sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Pesar o Sol

 


Em 2019, para assinalar o Dia dos Oceanos, com o meu amigo professor Carlos Saraiva da Costa, falámos aos jovens do uso do astrolábio náutico na expansão marítima portuguesa e ensinámos a "Pesar o Sol", no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras (hoje abandonado e degradado).

O Carlos usou o seu saber e experiência náutica, e um PowerPoint do projeto educativo "Este Mar" da Escola Secundária de Carcavelos, para enquadrar historicamente o uso do astrolábio. Eu procurei explicar o mecanismo de funcionamento daquele instrumento.
 
Preparei para isso um texto em que, para além dos componentes do astrolábio, citava a descrição de João de Barros e de Camões, no Canto V dos Lusíadas, da chegada da esquadra de Vasco da Gama à Angra de Santa Helena, onde desembarcaram para aguada e "tomar do Sol a altura". E na introdução, deixei esta brincadeira poética que intitulei "Pesar o Sol":

Suspende o piloto a roda, em metal forjada,
Com medeclina e pínulas, a luz a mirar.
No convés, um círculo solar vai projetar,
No limbo inverso, a distância é contada.

"Pesar o Sol", buscar seu ponto zenital,
Quando a alidade pára, em meio-dia exato.
Lê-se o grau preciso, em registo ou em trato,
Para a latitude certa, avanço capital.

Instrumento simplificado, de invenção lusa,
Do astrolábio planar, ao mar adaptado.
Superando o balanço, com engenho provado.

Foi farol na incerteza, rota que se recusa,
A navegar por estima, método limitado,
Traçando o Império, em caminho desvendado.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Do grito ao sonho

 


No palco de um país que um dia se sonhou,
Chegam vozes de longe, um grito ecoou.
Promessas de pão, de um futuro largo,
Mas o drama se revela, cruel e amargo.

No sítio que labuta, sob o sol a queimar,
Mão-de-obra que a terra insiste em chamar.
Qualificados na alma, com saber e pensar,
Em trabalhos sem rumo, a vida a definhar.

Nos contentores que abrigam, sem lei, sem pudor,
Muitas almas num espaço, de humilhação e dor.
Rendas que disparam, serviços a escassear,
Terra sonhada, a dignidade a roubar.

Redes de engano, com sorrisos de luz,
Retêm passaportes, amarrando à cruz.
Dívidas que sufocam, sem fim à vista,
Ameaças de denúncia, na sombra que insiste.

O medo das autoridades, uma prisão sem grade,
Onde a precariedade é mestre, e a liberdade se evade.
Exploração velada, em cada canto a espreitar,
Um trabalho sem contrato, que pode matar.

Discriminação, um olhar que fere e exclui,
Sobrecarga de horas, a saúde se esvai.
Frustrações e desânimo, no rosto se vê,
Um sonho que se perdeu, sem saber porquê.

Mas a solução não está no que já foi,
Nem no lamento, do que o tempo levou.
É erguer novas estruturas, num futuro a criar,
Onde terra, teto e trabalho sejam para se dar.

Que a economia não mate, mas sim faça viver,
E que a dignidade humana possa florescer.
Dar poder os oprimidos, para ouvir a sua voz,
Porque o sonho comanda a vida, e nos faz caminhar.


(Inspirado pelos artigos do jornal Público "Trabalho: estrangeiros sobrequalificados são quase o triplo dos nacionais" e "Mais de 2200 presumíveis vítimas de tráfico de seres humanos em seis anos. Apenas 11 tiveram direito a indemnização". E também pelo Papa Francisco e António Gedeão.)

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Educação, Democracia e Cidadania em Portugal - Uma Análise Crítica




A comparação dos documentos da Direção-Geral da Educação (DGE) sobre a educação para a cidadania em consulta pública – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) 2025 - consulta pública e "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais" (AE) - consulta pública) – com os documentos antigos – "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" (ENEC) de setembro de 2017 e "Educação para a Cidadania – linhas orientadoras" de novembro de 2013 – revela uma evolução significativa na estrutura, obrigatoriedade e no aprofundamento de conteúdos, reflectindo o que a DGE entende serem novos desafios da sociedade contemporânea.


Comparação dos Documentos

1. Reorganização das Dimensões de Cidadania

  • Antigo Modelo (ENEC 2017): A estratégia antiga organizava os domínios em três grupos com diferentes níveis de obrigatoriedade.
    • 1º Grupo (Obrigatório em todos os níveis e ciclos): Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa), Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).
    • 2º Grupo (Obrigatório em pelo menos dois ciclos do ensino básico): Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva), Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária.
    • 3º Grupo (Opcional em qualquer ano de escolaridade): Empreendedorismo (nas suas vertentes económica e social), Mundo do Trabalho, Risco, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal, Voluntariado.
  • Novo Modelo (ENEC 2025): A nova estratégia congrega oito Dimensões, organizadas em dois grupos.
    • Grupo 1 (Obrigatório em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e do Ensino Secundário): Direitos Humanos, Democracia e Instituições Políticas, Desenvolvimento Sustentável, Literacia Financeira e Empreendedorismo.
    • Grupo 2 (Obrigatório no 1.º ciclo do Ensino Básico, no conjunto dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, e no Ensino Secundário, cabendo à escola escolher o(s) ano(s) de escolaridade em que cada uma será desenvolvida): Saúde, Risco e Segurança Rodoviária, Pluralismo e Diversidade Cultural, Media.

