quinta-feira, 7 de novembro de 2024

As eleições nos EUA

 


Ressalvando as especificidades das sociedades e dos sistemas políticos e constitucionais dos vários países, o que ocorreu nos EUA não pode deixar de ser uma fonte de reflexão para os democratas que se preocupam com as manifestações, em Portugal e no resto da Europa, da cada vez mais pujante “serpente” da intolerância e do autoritarismo antidemocrático.

Não podemos ignorar que o discurso populista de Trump e da sua corte tirou partido da revolta dos trabalhadores e da classe média norte-americana contra a forma como as elites políticas têm exercido o poder, em especial a partir da década de 1980. E que neste lado do Atlântico grassa o mesmo discurso populista entre os apoiantes da extrema-direita, alegadamente contra as mesmas práticas das elites políticas europeias.

Nas primeiras décadas do século passado, o totalitarismo impôs-se à sociedade, de cima para baixo, pela obediência à ideologia oficial de um Estado comandado por um chefe carismático, com um sistema de partido único e sindicatos corporativistas. Hoje, o capitalismo autoritário volta a tentar levar as pessoas à apatia, à obediência passiva e à despolitização; promete-lhes crescimento económico, concede-lhes a liberdade privada de comprar e vender e elimina ou restringe as liberdades públicas de mobilizar, participar e agir.

Assistimos de novo à atracção por regimes incompatíveis com a democracia formal ou liberal porque a democracia foi sendo corroída pela insegurança social, por políticas fortemente condicionadas pelo poder e pela ganância do sistema financeiro e do capitalismo globalizado, pelas desigualdades na distribuição da riqueza, pela assimetria de rendimentos, pela pobreza e suas consequências, pelas migrações políticas e económicas e pelo imobilismo partidário e sindical.

Reconheço que é difícil defender a democracia liberal com entusiasmo quando ela funciona tão mal e não dá respostas às preocupações dos cidadãos. E é ainda mais difícil quando a comunicação social e as redes sociais se tornaram um veículo poderoso de actuação dos populistas, guarda avançada dos defensores do capitalismo autoritário e inimigos da democracia representativa.

Formadores de opinião e políticos demagogos de verbo fácil, muitas vezes reduzido a meia dúzia de ideias e palavras, vão criando a ideia de um futuro de prosperidade se aceitarmos, desejavelmente por via eleitoral, um Estado economicamente austero, politicamente autoritário e ideologicamente nacionalista.

E quem governará esse Estado? As elites tecnocratas formadas na burocracia internacional, os proprietários e dirigentes das grandes empresas e os quadros das instituições financeiras. No fundo, os mais capazes de implantar o capitalismo autoritário como alternativa à democracia liberal.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

A crónica da minha extinção

 

No final de 1976, estava eu nos Açores como chefe do Serviço de Máquinas da corveta “João Roby”, quando decidi concorrer ao curso de engenheiro electrotécnico naval, na Naval Postgraduate School da Marinha dos EUA, em Monterey, Califórnia. Se fosse seleccionado e concluísse com sucesso o curso e o respectivo estágio, ingressaria depois na classe dos engenheiros de material naval do quadro de oficiais do activo da Marinha.

Após ter sido escolhido para frequentar o curso em Monterey, as chefias da Marinha decidiram que seria mais útil obter o grau de Master of Science in Mechanical Engineering em vez de Electrical Engineering, como inicialmente previsto. Em consequência fui matriculado no programa de Mechanical Engineering da Naval Postgraduate School onde obtive os graus de Master of Science in Mechanical Engineering e Mechanical Engineer, em 1979

Entretanto, para consagrar a decisão que a Marinha tomou em relação a mim e a outro camarada, o Estatuto do Oficial da Armada (EOA) foi alterado pela Portaria 76/79, de 12 de Fevereiro, tendo em vista a “criação de um ramo de engenheiro mecânico na classe de engenheiros de material naval”. Para além dessa criação, foram definitos os requisitos para o concurso e ingresso dos oficiais no novo ramo. 

Depois de ter preenchido todos esses requisitos, em 1980 ingressei na classe de engenheiros de material naval, no ramo de engenheiro mecânico naval, passando a exercer as funções que o EOA atribuía aos oficiais daquele quadro.

Podem por isso imaginar o meu espanto quando, seis anos depois, ao ler a Ordem da Armada, tomei conhecimento de que pela Portaria 59/86, de 20 de Fevereiro, era “extinto o ramo de engenheiro mecânico naval da classe de engenheiros de material naval, criado pela Portaria 76/79, de 12 de Fevereiro”!

Sem qualquer aviso ou explicação prévia, fiquei a saber pela Ordem da Armada que a minha carreira naval estava irremediavelmente comprometida. Para além da extinção do meu ramo profissional e das respectivas funções, a Portaria do Ministério da Defesa Nacional não estabelecia qualquer medida transitória para os oficiais, no caso dois, que tinham ingressado de forma regular e de acordo com as regras definidas no EOA, no quadro da classe de engenheiros de material naval, como engenheiros mecânicos navais!

Claro que solicitei imediatamente o esclarecimento da minha situação na Marinha dado que tinha deixado de ser abrangida pelo EOA, mas ninguém conseguiu dar uma explicação razoável. Foi aliás evidente a atrapalhação de quem esteve envolvido na elaboração do diploma, desde logo da divisão do EMA de onde emanou.

Após quatro meses de tentativas dos responsáveis para justificar o injustificável, foi publicada uma nova Portaria 270/86, de 4 de Junho, que repetia a anterior com dois acrescentos: uma “desculpa de grumete” dando conta que “a Portaria 59/86, de 20 de Fevereiro, (…) por lapso, não continha o n.º 3.º que dela fazia parte integrante no projecto” e o tal n.º 3.º a esclarecer que “enquanto se verificar a existência, no quadro da classe de engenheiros de material naval, de oficiais habilitados com o curso de engenheiro mecânico naval são-lhes aplicáveis as disposições legais que sobre o extinto ramo de engenheiro mecânico naval se encontravam em vigor e manterão as letras designativas do ramo a que pertenciam.”

Assim ficou (mal) esclarecida a minha situação estatutária na Marinha e por isso, a partir daquele momento, mantive bem visível no meu gabinete de trabalho a ilustração, feita a partir da caricatura oferecida pelo camarada e amigo Nelson Leal, que traduzia fielmente o que sentia: estava extinto! 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

As (contra)partidas da vida



A vida propicia experiências diversas e inesperadas, umas boas, outras más, umas marcantes, outras nem tanto. Destas últimas, a maior parte é atirada para o baú do esquecimento e só circunstâncias muito particulares nos fazem revisitá-las. É o caso desta vivência que as recentes notícias sobre o julgamento do processo BES/GES me levaram a retirar do baú.

Algures a meio da primeira década do século XXI, tinha deixado a Marinha há poucos anos e trabalhava numa empresa de sistemas e tecnologias de informação, conheci um tipo simpático, da minha idade, de sua graça, Miguel. Era consultor de uma empresa do Grupo Espírito Santo (GES), a Escom - Espírito Santo Commerce, presidida por um seu irmão, também Miguel. Dizia o Miguel que eu conheci que todos os homens daquele ramo da família eram Miguel… istas.

O nome Miguel tem para mim um significado especial, mas, para além disso, o Miguel que eu conheci era naturalmente simpático. Apesar de se movimentar num meio politico-financeiro e representar interesses de que eu desconfiava, era de uma simplicidade desconcertante. Dizia que gostaria de ter sido militar, mas só descobriu a vocação depois do 25 de Abril, quando já não tinha idade para isso. Depois de passar pelo MRPP, onde conheceu gente conspícua da política como o Durão Barroso ou a Ana Gomes, dedicou-se a observar o mercado dos equipamentos militares, convencido de que Portugal um dia iria comprar helicópteros e submarinos.

De facto, a Escom acabou por intermediar a compra dos submarinos ao consórcio alemão GSC e dos helicópteros EH101 à Agusta-Westland, e o consultor Miguel apareceu na empresa onde eu trabalhava com a incumbência de nos fazer participar no programa das contrapartidas daquelas aquisições. Em tese, os fornecedores dos submarinos e dos helicópteros tinham de assegurar negócios com empresas portuguesas num montante igual ao valor daqueles contratos de aquisição (muitas centenas de milhões de euros!).

O Miguel não hesitava dizer que não percebia nada de contrapartidas, mas que apesar disso era o único consultor da Escom no assunto. E afirmava que o BES era o banco que podia fazer com que as contrapartidas resultassem, mas acrescentava logo que o BES não percebia nada de contrapartidas!

Fosse porque o negócio das contrapartidas nunca me entusiasmou, fosse porque o Miguel e a Escom também se afastaram dele porque, segundo o Miguel, não se queriam ver envolvidos nos esquemas de “facturas falsas” que, de acordo com o Ministério Público, algumas empresas terão cobrado como contrapartidas dos submarinos, nunca mais o encontrei.

Uns anos depois, em 2014, soube que participou na repartição de 16,5 milhões de euros, provenientes do consórcio alemão GSC, divididos equitativamente entre quatro responsáveis da Escom. O conselho superior do GES terá ficado com 5 milhões.

Cerca de um ano depois, o Miguel que eu conheci entrou com um processo de insolvência pessoal na Instância Central na 1ª Secção do Comércio em Lisboa. A insolvência do Miguel foi apresentada com um único credor: o Novo Banco, sucessor do BES.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

O Diário de Notícias de New Bedford

 


Quando o meu amigo José Ávila recordou no Facebook um artigo do Açoriano Oriental sobre o jornal Diário de Notícias de New Bedford que acolheu opositores e defensores do regime de Salazar durante os anos da ditadura e da censura, não descansei enquanto não li o que nele era publicado. A tarefa foi facilitada porque as mais de 84 mil páginas do jornal, desde que foi criado em 1919 até ser encerrado em 1973, estão disponíveis desde 2009 num arquivo digital criado pelo Centro de Dartmouth para Estudos e Cultura Portuguesa, da Universidade de Massachusetts.

Devo confessar que tem sido muito agradável percorrer as várias edições do jornal desde a fundação como Alvorada até ao fim como Diário de Notícias, título que adoptou a partir de 3 de Janeiro de 1927, “por ser este o mais apropriado em virtude do papel que esta publicação desempenha no meio da Colónia Portuguesa, levando, todos os dias úteis, ao lar de quasi todas as famílias que a compõem as ultimas noticias do que se passa pelo mundo, sendo também o único meio pelo qual, dia a dia, os comerciantes, tanto nacionaes como portugueses, podem dar conhecimento aos seus numerosos leitores e aos portugueses em geral do que teem para vender”, conforme se lia no comunicado da direção da Alvorada Publishing Company, Inc.

O Diário de Notícias de New Bedford era de facto um jornal eclético e nele encontrei as mais diversas e divergentes opiniões políticas, assim como notícias sobre tudo, desde os conflitos mundiais até às doenças ou nascimentos de membros da comunidade. Calculem que até encontrei uma notícia de 21 de Fevereiro de 1950 onde um agrónomo afirmava que Moçambique possuía dois dos melhores cafés do mundo. Segundo ele “na colónia se continua a importar café para consumo, com encargos de alguns milhares de contos, quando Moçambique podia ser exportador.” E citava dois cientistas britânicos, McDonald e Cheney, que afirmaram que o café de Inhambane era um dos melhores, senão o melhor café: “Aromático, com bom paladar, fraca percentagem de cafeína, cor pouco carregada, o café de Inhambane tanto pode ser usado puro como lotado com outros cafés. Mesmo puro, é um bom café.” Como já aqui contei, o meu Pai pensava o mesmo e tudo fez para que Moçambique se tornasse uma colónia exportadora de café. Até que, em 1959, Salazar proibiu a cultura do café em Moçambique e transferiu o meu Pai para Angola.

Mas de entre os vários textos de opositores do regime no poder em Portugal, achei particularmente interessantes os da coluna “Daqui Lisboa…” assinada por C. O Copilot respondeu-me que aquelas crónicas, fortemente críticas de Salazar e dos seus ministros, eram enviadas pelo jornalista Carlos de Oliveira de Lisboa. Não pude confirmar, mas deliciei-me com “O Dr. Sim-Sim”, “A Voz do Sr. Ministro”, “O Talentoso Funcionário”, “Os Desordeiros” e tantos outros excelentes textos do misterioso C. Mas “O Retrato”, publicado em Abril de 1950, destacou-se e, por isso, não resisti a partilhar com a devida vénia:

Sobre a banca de trabalho de Sua Excelência, à sua esquerda, que é o lado do coração, numa sóbria e linda moldura de prata, havia um retrato de Mussolini, com um autógrafo de letra bem talhada, em que o italiano significava em palavras calorosas o seu apreço pelo camarada português. Benito mandara-lhe aquela lembrança num momento de enternecimento, num daqueles rasgos de alma generosa que tanto o caracterizavam. Com os olhos postos na face voluntariosa e enérgico, na mandíbula grossa e naqueles olhos que pareciam fitá-lo e dizer: — Continua, que estás a agradar! Sua Excelência foi tecendo a rede enleadora de leis, decretos, discursos e notas oficiosas com que durante tantos anos nos mimoseou, no áureo período da Ditadura Nacional. Mas os tempos correram, a guerra acabou e Mussolini apareceu uma bela manhã, numa praça de Milão, pendurado de cabeça para baixo. Sua Excelência apressou-se, então, a meter retrato e moldura na gaveta, e nesse mesmo dia proclamou ao mundo que vivíamos, não em Ditadura, como a oposição fazia crer, mas em Democracia Orgânica e que as nossas eleições eram tão livres como as da livre Inglaterra. E tudo isto, apenas, porque lhe fez impressão, uma impressão terrível, saber que o pobre havia sido pendurado de cabeça para baixo. A sensibilidade deste homem doe-se com as desgraças, aflige-se, atormenta-se. Na gaveta o retrato estava melhor.

Ora como na vida tudo esquece, graças a Deus, e sobre aquela cena de Milão já passaram mais de cinco anos e é coisa assim distante como os grandes acontecimentos da História, dizem que de noite, naquelas serenas noites de trabalho em que Sua Excelência vela por nós, não resiste à tentação e vai à gaveta. Retrato e moldura vêm de novo para cima da banca de trabalho e o namoro continua, um namoro romântico, cheio de lágrimas e ais, mas bonito na sua fidelidade e na sua constância. O falecido parece que está vivo. A mesma força na expressão dura, o mesmo querer e o mesmo queixo, o mesmo olhar de águia vitoriosa. Sobre ele passaram os grandes desastres da Grécia, as batalhas navais do Mediterrâneo em que foi tudo para o charco, o Corporativismo falido, o fascio com as varas partidas e uma para cada lado, e a verdade é que ali o grande homem continua como se nada se tivesse passado, magnifico como sempre, radiante da sua força e do seu poder. Sua Excelência olha e suspira, arranca do peito ais de saudade e paixão, e ele, forte, perseverante, diz-lhe que não chore, que não seja piegas, que continue, porque a sorte não o abandonará.

São assim, agora, dolorosas as noites de Sua Excelência. Quando todos os familiares recolhem, quando em São Bento cai a paz da noite, em segredo, ele saca da gaveta o retrato amado e cumpre a santa devoção de adorar o morto querido. E só assim sente algum ânimo para o trabalho.

Dizem que já depois disso outros políticos lhe mandaram o retrato. O Franco que também é um sujeito animoso, o Chang-Kai-Chec das mãos limpas, o reabilitado Dr. Schatz, e até o imperador do Japão, o lacrimoso Hiroito, mas Sua Excelência naquele é que tem fé. De dia não, porque não gosta que lhe conspurquem a intimidade da sagrada adoração, mas de noite, quando todos dormem, é para o Benito que vão as suas lágrimas piedosas e é do Benito que lhe vem ainda algum alento.—C.

sábado, 17 de agosto de 2024

O último adeus

 


Há um ano, recolhi a senha na entrada do hospital e subi ao SO. Como era habitual desde que estava internada, ia estar trinta minutos com a minha Mãe e dar-lhe o jantar.

Ao entrar no quarto, vi logo o letreiro “dieta zero”, por cima da cabeceira, mas não quis entender o que significava. Sabia a resposta, mas mesmo assim perguntei à enfermeira se não lhe podia dar o jantar. Respondeu que não.

A minha Mãe estava muito serena e lúcida. Conversámos sobre muitas coisas e, no final, pediu-me que a levasse para junto do seu amor, no terreno da casa onde nasceu.

Voltei a fingir que não entendia. Trocámos beijos e um longo abraço, e disse-lhe: Até amanhã, Mamã.

Não me respondeu.

Foi o nosso último adeus. Partiu vinte minutos antes de o dia acabar.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

"As Mãos dos Pretos"

Quando os autoproclamados “patriotas” promovem e praticam o ódio racial na comunicação social, nas redes sociais e nas ruas dos EUA, do Reino Unido ou de Portugal, apetece-me lembrar o menino de um dos mais belos contos que li: “As Mãos dos Pretos” de Luís Bernardo Honwana, pseudónimo literário do moçambicano Luís Augusto Bernardo Manuel, nascido em 1942.

As Mãos dos Pretos” é um dos sete contos do primeiro livro de Luís Bernardo Honwana, “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, editado pela Sociedade de Imprensa de Moçambique, em 1964. O livro foi logo apreendido pela PIDE.

Durante a minha infância em Moçambique, muitas vezes perguntei porque é que as palmas das mãos dos pretos eram mais claras do que o resto do corpo. E tal como o menino do conto, obtive as mais diversas respostas. Não me lembro das minhas, mas o menino do conto registou as do Senhor Professor, do Senhor Padre, da Dona Dores, do Antunes da Coca-Cola, do Senhor Antunes, do Senhor Frias, do livro que falava dos que apanhavam o algodão branco da Virgínia, da Dona Estefânia, mas nenhuma o satisfez.

Só a mãe do menino deu uma resposta que satisfez e que foi mais ou menos isto:
«Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos, porque os que já se tinham habituados a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos».

E o menino completa o seu registo dizendo-nos:
«Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fui para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.»

sábado, 3 de agosto de 2024

"Rosas de Ermera"

 



Em 2018, a RTP2 transmitiu os dois episódios do documentário “Rosas de Ermera”, de Luís Filipe Rocha. A partir das memórias dos irmãos sobreviventes, Maria e João, contou-nos a história da família de José Afonso em Moçambique (Lourenço Marques), Coimbra e Timor.

Poucas semanas antes do início da 2ª Guerra Mundial, a família separou-se em Lourenço Marques: os pais e a Maria, com 7 anos, viajaram para Timor, onde o pai assumiu as funções de juiz; os irmãos João e José, com 11 e 10 anos, viajaram para Coimbra, para casa de uma tia paterna. É a saga da Maria e dos pais depois da ocupação de Timor pelas tropas japonesas que Luís Filipe Rocha nos conta com grande detalhe. Mas também nos relata, através do testemunho do irmão João, o que os dois irmãos sentiram quando, habituados à liberdade que usufruíam em Moçambique, foram confrontados com o ambiente opressivo de Coimbra.

Identifiquei no testemunho do irmão João Afonso dos Santos muito do que vivi quando com 9 anos vim com os meus pais e a minha irmã de Moçambique para Lisboa. Por isso, mas não só, gostei de rever o documentário de Luís Filipe Rocha que a RTP2 voltou a transmitir na madrugada do passado dia 1, desta vez como filme com a duração de pouco mais de duas horas.

Pode ser visto na RTP Play. Vale a pena.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Farsa populista


 

Comprei este livro há uma meia dúzia de anos porque prometia abordar a crise provocada pelas políticas neoliberais e a globalização nas cidades industriais do Ohio.
 
Na década de 1980, durante a recepção das turbinas para as fragatas da classe “Vasco da Gama”, tive oportunidade de conhecer a região e, em particular, a fábrica onde aqueles equipamentos foram fabricados, não muito distante de Middletown, a cidade onde a história do livro se desenrola. Mais tarde, a crise financeira de 2008 levou a indústria da região à beira do colapso e tornou mais evidentes a pobreza e a fragilidade moral de uma população trabalhadora branca culturalmente desenraizada, maioritariamente migrada das áreas rurais montanhosas, isoladas e pobres.

Mas para além do interesse em perceber a transformação económica e social do tecido industrial do Ohio, fui também espicaçado pela anunciada “profunda introspeção sobre Trump e o Brexit”. Recordo-me, no entanto, de que apesar de ser um relato realista e bem construído das difíceis condições de vida de uma população que se viu atingida pelo desemprego, em muitos aspectos semelhante ao ocorrido na grande depressão, com personagens marcantes como Mamaw, a avó materna do autor, o livro ficou aquém das minhas expectativas.
 
Primeiro, porque não foi à raiz do problema, ou seja, às causas profundas destas crises periódicas do sistema de produção capitalista norte-americano; segundo, porque nada continha sobre Trump e sobre o Brexit; finalmente, porque tratando-se da autobiografia de alguém que escapou à miséria económica e moral que ameaçava a família e a comunidade onde cresceu, foi fuzileiro e participou na guerra do Iraque, tirou o curso de Direito em Yale, uma das oito universidades privadas mais conhecidas e caras dos EUA, e se tornou um consultor de sucesso de grandes organizações, havia qualquer coisa na história que soava a falso ou mal contado.

Apesar do êxito do livro nos EUA, como não conhecia o autor J.D. Vance, não pensei mais nele até há poucos dias. É que o agora senador republicano pelo Ohio, JD Vance (sem pontos), foi escolhido por Trump para seu vice-presidente!
 
Voltei a ler o livro com mais atenção, desta vez o original com o título “Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis”. Estudei a evolução das posições políticas do autor, alegadamente próximo da nova direita populista norte-americana representada pela “American Compass” de Oren Cass.
 
Devo confessar que confirmei a ideia de que o projecto populista de Vance, aparentemente preocupado com a classe trabalhadora, é uma história mal contada. E que, afinal, o Independent tinha razão: tem tudo a ver com Trump.

sábado, 27 de julho de 2024

As Amigas


Da Maria Júlia dizia que era amiga desde que nasceu. Claro que sim e as raízes dessa amizade estavam numa aldeia no sopé da serra de Montejunto.

Conheceu a Miete no liceu, em Lisboa. Reencontraram-se em Quelimane, nos idos anos 50 do século passado. Desde então, nada, nem mesmo a imensidão do triângulo Portugal-Moçambique-Brasil, as separou.

Observei estas amigas desde miúdo e em nenhum momento senti qualquer indício de que algo não corria bem entre elas. Sempre as vi felizes, solidárias e cúmplices, no melhor e no pior que a vida lhes deu.

Que bela lição, mais uma, que a minha Mãe nos deu.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A cunha*



 
Ou a lei da vida segundo o Chefe da Casa Civil do Presidente da República

Já conhecia o papel da cunha no relacionamento dos portugueses com os serviços públicos. Em 2021, uum estudo da Transparency International concluiu que Portugal era, com a França, o 2.º país da União Europeia onde mais se recorria às cunhas. Nesse estudo, o 1.º lugar do pódio foi ocupado pela República Checa.

Mas ainda não tinha ouvido alguém com competência para isso defender a cunha como um direito do cidadão, enquadrado pela nossa lei, e até como uma lei da vida. Quem o fez foi o distinto jurista que desde março de 2016 é Chefe da Casa Civil do Presidente da República, durante a audição na “Comissão Parlamentar de Inquérito - Gémeas Tratadas com o Medicamento Zolgensma”, mais conhecida como a Comissão Parlamentar de Inquérito à cunha do filho do Presidente da República ao pai.

O Chefe da Casa Civil do Presidente da República deu-nos conta de que já recebeu e encaminhou 190 mil pedidos de cidadãos ao Presidente da República, mas entende que é algo normal e até traduz o que, segundo ele, é a lei da vida. Para o Chefe da Casa Civil do Presidente da República, “é assim que a vida funciona. Há pessoas que perante uma oportunidade, a agarram, que vão atrás dela. Há pessoas que têm a iniciativa de se dirigirem a uma administração, ou de se dirigirem a uma entidade qualquer, e há pessoas que não têm.”
 
E esclareceu: “Quando escrevem ao Presidente da República, nós tratamos as coisas assim. Do nosso ponto de vista, por respeito pelo cidadão, por respeito pelo seu pedido, por respeito pelo seu direito de ter uma resposta do órgão de soberania. São as instruções que temos e que me parecem corretas e acho que os cidadãos têm direito. (…) Nós tentamos encaminhar, tentamos responder às pessoas de forma positiva. O que não escreveu não teve essa resposta, não. O que teve a iniciativa de escrever, teve., é assim. E eu acho que sinceramente podemos ver isto no campo dos princípios do Estado ideal em que tudo é perfeito, mas nós não somos perfeitos. Esta é a realidade.

Admito estar enganado, mas estou convencido que uma boa parte dos 190 mil pedidos feitos ao Presidente da República só muito dificilmente podem ser considerados petições à luz da lei e, de acordo com esta, deveriam ser liminarmente indeferidos. Para além de poupar trabalho, tal procedimento ajudaria a disciplinar os falsos peticionários.

No caso das gémeas, em que alguém pediu ao pai Presidente da República para interceder no processo de tratamento pelo SNS de duas crianças filhas de amigos, parece ser claro que não havia fundamento para ser considerada petição e poderia ter sido liminarmente indeferida, poupando muito trabalho e confusões.

Tudo indica que a preocupação de proteger o Presidente da República e blindar o processo na Casa Civil, fará com que nada de relevante sobre o encaminhamento da cunha do filho do Presidente da República saia da Comissão Parlamentar de Inquérito. Mas teria sido bom que este episódio servisse para esclarecer a diferença entre o exercício do direito de petição consagrado na lei e o péssimo hábito da cunha de que os mails do filho do Presidente da República são um bom exemplo.

Lamento que o Chefe da Casa Civil do Presidente da República não tenha esclarecido a diferença entre petição e cunha e, pelo contrário, tenha posto tudo no mesmo saco. Talvez evitasse que o Presidente da República continue a ser atulhado com os 25 mil pedidos anuais, provavelmente simples cunhas na esmagadora maioria dos casos.


*Pessoa influente que pede em favor de outra com empenho. Empenho ou recomendação de pessoa importante ou influente. ("Cunha", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/cunha.)

quinta-feira, 11 de julho de 2024

"Land of Milk and Money"

 


Lembrei-me do título do romance do matemático, professor e escritor norte-americano com raízes na ilha Terceira, Anthony Barcellos, quando vi a apresentação de Mike Moyle sobre a herança portuguesa, maioritariamente dos Açores e da ilha de São Jorge, no californiano Marin County, a noroeste de San Francisco.
 
O romance de Anthony Barcellos retrata a vida das famílias portuguesas que emigraram para o interior rural do San Joaquin Valley, em busca da terra prometida. Maioritariamente açorianos como os que foram para o Marin County, quer uns quer outros foram trabalhar nas herdades agropecuárias, acabando muitos por dominar o sector. No Marin County, a pesca e a construção naval foram também sectores onde a iniciativa e a capacidade de trabalho dos portugueses se evidenciaram.
 
Quando fui estudar para Monterey em 1977, confesso que não olhava os EUA e a Califórnia como a terra prometida e tinha até uma relação difícil com o sistema capitalista americano. E quanto à comunidade portuguesa da Califórnia, convivia mal com as manifestações de nacionalismo açoriano que por vezes sentia. Os meses embarcado em corvetas nos Açores nos anos quentes de 1975 e 1976 criaram em mim aversão pelo discurso independentista que na época era popular em terras californianas.

O tempo e as experiências de vida suavizaram ou eliminaram as minhas reservas e hoje sou o primeiro a reconhecer o que a Califórnia tem de bom e a ressaltar o enorme mérito da comunidade portuguesa açoriana que lá vive e trabalha e entre a qual tenho muitos bons amigos.
 
E quando estive em Sausalito em Abril, tive o prazer de conhecer o Mike Moyle, um americano com raízes no Hawaii que se dedica a estudar a herança portuguesa no Marin County. O Mike foi-me apresentado pelo Ruben da Silva, que emigrou para os EUA e ali vive, depois de deixar a Marinha.

O Mike proferiu uma palestra no IDESST Sausalito Portuguese Cultural Center no passado dia 9 e partilhou a apresentação no YouTube. Como referências da sua investigação citou o “Guidebook for the Sausalito Portuguese Heritage Walking Tour” e a lista de algumas das pessoas de quem falou.

A apresentação é longa, mas vale a pena porque se aprende muito sobre nós próprios, como povo.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

O "Otimista" na Marinha

 


Domingo à noite. O novo canal NOW anunciava ser dia de “Otimista, um programa de António Costa, a mostrar o que de bom e positivo existe no país”. No anúncio do programa mostrava António Costa e Pedro Mourinho a serem recebidos na entrada do Palácio do Alfeite pelo Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Gouveia e Melo, e a maquete do “Navio / Plataforma Naval Multifuncional” encomendado ao Grupo Damen.

Não podia perder tal programa, desde logo porque iam falar da Marinha que, para mim, continua a ser uma referência do que de bom e positivo existe em Portugal. Depois porque o “Otimista” António Costa, como Primeiro-Ministro, dirigiu o apressado Conselho de Ministros de 23 de dezembro de 2021 que exonerou o anterior CEMA sem a adequada explicação e nomeou Gouveia e Melo para o cargo, com a correspondente promoção a Almirante. O inusitado de assistir à conversa do agora Presidente do Conselho Europeu com o chefe militar que nomeou há menos de três anos em tais circunstâncias, aguçou ainda mais a minha curiosidade.

Assisti com atenção e confesso que fiquei surpreendido com uma parte substancial do que vi e ouvi. Refiro-me em particular às afirmações do actual CEMA sobre a indústria naval militar nacional. Claro que o cidadão Gouveia e Melo pode opinar sobre o tema e dizer o que entender, mas quando o faz na condição de CEMA, o caso muda de figura. Trata-se de um sector de actividade em que a o Estado, através da Marinha, tem um papel central. Do ponto de vista económico, é o principal, senão mesmo o único, cliente. Poucos países têm clientes externos para a sua indústria naval militar e Portugal não está certamente entre eles. E dada a relevância da Defesa Nacional e da Marinha nesse mercado monopsonista, responsáveis como o CEMA devem ter particular cuidado com as mensagens que transmitem.

Ao longo da carreira profissional, tive oportunidade de reflectir sobre a indústria naval militar nacional. Em 2010, quando participei no extinto Fórum Empresarial da Economia do Mar coordenado pelo saudoso camarada, amigo e colega Fernando Ribeiro e Castro, com ele e com outros profissionais do sector debati e delineei uma possível estratégia para a indústria naval militar nacional com o objectivo de evitar o colapso que todos adivinhávamos. Devo confessar que não tivemos sucesso, mas foi por ter consciência da complexidade e dificuldade da questão que fiquei surpreendido com algumas das afirmações do actual CEMA.

Embora o programa tenha passado num canal novo e provavelmente apenas tenha sido visto por alguns (poucos) interessados no tema, não tendo por isso impacto numa população entretida com o futebol, pode ter deixado a ideia de que é possível fazer com mil o que até agora muitos só foram capazes de fazer com um milhão!

O actual CEMA afirmou que olha “para o futuro da Marinha com muito mais otimismo do que olhávamos há uns anos atrás” e que a Marinha hoje “tem, com menos recursos, mais capacidade”. Não me quero meter nas questões operacionais nem na sua avaliação, mas não pude deixar de registar o optimismo do chefe da Marinha, que chegou mesmo a superar o do entrevistador. Em determinado momento, o actual CEMA afirmou: “Eu estive há muito pouco tempo no estrangeiro, num país de referência, em que os líderes da Marinha desse país me disseram, de forma muito clara, que nós conceptualmente, e o que estamos a desenvolver, está 10 anos à frente de tudo o que está a ser feito.” No meu caso, quando estava ao serviço, se os líderes de uma outra Marinha me dissessem que estávamos “10 anos à frente de tudo o que está a ser feito”, pensaria que estavam a tentar ser simpáticos com uma mentira bondosa. Aparentemente, o actual CEMA não pensou o mesmo…

Mas indo à matéria que conheci bem na Marinha, ou seja, a realização e aquisição de serviços para construir e manter os navios e os seus sistemas e equipamentos, não consigo deixar de me impressionar com o papel que o actual CEMA atribui aos drones, quase que os contrapondo aos navios militares. E mais impressionado fico com a facilidade com que, no caso dos drones, a Marinha parece ultrapassar as restrições administrativas que então condicionavam quem tinha responsabilidades na área do Material Naval.
Disse o actual CEMA que criou “uma pequena empresa dentro da Marinha para desenvolver estas coisas com 3 militares. Agora já são 40 e vamos tentar crescer para 100. 100 engenheiros e gente só dedicada à inovação.” Outro oficial disse que “funcionamos como uma start-up”. Qual será o quadro legal desta “pequena empresa”? Será um organismo fabril? Como está organizada? Como faz aquisições? A quem presta contas? Na Marinha que servi até 2000, a lei então em vigor inviabilizava qualquer actividade com os contornos descritos pelo actual CEMA, a não ser se fosse realizada por organismos fabris. E mesmo esses estavam sujeitos a regras administrativas muito restritivas.

Para perceber melhor o que se passa com a alegada produção de drones na e pela Marinha, fiz uma pequena pesquisa sobre os modelos referidos na reportagem. Concluí que não serão produtos totalmente concebidos e fabricados pela Marinha e alguns deles têm origem no estrangeiro. São comercializados por empresas portuguesas às quais, à semelhança do que se passa com todos os outros sistemas dos navios, a Marinha terá adquirido equipamentos, materiais e serviços segundo uma especificação técnica e, depois, procedido à sua recepção. Como acontece como muitos outros equipamentos, é provável que os requisitos da Marinha tenham influenciado o produto final, mas dizer que foram desenvolvidos pela Marinha parece ser exagerado.

Outra surpresa foi o actual CEMA contrapor a utilização dos drones ao que chamou “uma Marinha clássica”. Como engenheiro naval militar, não entendo o que é uma “Marinha clássica” nem sei qual é o modelo económico a que obedece. Sei sim que as Marinhas militares estão permanentemente a evoluir, a modificar os seus navios e a dotá-los de meios que optimizam a realização das missões que lhes são atribuídas. Foi assim com os radares, foi assim com os sonares, foi assim com o armamento, foi assim com os helicópteros, será certamente assim com os drones. O objectivo sempre foi cumprir as missões com menos recursos e maior eficácia. Em cada momento, as Marinhas militares são o que os requisitos operacionais exigem e as tecnologias permitem. Se neste momento as capacidades de vigilância dos navios militares podem ser alargadas e optimizadas com a utilização de drones, estou certo de que todas as Marinhas evoluirão rapidamente para a sua adopção generalizada.

Pareceu-me também estranho o conceito de construção de um navio militar do actual CEMA. Aparentemente, para ele, é “soldar chapa”. Talvez por falta de experiência nessa área, não saberá que o soldar da chapa é a actividade menos relevante da construção de um navio. O que é de facto relevante é “meter dentro dessa chapa depois de soldada” todos os sistemas e equipamentos, incluindo os “computadores, redes, software” que referiu. E essa actividade requer competências que se adquirem academicamente e com a prática e ajudam a identificar factores de risco que já apontei no programa de construção do “Navio / Plataforma Naval Multifuncional”, caracterizado pelo actual CEMA como “o primeiro conceito mundial de um navio que é um porta-drones”.

Duas notas finais:
  • Por princípio desconfio dos que invocam o interesse do Estado para estabelecer relações privilegiadas e por vezes obscuras com determinados fornecedores de serviços e equipamentos. Não sei se é o caso das aquisições dos drones, mas detectei alguns sinais preocupantes na forma como alguns dos entrevistados descreveram a relação da tal “empresa dentro da Marinha” com empresas externas;
  • Sou dos que defendem que o brincar é uma bonita forma de as crianças aprenderem e evoluírem. Mas receio os adultos que se recusam a crescer e continuam a brincar com brinquedos cada vez mais caros, pagos por todos nós.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Ainda o passeio

 


Uma brincadeira musical para todos os netos e inspirada por uma memória com o mais novo, registada pelo mais velho.

domingo, 23 de junho de 2024

O bilhete de identidade de Silva Pais

 


Confesso que depois da visita à sede da PIDE/DGS, na António Maria Cardoso, poucos dias depois da ocupação pelas forças do MFA coordenadas pelo meu camarada e amigo Luís Costa Correia, fiquei com pouca vontade de lá voltar. Passados 50 anos, ainda me lembro do que senti ao percorrer aqueles espaços labirínticos e tenebrosos; ao ver as fotografias dos milhares de portugueses cuja vida foi devassada, destruída e reduzida a pastas de papéis, atadas com fitas e arrumadas em prateleiras; ao encontrar a minha ficha, preenchida à mão por mim, quando me matriculei no Técnico em 1968; ao ver os livros e publicações apreendidas e as centenas de revistas pornográficas que encontrava sempre que abria as gavetas das secretárias.

Quando falo da PIDE/DGS aos jovens, para além de relatar a minha fugaz visita ao edifício da António Maria Cardoso e de mostrar a ficha prisional do meu primo Benjamim, uma das 29 510 fichas dos 148 livros de registo de presos da PVDE/PIDE/DGS de 1934 até 18 de Abril de 1974 que a Torre do Tombo colocou online, e onde, ao longo de 9 anos, vários amanuenses registaram a forma como a repressão salazarista destruiu a vida de um jovem de 18 anos, socorro-me depois dos testemunhos de quem tem credibilidade. Desde logo dos testemunhos do Luís Costa Correia sobre os primeiros meses da ocupação da sede da PIDE/DGS como, por exemplo, a “semimória” que publicou em Agosto de 2020.

Relativamente às muitas outras histórias e historietas sobre essa ocupação sou muito cuidadoso. É o caso, por exemplo, da historieta que o comentador de assuntos soviéticos e russos José Milhazes conta no seu livro "Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril - Como a União Soviética não quis a revolução socialista em Portugal", de 2013. Nele relata que um "agente soviético, Guenrikh Borovik," que passando por jornalista em maio de 1974 entra com "facilidade" na sede da PIDE em Lisboa, terá "roubado" o próprio cartão de identidade de Silva Pais, o director da então polícia política, apesar de ter sido revistado pelos militares do Movimento das Forças Armadas que guardavam o edifício.

Acontece que o Bilhete de Identidade de Silva Pais foi depositado pelo Luís Costa Correia no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, como se pode confirmar pela consulta ao inventário do espólio que entregou àquela instituição.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

A lição do Professor

Sei de um Professor que no último dia de aulas escreveu uma mensagem de agradecimento aos 99 alunos. Uma longa mensagem que os alunos não esquecerão, tenho a certeza.
 
Agradeceu a todos, sem excepção, o ano maravilhoso que lhe proporcionaram. