segunda-feira, 8 de julho de 2019

Inquietações cívicas




O V-Dem Institute da Universidade de Gothenburg divulgou o V-Dem Democracy Report 2019, com resultados relativos a 2018. Há 45 anos o 25 de Abril iniciou a vaga mundial de democratização que atingiu o pico em 2008. Hoje, apesar de todas as vicissitudes, Portugal continua no topo de todos os indicadores com excepção do índice de participação democrática, eleitoral e não eleitoral. E isso é inquietante, é talvez uma das minhas poucas inquinações cívicas.

Confesso que o envelhecimento reduziu a minha crença na possibilidade de mudança imediata do sistema económico mundial assim como me tornou incapaz de abraçar novas e excitantes causas como a emergência climática. Bom, não estudei o assunto mas presumo que a emergência climática seja uma causa excitante dado o entusiasmo e carinho dos poderes públicos, desde o PR ao ministro da Educação, pelas greves climáticas; e acredito que só uma causa excitante poderia suscitar a atenção de todo o espectro político e até levar o BE a propor um superministério para coordenar a energia, os transportes, a agricultura, a floresta e o mar. Não me lembro de outra causa política que tenha conquistado tantos e tão variados adeptos à escala mundial, em tão pouco tempo!

Hoje as minhas inquietações cívicas restringem-se cada vez mais à defesa da democracia e da liberdade e a tentar contribuir para a educação para a cidadania de crianças e jovens. Claro que não tenho a ambição de contribuir para todos os domínios da estratégia oficial da educação para a cidadania mas tenho procurado, com o meu amigo Carlos Saraiva da Costa, um professor experiente com quem partilho há três anos os ideais e os trabalhos do projecto Abril Hoje da Associação 25 de Abril, ajudar as escolas interessadas a consolidarem o que julgamos serem os pilares essenciais da educação para a cidadania: a denúncia e combate da violência, a prevenção da corrupção e a aprendizagem e valorização da participação democrática.

A violência porque nas suas diversas formas, seja doméstica ou social, de abuso sexual, de bullying ou no namoro, empobrece o ser humano e destrói a capacidade de respeitar os outros e a si próprio. A corrupção, não porque hoje exista mais do que antes - quem não se lembra dos sacos azuis em todos os serviços, dos padrinhos que asseguravam emprego, benesses e promoções no Estado e nas empresas, dos militares, professores e outros funcionários públicos em part-time na CP e nas empresas privadas, dos favores dos poderosos do regime, etc. - mas porque é eticamente inadmissível, causa danos à economia, corrói a sociedade e destrói a democracia. Finalmente a participação democrática porque é através dela que a geração dos meus netos poderá realizar, em democracia e liberdade, o que os pais e os avós não foram capazes: eliminar o centralismo burocrático, arrogante e incompetente, escolher representantes confiáveis e promover uma justiça eficaz.

Sobre a violência já aqui falei do que fizemos sobre o bullying e a violência no namoro. Quanto à corrupção, também já louvei e divulguei os projectos educativos do Conselho de Prevenção da Corrupção, embora gostasse que o ministério da Educação se envolvesse mais - é sintomático que a prevenção da corrupção não conste da estratégia oficial da educação para a cidadania. Sobre a participação democrática, o Abril Hoje preparou fichas de trabalho e fez apresentações nas escolas e, há cerca de um ano e a convite do grupo de trabalho criado pela Direção Geral de Educação, a Associação 25 de Abril apresentou uma proposta de referencial para o domínio “Instituições e Participação Democrática” para ser utilizado desde o 1º ciclo do ensino básico até ao secundário.

A partir das recomendações do Conselho da Europa, definimos os objectivos para os diferentes níveis de escolaridade tendo como objectivo preparar os futuros cidadãos para viver em sociedade, resolver conflitos, assumir responsabilidades, compreender e aceitar as regras do Estado de Direito e os mecanismos de representação democrática e participar na governação do seu país.

Validámos a proposta da A25A junto de professores experientes e estávamos convencidos que seria uma forma adequada de fornecer aos alunos ferramentas para o exercício responsável da cidadania e para a participação informada na resolução dos problemas do seu país. No entanto, cedo nos apercebemos que a abordagem da DGE era diferente e que se aproximava mais da velha OPAN ensinada no Estado Novo, devidamente revista e ampliada para contemplar a nova constituição e a UE.

Veremos o documento final mas se a abordagem da DGE prevalecer estou convencido que perderemos mais uma oportunidade de preparar as crianças e os jovens para viverem num país com uma democracia fortalecida pela participação empenhada e informada dos cidadãos.

Nota: Os gráficos representam a evolução de Portugal no último meio século e foram construídos com os dados do V-Dem Institute. Portugal compara bem com democracias consolidadas como, por exemplo, as da Suíça e da Dinamarca, excepto no que se refere à participação democrática.

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