de ajuda económica da Comunidade Económica Europeia (CEE) à garantia por parte do presidente Costa Gomes de que Portugal seguiria "uma solução democrática de socialismo pluripartidário".

A política de Moscovo em relação a Portugal foi, em contraste, caracterizada por uma abordagem de "baixo risco e investimento limitado", na qual a estabilidade das relações com o Ocidente prevaleceu sobre as ambições revolucionárias em Lisboa. Para Leonid Brejnev, o sucesso da Conferência de Helsínquia e a consolidação da détente com os Estados Unidos eram muito mais importantes do que o apoio a "uma mão-cheia de comunistas portugueses ansiosos". A estabilidade europeia era a prioridade máxima do Kremlin.

O presidente Costa Gomes relatou uma conversa com Brejnev em Helsínquia, na qual o líder soviético lhe terá dito claramente que Portugal não deveria "mudar de regime", devido à sua posição geográfica, à sua pertença à NATO e ao "pensamento católico do povo português". Análises da CIA concluíram que o principal objetivo estratégico da URSS não era garantir a tomada do poder pelo PCP, mas sim "evitar a destruição do PCP" como força política relevante. A "serenidade" com que Moscovo acabou por aceitar a derrota da ala radical em Portugal confirma esta análise de uma aposta contida.

Estas diferentes estratégias internacionais convergiram para o cenário de confronto de Novembro de 1975, capacitando e encorajando os actores internos ligados aos EUA e aos parceiros europeus a procurarem uma solução de força.

Em Washington e Londres, a reacção no próprio dia 25 de Novembro foi de apoio inequívoco e imediato aos seus aliados internos, mostrando que estavam preparados para intervir. Em transcrições de conversas desse dia, Henry Kissinger surge a exigir ação imediata. Existia um plano de contingência anglo-americano, coordenado entre a CIA e o MI6, para apoiar as forças aliadas internas. Este plano previa o uso de "meios aéreos e marítimos para abastecimento e manutenção da resistência portuguesa na zona Norte do País" e a realização de "raids aéreos para imobilizar as posições comunistas na zona de Lisboa", caso a situação militar se tornasse desfavorável.

O desfecho rápido e vitorioso dos “Nove” e dos seus aliados tornou esta intervenção directa desnecessária, mas os acontecimentos do 25 de Novembro permaneceram como um caso de estudo sobre a eficácia das estratégias de influência na Guerra Fria. A abordagem ocidental revelou-se altamente eficaz. A combinação de apoio financeiro maciço via Internacional Socialista, a pressão diplomática constante e a prontidão para uma intervenção clandestina (através do plano CIA/MI6) capacitou e deu confiança às forças internas aliadas. Em contraste, a abordagem contida da União Soviética, que deu prioridade à détente em detrimento de um apoio arriscado aos aliados, deixou o PCP isolado num momento crítico.

Por isso os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 não podem ser interpretados como um episódio interno isolado. Foram, antes, o produto da convergência inevitável entre uma profunda crise de poder interna, que dividiu Portugal em projetos políticos irreconciliáveis, e um complexo jogo de influências estratégicas travado pelas superpotências e pelos seus aliados europeus. A fragmentação do Movimento das Forças Armadas e a polarização da sociedade criaram o palco para o confronto, mas foram as diferentes estratégias de Washington, Londres e Moscovo que ajudaram a definir os recursos, a confiança e os limites de cada uma das facções.

Embora a acção militar tenha sido decidida e executada por portugueses, o seu resultado foi inegavelmente moldado pelo contexto geopolítico da Guerra Fria, demonstrando que o futuro de Portugal foi decidido tanto nas ruas de Lisboa como nas chancelarias das grandes potências.

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