quarta-feira, 2 de março de 2022

O pecado original

Como aconteceu com muitos da minha geração, a fase final da minha adolescência decorreu num período de grande agitação social e política, em que tudo era posto em causa. Era o tempo da descoberta de novas visões do mundo e da sociedade, o tempo das certezas inabaláveis.

 Lembro-me que o meu avô materno, um homem sem grandes preocupações de natureza política mas com uma riquíssima experiência de vida, que tinha vivido a implantação da República, combatido na 1ª Grande Guerra, assistido à consolidação do Estado Novo, observado a tragédia da 2ª Guerra Mundial e que, acima de tudo, tinha um profundo sentido de justiça e de humanidade, deixava-me divagar, sorria e dizia-me que um dia perceberia que a sociedade humana, tal como a vida, era muito mais complexa e ampla do que os apertados compartimentos ideológicos onde os poderosos nos queriam arrumar.

Cinquenta anos depois, tendo eu também vivido momentos históricos marcantes, ao ler, ouvir e ver as certezas de tantos sobre o conflito na Ucrânia e sobre quem são os bons e os maus, sinto provavelmente o que o meu avô sentia naquele tempo. Não querendo naturalmente fazer a história de como o mundo chegou a tantas situações trágicas, julgo que será útil recordar o que talvez tenha sido o pecado original de um processo histórico que correu francamente mal.

Depois da dissolução da União Soviética por Gorbachev em Dezembro de 1991, na sequência da reunião entre os presidentes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia (interessante terem sido estas repúblicas…) e do pacto de Belaveja assinado entre eles que anunciava que a União Soviética tinha deixado de existir, os EUA reviram a sua política externa.
 
Podiam eventualmente ter lançado um novo plano Marshall que incluísse os derrotados da Guerra Fria e os trouxesse para o campo das democracias liberais mas preferiram marcar bem a sua hegemonia como a única superpotência mundial, definindo como missão política e militar dos EUA garantir que nenhuma potência rival pudesse emergir na Europa Ocidental, Ásia ou no território da antiga União Soviética.

A visão de um mundo dominado por uma única superpotência, os EUA, que resolveria todos os problemas do mundo sem a necessidade da intervenção colectiva através das Nações Unidas, foi conhecida através da divulgação em Março de 1992 pelo The New York Times de um documento classificado de 46 páginas que na altura ficou conhecido como a doutrina Wolfowitz.
 
Embora posteriormente revisto, o essencial do documento de Paul Wolfowitz, um político norte-americano tido como um dos expoentes do neoconservadorismo e do neoliberalismo e que era então Undersecretary of Defense for Policy na administração Bush, acabou por influenciar decisivamente a futura política externa dos EUA (Wolfowitz terá sido o arquitecto da invasão do Iraque), ao ser incorporado no que foi depois oficialmente designada por doutrina Bush e passou a ser adoptada sem grandes alterações pelas administrações que se seguiram.

Na prática, a doutrina que está na base dos muitos mal-entendidos e enganos sobre o alargamento da NATO aos países da antiga União Soviética. Alargamento da NATO que ao ser ratificado pela primeira vez no Senado norte-americano em 1998, mereceu este comentário de George Kennan, considerado o arquitecto da bem-sucedida contenção da União Soviética durante a Guerra Fria e um dos grandes estadistas norte-americanos do século XX: “I think it is the beginning of a new cold war. I think the Russians will gradually react quite adversely and it will affect their policies. I think it is a tragic mistake. There was no reason for this whatsoever. No one was threatening anybody else.”

Na prática, também a doutrina que justificou a não aceitação da entrada da Rússia na NATO e que os sucessivos governos de Moscovo tenham sido confrontados com várias garantias verbais, mas bem documentadas, de altas figuras da política europeia e norte-americana, garantias essas que não constando de nenhum tratado e não tendo sido cumpridas, se transformaram em equívocos políticos que só aumentaram a desconfiança e agravaram a tensão entre a Rússia e os EUA.

É por ter consciência da gravidade da situação actual e de que é urgente e necessário que os EUA, como potência hegemónica mundial que continuam a ser, participem nas negociações de paz e eventualmente na celebração de um novo Tratado de Segurança Europeia, que fico chocado ao ver a administração norte-americana participar na campanha mediática de instigação do ódio e da guerra.
 
E estranho ver um político populista transformado pela propaganda mediática em herói e estadista quando o que o mundo precisa neste momento é de estadistas competentes e preocupados com a Paz.

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