sábado, 20 de setembro de 2014

Coisas de Menina

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Para a inscrever numa atividade extra do jardim-de-infância, a mãe perguntou: – Queres inglês, motricidade – os miúdos hoje sabem que motricidade é ginástica – ou karaté?
– Karaté! – respondeu a menina, rápida e segura. – Porquê? – Para derrotar o Tomás. O Tomás é o irmão mais velho, sete anos mais velho!

É assim a Caracoletas. Muito sensível, mas forte e determinada. Sabe o que quer e, sempre que pode, manda.
Vai ser um quebra-cabeças para os namorados. O avô que o diga, precisou de se empenhar a sério para a conquistar!

Até esta neta, a sexta, tudo tinha corrido bem. A ligação com o avô estabelecia-se facilmente nos primeiros meses de vida dos netos, sem sobressaltos. Mas com esta houve uma mudança radical. A menina não queria ir para o colo do avô e, sempre que o via, virava-lhe as costas. E quando o avô a pegava, era um berreiro tremendo. O avô bem tentava, mas nada. Os banhos e os jantares das quintas-feiras, que com os irmãos corriam sempre bem, com a Caracoletas eram um calvário.

Mas o avô não podia nem queria desistir. Estava certo de que era uma questão de tempo e de muito amor. Continuou persistentemente a cortejar a neta e, perto do ano, deu-se o clique. Primeiro uns sorrisos, depois o estender dos braços e por fim o aconchegar saboroso no colo do avô. 
Ficou uma bela paixão entre a neta e o avô que se revela nos mais pequenos pormenores.

Coitados dos futuros pretendentes. Para além das atribulações do namoro, vão ter de aprender uma técnica de defesa pessoal!

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O “Pirata”

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O trabalho do pai levou-o muito cedo para terras distantes.
Ao contrário do que aconteceu com os outros netos, o avô só estava com o menino a espaços e por períodos curtos. Os poucos encontros entre eles eram bem aproveitados, mas mesmo assim o avô tinha receio que a ligação com aquele neto não fosse tão robusta como as que criou com os outros.

Tinha o menino um ano quando a família veio passar um par de semanas em Portugal. O menino saiu do aeroporto a dormir e assim se manteve até à porta da casa onde a família ia ficar. Enquanto os pais foram buscar a chave da casa, o menino permaneceu no carro, vigiado por uma amiga da mãe.
Por pouco tempo. Assim que o menino acordou e viu que estava num ambiente desconhecido, desatou a chorar. A amiga da mãe, aflita, foi procurar os pais para o acalmarem.

O avô, que estava por perto, aproximou-se do menino e falou com ele. Instantaneamente, o choro parou e no rosto do menino surgiu o sorriso mais bonito que o avô tinha sentido.

Os receios do avô esfumaram-se naquele momento. E o sorriso ficou para sempre!

sábado, 6 de setembro de 2014

Baptismo de Voo


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Apesar do ruído do motor, ouviu-se alto e claro:
– Dói-me a barriga, quero fazer cocó!
A avioneta pilotada pelo pai acabara de levantar para o baptismo de voo do menino mas aquela proclamação não deixava alternativa, tinha de voltar à pista do campo de aviação. O amigo que o levava ao colo, no lugar de trás, não podia sofrer as consequências. Mas logo que o menino sentiu os pés em terra e correu para a mãe, foi-se embora o medo e com ele, todas as aflições fisiológicas.

As alturas e o espaço exíguo não eram claramente a sua zona de conforto, mesmo gostando muito de aviões. Sempre conviveu com as avionetas do aeroclube, faziam parte do seu imaginário infantil. Não tanto o tristonho “Filipito”, um Piper Vagabond baptizado com o diminutivo do filho do governador, tiques do poder colonial, mas muito o reluzente Chipmunk. Para o menino, o mundo mágico dos aviões era acima de tudo o Chipmunk e só depois duas ou três avionetas sem muita graça.

Estava habituado a passar os domingos a ver o pai subir e descer nos ares naquelas máquinas de tela e metal, a tentar a aterragem perfeita. Sabia também que o pai saía naquelas avionetas para ir trabalhar. E principalmente sabia que a mãe ficava muito feliz e ele voltava a ter o colo do pai, quando uma daquelas avionetas sobrevoava a baía e acenava com as asas, antes de seguir para o campo de aviação.

Mas nem sempre as coisas correram assim. Uma tarde, terminado o trabalho no campo experimental que instalou a centenas de quilómetros de casa, o pai deu início ao procedimento de preparação da avioneta. Feitas todas as verificações, pediu ao regente agrícola que rodasse a hélice mas o motor da avioneta não pegou. Novas verificações, novas insistências, mas o motor teimava em não responder.

Quando finalmente e depois de muitas tentativas, o motor resolveu trabalhar, tinha ficado tarde para a viagem de regresso. A alternativa era voar na manhã seguinte mas não tinha forma de avisar quem o esperava no destino. Por isso, após um momento de reflexão, fez-se à pista e levantou voo, confiante que seria poupado à lei de Murphy.

Mas enganou-se redondamente. Ao fim de pouco tempo de voo solitário, levantou-se um vento que contrariava o avanço do avião e que quase o parava quando a rajada era mais forte. O tempo foi passando com o combustível a esgotar-se e o pai percebeu que não iria alcançar a cidade antes do anoitecer. Era um problema sério porque nem o avião tinha faróis nem a pista de aterragem tinha iluminação.

