segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Lenda americana


O meu amigo José Ávila publicou no Facebook esta interessante fotografia do General Spínola no aeroporto de San Francisco, memória de uma viagem à Califórnia no final de 1975 de que ainda ouvi falar quando lá cheguei quase dois anos depois.

Reza a lenda, que como todas as lendas alia a fantasia à realidade, que Spínola escolheu o período do Thanksgiving (Ação de Graças), cujo dia é celebrado na quinta-feira da quarta semana de Novembro e é o feriado nacional americano dedicado às grandes reuniões e refeições familiares, onde o peru está sempre presente, para tentar encontrar nas terras americanas um recheado de dólares para financiar a luta contra os militares marxistas e o Partido Comunista Português que o tinham agrilhoado e amordaçado depois do 11 de Março. E estando na posse da informação que o "Comité da Internacional Comunista" tinha realizado uma reunião secreta, ao mais alto nível, algures em Trás-os-Montes, para programar a tomada do poder nos dois países da Península Ibérica num futuro muito próximo, o General queria aproveitar a ocasião para denunciar a conspiração soviética aos principais órgãos de comunicação social americanos e mundiais.

Fazer peditórios nas comunidades emigradas é um hábito nacional antigo. Há cem anos o meu tio padre Jardim construiu o santuário da Nossa Senhora da Paz na Madeira com dinheiro que recolheu junto das comunidades madeirenses das Américas e África. Spínola terá ido aos EUA pedir para o Santuário da Nossa Senhora da Reacção aos Gonçalvistas.

A comitiva de Spínola contava com o apoio de individualidades portuguesas importantes como por exemplo o embaixador na ONU Veiga Simão e era assessorada por dois militares, o Capitão-tenente fuzileiro naval Rebordão de Brito e o Capitão do Exército Marques Ramos, o segundo a contar da direita na fotografia.

O Capitão Marques Ramos fazia parte da coluna que saiu das Caldas da Rainha no 16 de Março de 1974, estava preso na Trafaria no 25 de Abril, foi a Argel, com Almeida Santos, Jorge Campinos e o Major Moreira de Azevedo, assinar o protocolo de acordo entre o governo português e o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe para a independência do território, esteve na ONU a explicar a Kurt Waldheim e à comissão de descolonização os planos de Portugal, conspirou e participou no 11 de Março, juntou-se a José Miguel Júdice, Diogo Pacheco de Amorim e Luis Sá Cunha em Madrid e adulterou o passaporte diplomático, mudando o algarismo 4 para um 8, para poder viajar para os EUA.
No dia 24 de Novembro de 1975, a comitiva do General Spínola foi almoçar a casa do Dr. Adriano Seabra Veiga, médico e Cônsul Honorário de Portugal no estado de Connecticut. Banqueteou-se com pratos refinados, de tradição portuguesa, acompanhados dos melhores vinhos e licores, servidos em louça da Vista Alegre e em copos de cristal, sobre uma toalha bordada da Ilha da Madeira, tudo servido por empregados de mesa em uniforme, sob o comando de um mordomo trajado a rigor.

O acolhimento pelas individualidades portuguesas não teve, contudo, correspondência na receptividade pela comunicação social dos EUA, em especial pelos programas mais influentes como os 60 Minutes, Meet the Press, Today Show ou Issues and Answers. Falharam todas as tentativas para convencer os responsáveis da relevância da causa do General e da credibilidade da notícia sobre a reunião de Trás-os-Montes. Dificilmente se encontram na comunicação social americana da época notícias sobre a necessidade imperiosa e urgente de Spínola libertar Portugal.

Na Califórnia, para além do apelo ao fervor patriótico das comunidades portuguesas ali estabelecidas, o objectivo de Spínola era convencer os proprietários portugueses e luso-descendentes das vacarias, leitarias e grandes empresas agrícolas a apoiar a causa anticomunista com uns milhões de dólares, servindo-se para isso da influência na área de San Jose e San Francisco do Dr. Décio de Oliveira, o segundo a contar da esquerda na fotografia.

Mas reza também a lenda, que naturalmente não pude confirmar, que nos chapéus passados pela audiência depois dos discursos recheados de patriotismo do General Spínola, não caiu sequer o suficiente para pagar as despesas com a viagem e com a estadia da comitiva na Califórnia.

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Post scriptum:

Chamei a este texto lenda, ou seja, "narrativa de essência fantástica ou incrível na qual se verifica uma adulteração de factos históricos pela imaginação geral ou popular", porque é o que na realidade pode ser. Outros saberão, melhor do que eu, o que é fantasia e o que é realidade na história que conto.

É que em Novembro de 1975 estava literalmente muito a leste dos locais onde ocorreram os eventos narrados. Estava a sofrer o bullying do Mar do Açores e de gente que também ia aos EUA e, naturalmente, à Califórnia, fazer peditórios, eventualmente com mais sucesso que o Spínola.

Por acaso, uns meses antes, andei embarcado num navio da US Navy no Mediterrâneo e atracámos em portos da Espanha, onde esta gente também conspirava. Felizmente não me encontrei com eles.

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