Esta reorganização significa uma clarificação e um reforço da obrigatoriedade de certas dimensões, que passam a ser abordadas de forma contínua ao longo de todo o percurso escolar.

2. Alterações e Redefinições de Dimensões Específicas

2.1. Retirado como Dimensão Autónoma

  • Sexualidade: Esta dimensão, que era explicitamente listada no 2º Grupo da estratégia antiga, foi retirada como dimensão autónoma na nova ENEC. A "Educação para a Saúde e a Sexualidade" na antiga estratégia visava dotar os alunos de conhecimentos, atitudes e valores para decisões adequadas à sua saúde e bem-estar, com foco na proteção da saúde e prevenção de risco, nomeadamente na área da sexualidade.
  • Igualdade de Género: Era um domínio explícito no 1º Grupo da estratégia antiga. Deixou de ser uma dimensão autónoma na nova ENEC.
  • Educação do Consumidor: Presente no 2º Grupo da estratégia antiga, não aparece como dimensão separada na nova ENEC.
  • Outros Domínios: Domínios do 3º Grupo da estratégia antiga como "Mundo do Trabalho", "Bem-estar animal", e "Voluntariado" não são dimensões autónomas na nova estrutura.

2.2. Conteúdos Integrados e Aprofundados (mesmo que a dimensão autónoma tenha sido retirada)

  • Sexualidade e Educação Sexual (Integração): Embora não seja uma dimensão autónoma, as Aprendizagens Essenciais (AE) da nova ENEC integram aspetos relacionados em outras dimensões:
    • A dimensão Saúde foca-se na promoção do "bem-estar físico e mental" e na "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)". No 2.º e 3.º ciclos, é explicitamente mencionada a necessidade de "Respeitar questões relacionadas com a intimidade e a privacidade de cada pessoa" e "Estabelecer relações interpessoais saudáveis, baseadas no respeito, na comunicação, na confiança e no consentimento".
    • A dimensão Direitos Humanos no 3.º ciclo inclui a análise de casos de "abusos sexuais" e "violência de género", bem como "violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas".
  • Igualdade de Género (Integração): Os conteúdos são integrados principalmente na dimensão Direitos Humanos, com aprendizagens como "Reconhecer que meninos e meninas podem realizar as mesmas atividades e ter as mesmas oportunidades" no 1.º ciclo, e "Debater a (des)igualdade de género em contextos como a educação, o trabalho e o exercício de cargos políticos" no 3.º ciclo. Na dimensão Democracia e Instituições Políticas do Ensino Secundário, a "desigualdade de género" é abordada como um desafio atual da democracia.
  • Educação Ambiental (Integração): Parece ser totalmente absorvida pela dimensão Desenvolvimento Sustentável na nova ENEC, que aborda explicitamente tópicos como a conservação da biodiversidade e práticas de produção e consumo sustentável.
  • Segurança, Defesa e Paz (Integração): Aspetos da segurança, defesa e paz, que eram um domínio opcional na antiga estratégia, são agora integrados na dimensão Democracia e Instituições Políticas da nova ENEC, que prevê o debate sobre o papel internacional de Portugal, nomeadamente na União Europeia, na co-construção de um mundo pacífico e livre, e a análise da importância da União Europeia na defesa da democracia e da paz.

2.3. Destaques e Novas Abordagens em Dimensões Atuais

  • Democracia e Instituições Políticas:
    • Maior Obrigatoriedade: Elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade, o que representa um aumento significativo face ao modelo anterior onde estava no 2º Grupo.
    • Foco na Ética e Combate à Corrupção: A nova ENEC introduz explicitamente a temática da ética e integridade na governança democrática, detalhando a aprendizagem para "identificar comportamentos de integridade e de corrupção" (1.º ciclo), "compreender a natureza, incidência e extensão do fenómeno da corrupção" (2.º ciclo), "compreender as causas e os múltiplos efeitos da corrupção" (3.º ciclo) e "refletir, criticamente, sobre o papel dos cidadãos, do Estado e das organizações da sociedade civil na prevenção e combate à corrupção" (Ensino Secundário).
    • Papel Internacional de Portugal e União Europeia: Maior ênfase no debate sobre o papel internacional de Portugal e da UE.
  • Literacia Financeira e Empreendedorismo:
    • Combinação e Maior Obrigatoriedade: Na nova ENEC, estas duas áreas são combinadas e elevadas para o Grupo 1 (obrigatório em todos os anos). Na anterior, "Literacia financeira e educação para o consumo" estava no Grupo 2 e "Empreendedorismo" no Grupo 3.
    • Aprofundamento: Foco na tomada de decisões informadas sobre orçamento, poupança e investimento, e na ética e responsabilidade social no empreendedorismo.
  • Saúde:
    • Foco Ampliado: Além da alimentação e atividade física, a nova dimensão "Saúde" destaca a promoção da saúde mental e do bem-estar dos jovens, a "proteção contra todas as formas de violência (incluindo a exploração, o abuso e a ciberviolência)" e a "prevenção de consumos, comportamentos aditivos e dependências", bem como os "malefícios do uso excessivo de ecrãs".