Contornou a larga baía para manter as referências no terreno, não sobrevoou a casa nem acenou como de costume e dirigiu-se logo para o campo de aviação. Ficou muito admirado ao ver uma fila de faróis de carros a deslocarem-se na mesma direcção. Soube depois que era uma cadeia de ajuda organizada por um amigo, alertado pela mãe do menino quando viu a noite a cair sem sinais da avioneta do marido.

E assim alcançou o campo de aviação com a gasolina no zero, mas com a pista iluminada pelos faróis dos carros, uns ao lado dos outros. Como não sabia a que altura estava do solo mas tinha uma ideia aproximada da altura do hangar, passou rente ao topo do telhado e fez-se à pista. Quando estimou que estava perto do solo, deixou a avioneta cair em perda.

O embate com o solo foi um tanto violento, muito diferente da suavidade domingueira, mas não houve prejuízos. O problema mais sério foi acalmar a mãe do menino quando chegou a casa.

Quanto ao menino, acabou por perder o medo de voar nas muitas viagens aéreas entre continentes e um dia, já adolescente, pensou tirar o brevet. Mas a mãe foi peremptória:
– Nem penses nisso, para sustos já me chegou o teu pai!

E assim se perdeu um potencial marinheiro aviador.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O Requerimento

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Os cadetes davam os primeiros passos da formação militar e naval na Escola Naval. Sabe‑se lá porque estranhas razões, cinquenta e um jovens decidiram juntar-se num austero edifício na mata do Alfeite. Vieram dos locais mais díspares, do nordeste transmontano às terras moçambicanas. Se alguém tivesse calculado a probabilidade de cada um deles se encontrar com os outros cinquenta, teria concluído que era inferior à de sair o jackpot do Euromilhões! Mas apesar da baixíssima probabilidade da ocorrência, ali estavam num novo mundo, a aprender a conviver uns com os outros. Havia de tudo: os altos e os baixos, os gordos e os magros, os militarões e os paisanos, os vivaços e os tímidos, os brincalhões e os alvos das brincadeiras.
De entre os ingénuos, houve um que se destacou logo no primeiro dia das provas de ingresso, quando pediu ao candidato sentado na carteira da frente que o deixasse copiar as respostas aos testes psicotécnicos. Depois, no mês de instrução militar básica, passou a ser a vítima de muitas das partidas. Por exemplo, quando o comandante de companhia pernoitava na Escola Naval como oficial de serviço, o candidato acordava-o a meio da noite, ansioso, só porque os brincalhões do costume passavam o serão a convencê-lo que tinha sido excluído pelas razões mais estapafúrdias. As alvoradas prematuras do oficial de serviço tinham naturalmente consequências para o pobre candidato que, para além da chacota dos pares, sofria as represálias do oficial, em regra consubstanciadas numa multa convertida em bebidas do bar. Mas apesar dos percalços, o candidato atingiu finalmente a honrosa condição de cadete.
As semanas dos cadetes eram passadas com aulas teóricas e práticas, educação física, ordem unida, desporto, estudo e o que já esqueci, tudo o que servisse para ocupar um grupo de jovens habituados a tudo menos ao regime intensivo de uma escola militar. Mas como aquilo era Marinha, tinham de ir mais longe. E nada seria melhor que ocupar um ou outro fim de semana com embarques no draga-minas Ribeira Grande, a navegar entre o Alfeite e Setúbal, para habituar os estômagos mais sensíveis ao balanço. O Ribeira Grande era um navio velho, construído em 1957 nos estaleiros da CUF (atual NavalRocha) a partir de planos ingleses e não primava pela habitabilidade. Os espaços exíguos e as péssimas condições de navegabilidade propiciavam o tratamento de choque dos cadetes nos primeiros contactos com o mar.
Logo que foi anunciado o primeiro embarque, os brincalhões do costume vislumbraram uma excelente oportunidade para uma nova partida: decidiram convencer o nosso cadete de que era possível embarcar num navio moderno desde que fosse apresentada oficialmente uma razão ponderosa que desaconselhasse o velho draga-minas. E se bem o pensaram, melhor o concretizaram. Depois de devidamente industriado pelos camaradas, o cadete foi falar com o “penico” (o mais antigo do curso), pedindo conselho sobre a entrega do requerimento que tinha preparado. Pensava entregá-lo na secretaria do Comando, o que o “penico” percebeu logo ser arriscado para o camarada. Convenceu-o a fazê-lo através do comandante de companhia, assim como assim o oficial já estava habituado aos desvarios do cadete.
E foi assim que em plena formatura para o almoço, o “penico” pediu autorização ao comandante de companhia para que o cadete lhe fizesse a entrega formal de um requerimento. O oficial anuiu e recebeu uma folha de papel almaço azul de 25 linhas, manuscrita e conforme os preceitos legais da época, onde o cadete requeria respeitosamente ao Senhor Comodoro Comandante da Escola Naval que o autorizasse a realizar o embarque de fim de semana numa das então modernas fragatas da classe “João Belo”, dado que não podia embarcar no Ribeira Grande por sofrer de … claustrofobia!

Não me recordo da extensão exata do castigo decretado pelo comandante de companhia mas estou certo que se traduziu numa conta calada no bar do refeitório. Quanto ao famoso requerimento, julgo que está algures entre os papéis que coleccionei na Escola Naval.