sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

A lição de Trump

 

Ilustração de João Fazenda na The New Yorker

Como português, não estou particularmente preocupado com a eleição de Trump, nem com a torrente de decretos controversos que traduzem a política de “choque e pavor” da extrema-direita nos EUA. Apesar de abominar o carácter primário, autoritário, nativista e xenófobo do populismo de Trump e da sua corte, entendo que é, acima de tudo, um problema dos EUA e dos quase 350 milhões de cidadãos norte-americanos e de residentes no seu território. Caberá a eles arcar com as consequências do voto em Trump de cerca de 77 milhões de cidadãos eleitores e aceitar, ou contrariar, as decisões daqueles a quem foi concedido o poder de governar nos EUA nos próximos anos.

Quanto à política externa da nova administração norte-americana e aos seus efeitos na Europa e no resto do mundo, duvido que haja um desvio relativamente ao que os EUA há muito definiram como estratégia de imposição e defesa dos seus interesses e de enfraquecimento das potências rivais, nomeadamente da Rússia e da China. Apesar do folclore comunicacional trumpista, se há algo que seja comum a todas as administrações americanas é a política externa e a obediência aos princípios definidos por gente que não se comove com os devaneios dos sucessivos presidentes. As intervenções na Ucrânia, no Cáucaso ou no Médio-Oriente, para citar três peças do que foi designado por “overextend and unbalance Russia”, há muito que foram estudadas e planeadas pelos estrategistas norte-americanos. Biden cumpriu rigorosamente a estratégia por eles definida e Trump decerto continuará a cumprir. E sendo a OTAN um componente fundamental dessa estratégia na Europa, não me parece que seja de levar a sério as ameaças/manobras do novo inquilino da Casa Branca para transferir custos para os aliados europeus.

No entanto, a ascensão e vitória eleitoral de Trump pode ser uma lição para os democratas, em particular para os que não gostariam de ver o efeito Trump alastrar e a extrema-direita conquistar o poder no seu país. Parafraseando o famoso slogan da campanha de Clinton de 1992, “is the economy, stupid”, depois do sucesso eleitoral de Trump apetece-me escrever: é o descontentamento, estúpido! O mesmo descontentamento que faz com que a democracia esteja em perigo na Europa e que os partidos democráticos europeus pareçam esgotados, política e ideologicamente, e a precisar de repensar a sua missão e propósito. Vivemos uma época em que esses partidos, por erros próprios, alienaram os eleitores que outrora constituíram a sua base de apoio e parecem impotentes para contrariar o crescimento eleitoral da extrema-direita antidemocrática.

Sob a capa da paz e prosperidade dos anos 1990 e da crença de que o capitalismo democrático tinha triunfado com a queda do Muro de Berlim, a implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria, foram plantadas as sementes do descontentamento. O discurso neoliberal, que pregava que o Estado era o problema e a fé nos mercados a solução, tornou-se a filosofia dominante de governo. Desde Reagan e Thatcher, os líderes políticos norte-americanos e europeus, mesmo os de centro-esquerda, seguiram o dogma de que os mecanismos de mercado eram os instrumentos adequados para definir e alcançar o bem comum. Incentivaram e instituíram a livre circulação de capitais sem regulação através das fronteiras nacionais, tudo em nome da globalização. De uma versão muito particular de globalização, apresentada como inevitável, como uma força da natureza capaz de criar riqueza que, alegadamente, iria beneficiar todos; que abriu as fronteiras aos fluxos desordenados de imigração que melhor serviam os negócios cujos lucros atravessavam livremente essas fronteiras, sem respeito pela aspiração das pessoas de cada país se sentirem num espaço em que a cidadania fosse valorizada e condicionasse o relacionamento e as obrigações de uns para com os outros.
 
É certo que a globalização da era neoliberal produziu crescimento económico. O mal é que quase toda a riqueza gerada por esse crescimento foi para os 10% mais ricos da população, enquanto a maioria dos restantes 90%, em particular os mais pobres, viram os seus salários reais diminuir ou estagnar durante quatro décadas. Os ganhos não foram distribuídos de forma justa e quando a desregulamentação levou à crise do sistema financeiro, foram esses 90% que suportaram os custos. É, pois, compreensível que os cidadãos comuns estejam zangados e se sintam menosprezados pelas elites políticas dos partidos tradicionais, muito deles social-democratas e socialistas, que governaram durante este período e apoiaram entusiasmados aquela versão de globalização e desregulamentação.
 
Não surpreende, portanto, que o descontentamento, a raiva e o ressentimento gerados pela versão neoliberal ou orientada para o mercado de uma globalização que aumentou as desigualdades e aprofundou a divisão entre vencedores e vencidos nas últimas décadas, que desvalorizou as comunidades nacionais e enfraqueceu os Estados-nação, na prática o principal veículo para que os cidadãos sintam segurança e liberdade para fazer ouvir a sua voz, se manifeste em primeiro lugar contra os partidos tradicionais e contra a democracia liberal representativa que esses partidos instrumentalizaram e fragilizaram. Os partidos que apoiaram e incentivaram a versão neoliberal da globalização passaram a ser vistos como as elites, os “eles”, responsáveis pela concentração da riqueza numa minoria de privilegiados com que muitas vezes se confundiam. Passaram a ser vistos como as elites responsáveis pela degradação do tecido moral da comunidade, da família ao bairro, à nação, e pelo desprezo pelo cidadão comum que não tinha poder nem era considerado na governação do país e das instituições supranacionais (excepto, claro, nos períodos eleitorais).

O que surpreende, contudo, é que o ressentimento contra as elites não abrange as dos negócios, na realidade as que mais lucraram com a globalização neoliberal nas últimas décadas e que constituem o núcleo duro dos 10% mais ricos. Aparentemente essas elites descobriram a forma de lidar e até tirar partido daquela raiva e descontentamento e a eleição de Trump para um segundo mandato, com mais poder autocrático e apoiado pelos mais ricos dos EUA, é a demonstração da sua eficácia no aproveitamento da raiva e do descontentamento dos cidadãos comuns norte-americanos.

Perante este quadro, o que podem os democratas fazer para contrariar o avanço do populismo autoritário que agrava ainda mais as desigualdades e as injustiças sociais?
 
Desde logo há que aprofundar o conceito de liberdade. A liberdade é normalmente entendida de forma demasiado restrita, demasiado individualista, como a liberdade de escolha de cada um. Mas há uma conceção mais ampla de liberdade e essa é a liberdade de que desfrutamos quando deliberamos juntos, como concidadãos, sobre o governo na comunidade em que estamos inseridos e sobre os propósitos e fins apropriados para essa comunidade. A esta liberdade chamarei, cívica.
 
Reconheço que décadas de regimes democráticos contruídos de cima para baixo e baseados quase exclusivamente na representação política por partidos, tornam difícil concretizar uma concepção cívica mais forte de liberdade, ligada à partilha, à comunidade e ao autogoverno. De facto, nos debates sobre a liberdade, perdemos quase sempre essa dimensão. Mas mais do que nunca parece necessário mudar não só a retórica política, como também o projecto político. É necessário mudar os termos da argumentação política tendo a preocupação de honrar e renovar a dignidade do trabalho, honrar e reconhecer todos aqueles que contribuem para o bem comum, através do trabalho que fazem, das famílias que criam, das comunidades que servem, tenham ou não credenciais académicas ou de outro tipo. Esse seria o ponto de partida.
 
Mas penso também que temos de refazer a sociedade civil. Um dos efeitos mais corrosivos do aprofundamento das desigualdades foi o vivermos vidas cada vez mais separadas, numa espécie de segregação de classes. O exercício da democracia não requer a igualdade perfeita. Mas requer que pessoas de diferentes esferas da vida, diferentes origens de classe, diferentes origens étnicas, se encontrem no curso normal de cada dia, porque é assim que aprendemos a negociar e a respeitar as nossas diferenças. E é assim que passamos a cuidar do bem comum.
 
Precisamos de reconstruir as instituições de mistura de classes, os lugares públicos e espaços comuns que nos unem, mesmo que inadvertidamente. Reconstruir a infraestrutura cívica para um modo de vida democrático compartilhado, pode ser um passo concreto para começar a atenuar as divisões, a raiva e o descontentamento e permitir, de vez em quando, pelo menos, conversar uns com os outros.

1 comentário:

  1. Mais um notável texto, que me induz a sugerir ao autor que passe a dividir as suas intervenções em dois grandes grupos, um, relativo ao que viveu ou está a viver, e outro, sobre o que observa quanto ao mundo exterior ("Evidências" ?)...

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