Apanha do algodão, 1961. Desenho de Henrique Abranches |
A historiadora Raquel Varela disse na RTP3 que não temos
memória porque Portugal convive muito mal com o seu passado colonial, que,
segundo ela, é um passado brutal. E para provar que assim é, afirmou que a
maioria dos portugueses que a estavam a ouvir “não faz a mínima ideia que a
guerra colonial começa com um massacre de trabalhadores em greve, de uma zona e
de uma empresa que é a Cotonang. Eram trabalhadores forçados, portanto
trabalhadores obrigados a trabalhar, que entram em greve por serem
trabalhadores forçados, no norte de Angola, e são regados com napalm pelo
Exército português, cinco a dez mil terão sido mortos.” Esclareceu ainda a
historiadora que “é partir daí, aliás, que se dá o massacre da UPA, que toda a
gente conhece em Portugal e o MPLA decide pegar em armas.”
Não posso falar por todos os portugueses que a ouviam, mas
eu que estudei o que se passou há 60 anos na Baixa de ou do Cassange (também grafada como Cassanje ou Kassanje), um território a
leste de Malanje com uma área duas vezes a de Portugal continental, tenho
memória dos acontecimentos e algumas dúvidas sobre o rigor da narrativa da
historiadora. E nesta coisa da memória histórica, tão negativa é a omissão como
a distorção dos factos.
Antes de tudo o mais, é importante realçar que o que ficou
conhecido pela revolta da Baixa de Cassange não foi um conflito laboral em que trabalhadores
de uma empresa fizeram greve. Foi a luta de uma população contra uma das formas
mais vergonhosas de exploração colonial, que atingia o modo de vida e a
subsistência básica de milhares de famílias de vastos territórios.
O modelo criado pelos belgas foi copiado pelo Estado Novo na
década de 1930 em Moçambique, onde o algodão deixou de ser cultivado por
empresas privadas que para isso tinham ao seu serviço trabalhadores negros
(algodão branco) para passar a ser cultivado obrigatoriamente pelos habitantes
de vastos territórios que eram concessionados a empresas, em regra de capitais
estrangeiros (algodão negro). As concessionárias eram verdadeiros estados
dentro do estado colonial e actuavam com a cumplicidade das autoridades
administrativas e policiais portuguesas, normalmente sem respeito pela lei
porque era necessário promover “a cultura obrigatória do algodão pelos
indígenas por quaisquer processos que se reconheçam convenientes.” O modelo foi
depois estendido a outras culturas e as concessões a empresas, em regra com capitais estrangeiros, eram consideradas pelo regime salazarista como uma forma
moderna de capitalismo e foram usadas em grande escala em Moçambique.
As concessionárias tinham sob a sua jurisdição vastas áreas
de concessão onde encarregavam as famílias residentes de plantar algodão. A
cada uma destas famílias era atribuída uma determinada área de terreno para
desbaste e cultivo, para o que lhes era fornecida a semente, cabendo à empresa
concessionária a organização de mercados de venda e o monopólio da compra do
produto final, ao preço que queriam.
A cultura obrigatória do algodão foi introduzida em Angola
em Março de 1947, quando a Companhia Geral dos Algodões de Angola, um consórcio
luso-belga criada em 1926 e conhecida por Cotonang, conseguiu uma concessão na
vasta zona a Leste e Oeste de Malanje cobrindo uns 80 mil quilómetros
quadrados, quase a área de Portugal. A outra firma, a Lagos & Irmão, foi
também concessionada uma zona da extensa planície ao longo do rio Cuango. Os agricultores africanos, uns 150
mil organizados em 35 mil famílias, eram coagidos a cultivar cerca de 5 mil
toneladas por ano de algodão que tinham de vender à Cotonang e à Lagos &
Irmão, a preços fixos, abaixo dos do mercado, num valor 5 a 6 vezes menor do
que o preço mundial. Não havia salários para o seu trabalho e os riscos da
colheita eram involuntária e integralmente assumidos por eles.
Com a independência do Congo Belga em 1960 e por influência
de militantes do Parti Solidaire African (PSA) congolês, a população da Baixa
de Cassange desencadeou acções contra os agentes das concessionárias e as
autoridades portuguesas, em especial a partir de Janeiro de 1961. A repressão da
Pide, do Exército e da Força Aérea durante o mês de Fevereiro foi violenta e a
revolta foi neutralizada em Março. Quatro meses depois saiu uma lei que acabou
com a cultura obrigatória do algodão, dando um golpe importante nas companhias
concessionárias.
É interessante notar que é normalmente o lado português que considera a "Operação Cassange" como a primeira grande operação da Guerra do Ultramar. A "Operação Cassange" foi realizada pelo "Batalhão Eventual de Caçadores" do Exército comandado pelo General Monteiro Libório que delegou no Major Rebocho Vaz e composto pela 3.ª, 4.ª e 5.ª CCEs (Companhia de Caçadores Especiais), com o apoio da Força Aérea. Certamente que a revolta influenciou acontecimentos futuros, mas parece pouco rigoroso afirmar que a guerra colonial começou com os massacres (não apenas um massacre) das populações da Baixa do Cassange, massacres cujos contornos e dimensão não são conhecidos ao certo.
As operações militares de repressão na Baixa de Cassanje foram estudadas e descritas por vários investigadores. Tudo indica que não foi
usado napalm (só terá sido a partir de meados de 1961 noutras regiões), mas
houve de facto a intervenção da Força Aérea com aeronaves para fazer fogo e
lançar granadas incendiárias sobre grupos de revoltosos e aldeias.
Sabe-se que foram mortos muitos africanos em várias acções
repressivas, mas o número exacto, tenha sido mil, cinco mil ou dez mil, será
sempre uma incógnita. Parece também ser possível afirmar que a rebelião teve um
carácter espontâneo e localizado e talvez por isso nenhum dos movimentos de
libertação angolanos tenha reivindicado a autoria da acção. No entanto, há hoje quem procure recuperá-la como a génese da luta pela libertação que se seguiu nas antigas colónias portugueses.
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