·         Risco e Segurança Rodoviária:

    • Combinação: Combina o "Risco" e a "Segurança Rodoviária" da antiga estratégia (que estavam em grupos diferentes) numa só dimensão do Grupo 2.
    • Abordagem Integrada: Foco na identificação de perigos, minimização de vulnerabilidades e ações conscientes face a riscos naturais, tecnológicos e mistos, além da mobilidade segura e sustentável.
  • Media:
    • Novos Desafios: A nova ENEC aborda explicitamente o impacto da Inteligência Artificial na edição e publicação de conteúdos nas redes sociais, e foca-se na prevenção dos riscos online como "dependência, cyberbullying, discurso de ódio, polarização, trolling, sexting, sextorsão". Há um reforço da ênfase na "utilização crítica e segura das tecnologias digitais, da informação e dos conteúdos gerados por inteligência artificial".
  • Pluralismo e Diversidade Cultural:
    • Nova Designação e Abordagem Detalhada: Substitui a "Interculturalidade" da antiga estratégia por uma dimensão mais abrangente no Grupo 2.
    • Foco na Discriminação: Inclui a análise de "diferentes formas de discriminação, como racismo, xenofobia, anticiganismo, islamofobia, antissemitismo, misoginia, entre outras". Aborda também os desafios vivenciados por pessoas migrantes e a proteção dos direitos das minorias.

3. Aprendizagens Essenciais (AE) e Abordagem Pedagógica

  • Acréscimo de Detalhe nas AE: Os novos documentos, especialmente o "Cidadania e Desenvolvimento - Aprendizagens Essenciais ", fornecem uma descrição muito mais detalhada das Aprendizagens Essenciais por ciclo de ensino para cada dimensão. Isto inclui conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, bem como ações estratégicas de ensino. A estratégia antiga de 2017 listava apenas os domínios sem o mesmo nível de detalhe nas AE por ciclo.
  • Ênfase na Experiência e Atitude Cívica: Ambas as estratégias enfatizam que a cidadania se aprende através de processos vivenciais e da participação ativa. A nova ENEC reforça a importância de os alunos serem autores e terem situações de aprendizagens significativas.

4. Operacionalização e Governança da Estratégia

  • Estrutura Mantida: A operacionalização mantém a abordagem transdisciplinar no 1.º ciclo do ensino básico, a disciplina autónoma nos 2.º e 3.º ciclos, e a componente transversal no ensino secundário.

·         Maior Detalhe e Clarificação de Papéis (Novo):

    • A nova ENEC especifica que o agrupamento de escolas/escola não agrupada deve elaborar e aprovar a sua própria "Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola", definindo os anos para as dimensões do Grupo 2, o modo de trabalho, os projetos com a comunidade, as parcerias e os critérios de avaliação.
    • São claramente definidas as competências do Conselho Geral (aprovação da estratégia da escola) e do Conselho Pedagógico (aprovação dos critérios de avaliação).
    • O papel e as responsabilidades do Coordenador da Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola são detalhados.
    • A avaliação interna das aprendizagens deve ser contínua, sistemática e com formas de recolha diversificadas.

5. Contexto e Desafios

  • Atualização dos Desafios (Novo): A nova ENEC atualiza a lista de desafios contemporâneos, adicionando explicitamente "a emergência da inteligência artificial, a saúde mental e o bem-estar dos jovens, as desigualdades socioeconómicas, a sustentabilidade, as migrações e a mobilidade internacional". A estratégia anterior mencionava desafios como sustentabilidade, interculturalidade, igualdade, e os riscos de fragmentação social, desinformação e polarização.


Fragilidades Estruturais da Educação para a Cidadania

Antes de prosseguir, quero expressar a minha opinião de que, enquanto a Educação para a Cidadania for um edifício com fundações muito frágeis, construído de cima para baixo com textos oriundos do Ministério da Educação, e a responsabilidade pela Educação para a Cidadania nas escolas for quase exclusivamente atribuída aos Diretores de Turma (DT), pouco do que se propõe terá real impacto.

Para que as estratégias sejam bem-sucedidas, mesmo as bem pensadas com boas intenções, é necessário que a maioria das escolas tenha vontade ou condições para fazer da Educação para a Cidadania um projeto multidisciplinar que envolva a direção, professores de diferentes áreas, assim como especialistas e entidades externas.

No entanto, há escolas que apesar de tudo continuam a realizar "milagres" na área da Cidadania. A título de exemplo, refiro os projetos "Semear Abril" e "Abril Hoje", nos quais participei nos últimos anos, considerando-os muito gratificantes para mim e, a julgar pelas avaliações, para os alunos.

Análise da Nova Dimensão Democracia e Instituições Políticas

Revistas as alterações globais que os documentos em consulta pública introduzem na Educação para a Cidadania, concentrar-me-ei agora na análise crítica do que é estabelecido, em particular, para a dimensão Democracia e Instituições Políticas, anteriormente designada Instituições e Participação Democrática.

Em 2018, participei na elaboração de uma proposta da Associação 25 de Abril à DGE para um referencial do domínio Instituições e Participação Democrática. Com base nas recomendações do Conselho da Europa, definimos objetivos para os diferentes níveis de escolaridade. O nosso propósito era preparar os futuros cidadãos para viver em sociedade, resolver conflitos, assumir responsabilidades, compreender e aceitar as regras do Estado de Direito e os mecanismos de representação democrática, e participar na governação do país.

O referido referencial, que contou com contributos de outras instituições, só foi divulgado em 2024, após uma muito longa gestação para uma muito curta vida (um ano). Embora não tenha cumprido os objetivos nele estabelecidos, irei usá-lo como referência para a avaliação das Aprendizagens Essenciais (AE) definidas nos novos documentos para a dimensão Democracia e Instituições Políticas.


Omissões e Modificações Relevantes nos Novos Documentos

Abaixo, apresento um levantamento do que é retirado ou modificado nos novos documentos da DGE, em comparação com o referencial de 2024:

  • História da Democracia Portuguesa: É retirada qualquer alusão a factos relevantes da História da democracia e das instituições democráticas em Portugal. Não é referida nem reconhecida a importância do 25 de Abril de 1974 na construção da democracia política em Portugal.
  • Conceitos Fundamentais da Democracia: São omitidos os critérios que permitem identificar as características de uma democracia, os princípios e os valores em que assenta, assim como a distinção entre os tipos de democracia (directa, semidirecta, representativa) e a sua aplicação ao sistema português.
  • Poderes do Estado e Órgãos de Soberania: Não há qualquer referência à importância da separação e interdependência dos três poderes do Estado – legislativo, executivo e judicial – nem aos órgãos de soberania que os exercem.
  • Sistemas de Governo e Actores Políticos: Não são identificados e comparados os diferentes tipos de sistemas de governo: parlamentarismo, presidencialismo, semipresidencialismo. Não é abordado o papel dos partidos políticos e dos movimentos de cidadãos no exercício do poder político.
  • Funcionamento do Estado Português: Não é dado a conhecer como funciona o Estado Português, incluindo os princípios fundamentais da organização do Estado português, o Orçamento do Estado como instrumento de coesão política e social, e a importância do Orçamento do Estado na vida dos cidadãos.
  • Regiões Autónomas e Comunidades Portuguesas: Não são referidas as Regiões Autónomas (importância da existência de órgãos de governo próprio nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira). Não são referidas a diversidade das comunidades portuguesas fora do território de Portugal e as suas preocupações.
  • Mecanismos de Participação Cívica: Não são especificadas as formas de participação no processo legislativo (petição, referendo, iniciativa legislativa de cidadãos), nem outros mecanismos de participação para além do voto.
  • Sistema Eleitoral e Responsabilidade dos Eleitos: Não é explicado o sistema eleitoral português, a responsabilidade dos eleitos e os diferentes tipos de eleições.
  • Instituições de Defesa de Direitos: Não é explicitado o papel de instituições como o Provedor de Justiça, Ministério Público e Tribunais na defesa de direitos, nem a forma de recorrer ou reclamar junto das instituições públicas.


Novos Focos Introduzidos pelos Documentos

Por outro lado, os documentos em consulta pública introduzem novos focos, com especial ênfase em:

  • Combate à Corrupção: Abordado em todos os ciclos de ensino, desde a identificação de comportamentos de integridade (1.º Ciclo) até à reflexão crítica sobre o papel dos cidadãos, do Estado e da sociedade civil na prevenção e combate (Ensino Secundário).
  • Desenvolvimento de Competências de Diálogo: Valoriza a importância da paz e da não-violência no convívio diário.
  • Boa Governança: Salienta a importância dos valores constitucionais e dos princípios éticos e de integridade para uma governança democrática.
  • Reflexão Crítica sobre Desafios Contemporâneos da Democracia: Incentiva os alunos a refletir sobre desafios atuais como o discurso de ódio e a desigualdade de género.


Conclusão Crítica

Em suma, a nova "Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania" e as "Aprendizagens Essenciais" para a componente curricular de Cidadania e Desenvolvimento representa uma reestruturação mais coesa e focada, elevando a obrigatoriedade de dimensões consideradas fulcrais para a cidadania ativa (como a Democracia e Instituições Políticas), e integrando explicitamente novos desafios sociais (como a ética e combate à corrupção, a saúde mental e os riscos da inteligência artificial e online). Paralelamente, os conteúdos de dimensões como a sexualidade e a igualdade de género são integrados transversalmente em outras áreas, em vez de terem um estatuto autónomo. A operacionalização é mais detalhada, com uma clarificação de responsabilidades e uma forte ênfase na implementação de Aprendizagens Essenciais concretas.

No que concerne às Aprendizagens Essenciais da dimensão Democracia e Instituições Políticas, omitem os conceitos históricos da construção da democraticidade de Portugal e a sua contribuição para o exercício da cidadania na democracia representativa e participativa consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Embora a nova dimensão Democracia e Instituições Políticas seja elevada para o Grupo 1, tornando-se obrigatória em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e Secundário, ela tende a focar-se exclusivamente no atual sistema político, em detrimento do estudo de outras soluções ou do aprofundamento dos mecanismos de participação dos cidadãos no governo do país.

Parece-me também haver uma clara influência dos "novos ventos políticos", em particular do discurso populista da corrupção. No entanto, estou convencido de que a corrupção não é a causa principal da fragilidade da Democracia portuguesa e do afastamento dos portugueses do regime democrático. Outros factores relevantes para o mau funcionamento do regime democrático como, por exemplo, o processo eleitoral de escolha dos representantes dos cidadãos, não são sequer abordados

Podemos encarar a Educação para a Cidadania como a construção de uma casa. Os novos documentos da DGE são como as "plantas" mais recentes para esta casa. Apesar de algumas novidades e reforços (como o combate à corrupção em todos os andares), estas novas plantas removeram importantes pilares históricos do alicerce da casa (como o 25 de Abril e os princípios fundamentais do nosso regime democrático). Além disso, a casa continua a ter "fundações muito frágeis", pois a sua construção depende demasiado de um pequeno grupo de "empreiteiros" (os Diretores de Turma) e de ordens "de cima para baixo". É como tentar modernizar uma casa adicionando novas comodidades, mas, ao mesmo tempo, ignorando ou removendo elementos cruciais da sua estrutura e da sua história, o que pode comprometer a sua solidez a longo prazo.


terça-feira, 22 de julho de 2025

PBS NewsHour



Foi com preocupação que assisti a esta declaração dos apresentadores do PBS NewsHour sobre o corte do financiamento federal da PBS (Public Broadcasting Service), uma medida que atinge cerca de 15% a 16% do seu orçamento total. Como espectador quase diário do PBS NewsHour, não posso deixar de me sentir solidário com os jornalistas da PBS.

A PBS, oficialmente lançada nos EUA em outubro de 1970 como sucessora da National Educational Television, emergiu da visão de que a televisão pública deveria oferecer um serviço de qualidade, focado na educação e informação, livre das pressões comerciais. A sua importância para os EUA, e para o mundo, é inegável. Lembro-me bem de como foi importante para a minha família quando vivi na Califórnia. Programas como o icónico "Sesame Street" foram cruciais para a minha filha Joana, ajudando-a a aprender inglês de uma forma divertida e envolvente. 


Este programa infantil, é reconhecido por ensinar empatia, curiosidade e inclusão, moldando gerações em todo o mundo. Em Portugal, a versão portuguesa do programa, intitulada "Rua Sésamo", estreou-se na RTP1 em novembro de 1989 e foi transmitida pela RTP até maio de 1996. Marcou a infância de muitos trintões e quarentões portugueses.

Além da educação, a PBS tem sido consistentemente reconhecida pela confiabilidade e objetividade do seu jornalismo. O PBS NewsHour, em particular, é aclamado pela sua reportagem sólida, fiável e credível, sendo classificado como a instituição mais confiável nos EUA há 13 anos consecutivos. Esta reputação deve-se, em parte, à sua política de independência editorial, que estabelece uma "barreira de proteção" entre as decisões de cobertura noticiosa e as suas fontes de receita.

Foi a essência deste serviço público que Trump atacou com o decreto executivo intitulado "Ending Taxpayer Subsidization of Biased Media". Trump justificou a medida alegando que a PBS e a NPR (National Public Radio) forneciam "cobertura noticiosa tendenciosa", classificando-as como "máquinas de propaganda de esquerda radical". Apesar de tentativas anteriores de republicanos para cortar este financiamento desde a era de Richard Nixon, esta acção de Trump constituiu um sucesso sem precedentes, depois da aprovação final pela Câmara dos Representantes.

Este ataque à PBS alinha-se com o que é detalhado no "Project 2025", um plano abrangente da direita americana para o governo de Trump. Este projeto defendia o fim do financiamento federal para a radiodifusão pública, alegando que é "ultrapassado e desnecessário" e que os organismos como a NPR e a PBS são "emissoras esquerdistas". A execução rigorosa deste roteiro por parte de Trump, neste como em muitos outros sectores, acaba por ser um "manual" para a extrema-direita global, reverberando em movimentos políticos por todo o mundo, incluindo na direita radical portuguesa.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

O salário mínimo é uma prisão?


Carlos Moreira da Silva  Rui Gaudêncio

Quando regressei da pós-graduação em Engenharia Mecânica nos EUA, fui colocado no Gabinete de Estudos. O Gabinete de Estudos era um organismo da área do Material da Marinha que, para além de outras funções, servia de depósito de dois tipos de oficiais de engenharia: os “politicamente incorrectos” como, por exemplo, o Begonha e o Serrano, e os com qualificações que a área do Pessoal não sabia ou não queria gerir, como era o meu caso e de outros oficiais, dos quadros permanentes ou a cumprir o serviço militar obrigatório.

Entre os últimos, lembro-me de um em particular. Depois de se formar em Engenharia Mecânica no Porto, porque gostava de automóveis, foi convidado para professor assistente de Investigação Operacional na Universidade e para trabalhar com o engenheiro Valente Oliveira na Comissão de Planeamento Regional do Norte, onde "aprendeu a fazer coisas bem feitas, coisas que ninguém fazia ainda, e que iam contribuir para melhorar o país." Na sequência dessa actividade, fez o Mestrado em 1978 e o Doutoramento em Inglaterra, em 1982, sempre na área da investigação operacional e da gestão empresarial. Quando, em 1983, foi chamado para o serviço militar na Marinha, com 31 anos, já tinha casado duas vezes e tido dois filhos, mas nunca tinha exercido engenharia mecânica.
 
Mas para a Marinha o currículo em investigação operacional e gestão empresarial era irrelevante e o doutorado foi colocado no Gabinete de Estudos a desempenhar funções de técnico especialista de ar condicionado de navios! Ocupou a secretária em frente da minha durante seis meses e, muitas vezes, partilhámos o sentimento de que o investimento que o país tinha feito em nós não estava a ser aproveitado. Cumpríamos o que o chefe nos mandava fazer, mas bastantes frustrados.

Passados os seis meses, o doutorado conseguiu que o pusessem a dar aulas na Escola Naval e ali completou os dois anos de SMO, a ganhar uma ridicularia que quase não dava para pagar as viagens de comboio entre Lisboa e o Porto, onde tinha a família e, entretanto, tinha nascido a terceira filha. Naturalmente que com a ida para a Escola Naval, diminui o contacto com ele, mas de quando em vez fui tendo notícias da sua carreira profissional e empresarial.

Uma carreira empresarial de sucesso que fez do Carlos Moreira da Silva – sempre os três nomes a evidenciarem a importância de se chamar Silva, como notava o Begonha – o nono mais rico de Portugal, segundo o ranking da Forbes dos 50 milionários portugueses. De acordo com a revista, o empresário nortenho tem uma fortuna avaliada em 1 613 milhões de euros.

Como os nossos caminhos nunca mais se cruzaram, devem estar a pensar por que razão me lembrei agora dele. É que hoje, quando tomava o pequeno-almoço e ouvia o noticiário das 7 da TSF, a jornalista introduziu uma notícia com a afirmação de que “o salário mínimo é uma prisão que está a atrasar o crescimento da economia”! Esclareceu depois que tal leitura era do Presidente da Associação Business Roundtable Portugal, que junta as 43 maiores empresas portuguesas e que iria promover uma conferência com o sugestivo lema “Ctrl+Alt+Portugal - Reiniciar para Crescer”1.
 
E passou a palavra ao Presidente da Associação, Carlos Moreira da Silva, que esclareceu: “Portugal, enfim, a partir de 2000, perdeu o sonho coletivo e cresceu muitíssimo pouco durante mais de 20 anos. Isto acontece porque nós não temos sido capazes de ativar a economia de uma forma mais contundente. Nomeadamente os temas da burocracia, portanto um Estado muito pesado que cerceia a capacidade de crescimento da economia, um sistema fiscal muito pesado. Repare, nós passámos de 4% das pessoas que tinham um salário mínimo em 2000 para 24% em 2023. É inadmissível e isto, esta prisão ao salário mínimo afeta de forma significativa o crescimento da economia.”

Claro que o Carlos Moreira da Silva não ligaria nenhuma ao que eu lhe dissesse, mas se por acaso o encontrasse, dir-lhe-ia que se preocupasse menos com o Estado e incentivasse mais os seus amigos empresários da associação que dirige a libertar os trabalhadores portugueses da prisão do salário mínimo. Portugal ficaria bem melhor.



1 Grande Conferência BRP 2025.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Edifício Arte Contínua - Memória


Desenho de Eduardo Salavisa

Há cinco anos, abruptamente, o sonho terminou.


Em 3 de Outubro de 2019, três semanas antes de deixar o cargo, a Secretária de Estado da Defesa Nacional do XXI governo de António Costa e do Ministro da Defesa Nacional João Gomes Cravinho, assinou um protocolo entre o Ministério da Defesa Nacional (MDN) e o Município de Oeiras (CMO) que previa a futura cedência pelo primeiro ao segundo do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras, para instalação de um “Centro de Interpretação da Barra” cujo director seria “nomeado pelo Ministério da Defesa Nacional, o qual asseguraria a respetiva remuneração.” Nesse protocolo, que foi celebrado pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, o Município de Oeiras comprometeu-se a assegurar desde logo a segurança, conservação e manutenção do edifício.


Na prática, depois da assinatura do protocolo com o MDN e do convite público ao Dr. Boiça para coordenar o "Centro de Interpretação dos Fortes de Defesa da Linha de Costa Aqui de Lisboa, no dito Forte do Areeiro, que não é forte...", em 19 de Outubro de 2019, a CMO comprometeu-se a manter o estado em que o edifício lhe foi entregue pela associação cultural “Colectivo a Postos” em Junho de 2020, depois da interrupção do projecto Edifício Arte Contínua que o Vice-Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, numa intervenção na sessão da Assembleia Municipal de Oeiras do dia 18 de Fevereiro de 2020, desvalorizou e caluniou.


Aquele senhor, de nome Emanuel Francisco dos Santos Rocha de Abreu Gonçalves, na intervenção na sessão da Assembleia Municipal difundida em directo para todo o mundo através da Internet, decidiu tecer considerações sobre o projecto Edifício Arte Contínua e sobre a associação cultural sem fins lucrativos “Colectivo a Postos”, de que fui membro fundador e cujos órgãos sociais integrei, que o dinamizou no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa.

O Vice-Presidente da CMO afirmou ou deu a entender:
  • Que a CMO só foi convidada a ter um papel activo na utilização e conservação do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa depois do protocolo que assinou com o MDN em Outubro de 2019; 
  • Que desconhecia o papel dos serviços da CMO na concepção e arranque do projecto Edifício Arte Contínua em 2018; 
  • Que não teve conhecimento da intervenção realizada pelo “Colectivo a Postos” e pelos seus parceiros, na fase inicial com o apoio da CMO, para a recuperação do edifício e do espaço envolvente depois de uma década de abandono, saque, vandalismo e ocupação com práticas degradantes; 
  • Que não sabia que a CMO foi informada de todas as iniciativas e propostas para que o projecto Edifício Arte Contínua e as suas iniciativas tivessem a mais ampla participação de todas as entidades públicas, privadas, de solidariedade social e associativas do Concelho de Oeiras, incluindo a própria CMO; 
  • Que desconhecia que nada foi realizado no edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa sem conhecimento do proprietário e da CMO; 
  • Que ignorava que a direcção do “Colectivo a Postos”, depois de ter conhecimento, através das redes sociais, da assinatura do protocolo com o MDN, se reuniu com a presidência da CMO para discutir e definir o futuro do projecto Edifício Arte Contínua
  • Que desconhecia que o responsável pela cultura da CMO informou o “Colectivo a Postos” que o projecto Edifício Arte Contínua poderia permanecer no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa até Junho de 2020.
Apesar de tudo o que sabia, ou devia saber, o Vice-Presidente da CMO resolveu tecer publicamente considerações surpreendentes sobre o projecto Edifício Arte Contínua e a associação “Colectivo a Postos” que o dinamizava, considerações essas falsas ou caluniosas.

Depois de uma vida e de uma carreira profissional que procurei que fosse exemplar como cidadão, militar, democrata e homem de bem, foi preciso chegar aos setenta anos para que um político que tem idade para ser meu filho e não me conhecia de lado nenhum, ousasse insinuar publicamente, entre outros dislates, que não cumpri as regras e a lei; que fiz um “gato” ou baixada eléctrica da rede pública, que roubei água sabe-se lá de onde e que ocupei ilegalmente um edifício público, sem autorização do proprietário, no caso o Ministério da Defesa Nacional.
 
E o problema é que as insinuações caluniosas do Vice-Presidente da CMO não atingiram só a mim. Atingiram, em especial, as minhas filhas, os meus amigos e os inúmeros cidadãos que comigo e, principalmente, com as minhas filhas, se esforçaram para, num acto singelo e desinteressado de cidadania, prestar um serviço à comunidade e contribuir para a construção de uma sociedade melhor.

Posteriormente, em Maio de 2021, ano de eleições autárquicas, a CMO promoveu a exposição 'Fortificações de Oeiras - Património do Tejo e do Mundo' no Centro Cultural no Centro Cultural Palácio do Egipto. Constatei então que a imagem do que antes era uma quase ruína e foi recuperado por iniciativa da associação “Colectivo a Postos”, serviu de cenário para uma operação de propaganda do executivo da CMO. Nela foi anunciado que o edifício seria o "núcleo central" de um futuro “Museu do Tejo”.


Mas malgrado os discursos dos responsáveis da CMO, hoje, mais de cinco anos depois da CMO assumir a guarda do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa e pôr fim ao projecto Edifício Arte Contínua, a realidade é bem diferente do prometido.

O edifício militar que foi primeiro Bateria e depois Posto de Vigilância durante o século XX, foi abandonado, vandalizado, saqueado e ocupado por marginais durante boa parte da segunda década do século XXI. Por iniciativa da associação “Colectivo a Postos” e na sequência de um acordo com o MDN, o edifício foi reabilitado com o projecto Edifício Arte Contínua

Dinamizado por cidadãos que voluntariamente, com sacrifício dos tempos livres e sem nenhuma contrapartida financeira ou de qualquer outra natureza, o projecto Edifício Arte Contínua recuperou o espaço e realizou uma série impressionante de eventos culturais com a participação de muitas centenas de jovens e menos jovens.



Em Outubro de 2019 estava caiado a amarelo por fora e a branco por dentro. Tinha 25 chaves de portas de espaços e salas limpas e recuperadas por miúdos e graúdos. Tinha nele mais História guardada.

Desenho de Eduardo Salavisa

Durante um ano foi uma "casa que não se quis margem, mas antes convergência, encontro e centro", vivenciados na recuperação, na preparação das iniciativas mensais, nas contribuições de todos aqueles que ali criaram e deram de coração. Permitiu que centenas de alunos encontrassem os poetas à beira-mar. Abriu as portas à fruição do teatro, da literatura, da pintura, da escultura, da ilustração, da música, da arte, por todos os que quiseram entrar. Sentiu o mar e ensinou a navegá-lo. Celebrou a liberdade, a cidadania e o 25 de Abril.

Com a assinatura do protocolo entre o MDN e a CMO, terminou o projecto Edifício Arte Contínua. E cinco anos depois do espaço ser entregue à guarda da CMO, voltou a estar abandonado, degradado e vandalizado. Desta vez ainda mais do que antes!

Vale a pena espreitar o edifício quase irreconhecível com janelas e portas emparedadas, junto à Marginal, a oeste da praia de Santo Amaro de Oeiras, entre o parque de estacionamento automóvel e o Forte de Santo Amaro ou do Areeiro. Terão oportunidade de constatar a degradação do património público que um dia foi motivo de orgulho dos muitos adultos, jovens e crianças que viveram o sonho do projecto Edifício Arte Contínua.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Emigrantes envergonhados

 


Na mais recente edição das conversas “Olhos nos Livros: Palavras de Costa a Costa” organizadas pelo meu amigo Diniz Borges e pelo Portuguese Beyond Borders Institute que dirige na Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, participaram, para além do próprio Diniz Borges, o professor José Luís da Silva, na Califórnia, e a professora Manuela Marujo, que leccionou no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Toronto entre 1985 e 2017 e onde, actualmente, é Professora Associada Emérita.

Para além da habitual e sempre interessante resenha de livros sobre a experiência da emigração portuguesa na América do Norte, designadamente nos Estados Unidos e no Canadá, desta vez os participantes terminaram com uma reflexão sobre a forma como portugueses, no território nacional, encaram a emigração que continua a engrossar as comunidades de quatro milhões de portugueses e luso-descendentes espalhadas pelo mundo.
 
A professora Manuela Marujo, depois de lamentar a inexistência em Portugal de um centro de estudos da emigração onde fosse possível aos investigadores e aos jovens que fazem mestrados e licenciaturas sobre aquela temática, consultar os livros e ensaios publicados no seio das comunidades emigrantes e encontrar referências sobre os processos de integração social e de preservação da identidade cultural, da língua e cultura portuguesas, que essas comunidades asseguraram e asseguram, na esmagadora maioria dos casos sem qualquer apoio do governos em Portugal, procurou reflectir sobre as razões do desinteresse pelo estudo da emigração em Portugal.
 
A professora Manuela Marujo notou que, neste momento, todas as suas amigas em Portugal continental têm os filhos no estrangeiro, um na Holanda, outro na Itália, outro no Dubai. Mas apesar da emigração continuar, ninguém se considera emigrante. E quando esteve numa universidade da terceira idade e disse “sou emigrante há 40 anos,” as pessoas olharam para ela “assim um bocadinho incomodadas,” e perguntaram: “Quer dizer, a professora…, é professora, não é?” Emigrar e emigrante são palavras que as pessoas não querem usar. “Ninguém usa a palavra emigrada.”

De facto, hoje ninguém que sai de Portugal para ir trabalhar no estrangeiro, é emigrante. É “residente no estrangeiro” ou “expatriado”. Para os portugueses de hoje, possivelmente vítimas do complexo da “mala de cartão da Linda de Suza” ou das condições de vida degradantes que Gérald Bloncourt tão bem soube captar com a sua câmara fotográfica, emigrantes eram os portugueses incultos que a pobreza e a ditadura salazarista empurraram para fora de Portugal; residentes no estrangeiro ou expatriados são os portugueses que actualmente, com os níveis de educação superior que o regime democrático de Abril proporcionou, vão procurar no estrangeiro as oportunidades de trabalho e realização pessoal e profissional que não encontram em Portugal.

Ou será, como admitiu a professora Manuela Marujo, que a negação da condição de emigrante é uma desculpa para a forma como tratamos os imigrantes? Ao não nos assumirmos como um povo emigrante, tratamos os outros como se fossem diferentes de nós.