domingo, 21 de fevereiro de 2021

A revolta da Baixa de Cassange

Apanha do algodão, 1961. Desenho de Henrique Abranches

A historiadora Raquel Varela disse na RTP3 que não temos memória porque Portugal convive muito mal com o seu passado colonial, que, segundo ela, é um passado brutal. E para provar que assim é, afirmou que a maioria dos portugueses que a estavam a ouvir “não faz a mínima ideia que a guerra colonial começa com um massacre de trabalhadores em greve, de uma zona e de uma empresa que é a Cotonang. Eram trabalhadores forçados, portanto trabalhadores obrigados a trabalhar, que entram em greve por serem trabalhadores forçados, no norte de Angola, e são regados com napalm pelo Exército português, cinco a dez mil terão sido mortos.” Esclareceu ainda a historiadora que “é partir daí, aliás, que se dá o massacre da UPA, que toda a gente conhece em Portugal e o MPLA decide pegar em armas.”

Não posso falar por todos os portugueses que a ouviam, mas eu que estudei o que se passou há 60 anos na Baixa de ou do Cassange (também grafada como Cassanje ou Kassanje), um território a leste de Malanje com uma área duas vezes a de Portugal continental, tenho memória dos acontecimentos e algumas dúvidas sobre o rigor da narrativa da historiadora. E nesta coisa da memória histórica, tão negativa é a omissão como a distorção dos factos.

Antes de tudo o mais, é importante realçar que o que ficou conhecido pela revolta da Baixa de Cassange não foi um conflito laboral em que trabalhadores de uma empresa fizeram greve. Foi a luta de uma população contra uma das formas mais vergonhosas de exploração colonial, que atingia o modo de vida e a subsistência básica de milhares de famílias de vastos territórios.

O modelo criado pelos belgas foi copiado pelo Estado Novo na década de 1930 em Moçambique, onde o algodão deixou de ser cultivado por empresas privadas que para isso tinham ao seu serviço trabalhadores negros (algodão branco) para passar a ser cultivado obrigatoriamente pelos habitantes de vastos territórios que eram concessionados a empresas, em regra de capitais estrangeiros (algodão negro). As concessionárias eram verdadeiros estados dentro do estado colonial e actuavam com a cumplicidade das autoridades administrativas e policiais portuguesas, normalmente sem respeito pela lei porque era necessário promover “a cultura obrigatória do algodão pelos indígenas por quaisquer processos que se reconheçam convenientes.” O modelo foi depois estendido a outras culturas e as concessões a empresas, em regra com capitais estrangeiros, eram consideradas pelo regime salazarista como uma forma moderna de capitalismo e foram usadas em grande escala em Moçambique.

As concessionárias tinham sob a sua jurisdição vastas áreas de concessão onde encarregavam as famílias residentes de plantar algodão. A cada uma destas famílias era atribuída uma determinada área de terreno para desbaste e cultivo, para o que lhes era fornecida a semente, cabendo à empresa concessionária a organização de mercados de venda e o monopólio da compra do produto final, ao preço que queriam.

A cultura obrigatória do algodão foi introduzida em Angola em Março de 1947, quando a Companhia Geral dos Algodões de Angola, um consórcio luso-belga criada em 1926 e conhecida por Cotonang, conseguiu uma concessão na vasta zona a Leste e Oeste de Malanje cobrindo uns 80 mil quilómetros quadrados, quase a área de Portugal. A outra firma, a Lagos & Irmão, foi também concessionada uma zona da extensa planície ao longo do rio Cuango. Os agricultores africanos, uns 150 mil organizados em 35 mil famílias, eram coagidos a cultivar cerca de 5 mil toneladas por ano de algodão que tinham de vender à Cotonang e à Lagos & Irmão, a preços fixos, abaixo dos do mercado, num valor 5 a 6 vezes menor do que o preço mundial. Não havia salários para o seu trabalho e os riscos da colheita eram involuntária e integralmente assumidos por eles.

Com a independência do Congo Belga em 1960 e por influência de militantes do Parti Solidaire African (PSA) congolês, a população da Baixa de Cassange desencadeou acções contra os agentes das concessionárias e as autoridades portuguesas, em especial a partir de Janeiro de 1961. A repressão da Pide, do Exército e da Força Aérea durante o mês de Fevereiro foi violenta e a revolta foi neutralizada em Março. Quatro meses depois saiu uma lei que acabou com a cultura obrigatória do algodão, dando um golpe importante nas companhias concessionárias.

É interessante notar que é normalmente o lado português que considera a "Operação Cassange" como a primeira grande operação da Guerra do Ultramar. A "Operação Cassange" foi realizada pelo "Batalhão Eventual de Caçadores" do Exército comandado pelo General Monteiro Libório que delegou no Major Rebocho Vaz e composto pela 3.ª, 4.ª e 5.ª CCEs (Companhia de Caçadores Especiais), com o apoio da Força Aérea. Certamente que a revolta influenciou acontecimentos futuros, mas parece pouco rigoroso afirmar que a guerra colonial começou com os massacres (não apenas um massacre) das populações da Baixa do Cassange, massacres cujos contornos e dimensão não são conhecidos ao certo.



As operações militares de repressão na Baixa de Cassanje foram estudadas e descritas por vários investigadores. Tudo indica que não foi usado napalm (só terá sido a partir de meados de 1961 noutras regiões), mas houve de facto a intervenção da Força Aérea com aeronaves para fazer fogo e lançar granadas incendiárias sobre grupos de revoltosos e aldeias.

Sabe-se que foram mortos muitos africanos em várias acções repressivas, mas o número exacto, tenha sido mil, cinco mil ou dez mil, será sempre uma incógnita. Parece também ser possível afirmar que a rebelião teve um carácter espontâneo e localizado e talvez por isso nenhum dos movimentos de libertação angolanos tenha reivindicado a autoria da acção. No entanto, há hoje quem procure recuperá-la como a génese da luta pela libertação que se seguiu nas antigas colónias portugueses.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

As camaratas da Escola Naval

 


Esta fotografia de Mário Novais da colecção da Fundação Calouste Gulbenkian foi tirada em 1935 ou 36, durante a construção do edifício de comando e das salas de aula da Escola Naval. Os edifícios do refeitório, da biblioteca e do internato já estavam construídos e provavelmente o fotógrafo resolveu registar a imagem de uma camarata pronta, à espera dos futuros ocupantes.

Quando há 50 anos entrei na Escola Naval, pude constatar que as camaratas não sofreram uma grande evolução durante três décadas e meia. As mesmas paredes despidas, os mesmos lavatórios, os mesmos armários, as mesmas secretárias. Observando a fotografia, só consigo detectar duas diferenças: as camas originais foram substituídas por beliches duplos para alojarem mais cadetes e instalaram um aquecedor do sistema de aquecimento central debaixo do parapeito da janela.

Para os cadetes, o aquecedor junto à janela tinha duas funções importantes: uma óbvia, atenuar o frio do inverno e secar a roupa (a chuva civil não molhava os militares, mas molhava a nossa roupa), e uma outra bem menos óbvia. É que fazer a barba com a água gelada dos lavatórios era desconfortável e por isso usávamos a purga do aquecedor para obter água quente.

Nunca falei com encarregado, mas imagino que teria de repor o nível de água da instalação todas as manhãs pois não seriam poucos os que usavam a mesma técnica para obter um barbear mais confortável. E quando mais tarde aprendi que se adicionava óleo solúvel aos circuitos de aquecimento, percebi que não era só a água quente que facilitava o escanhoar.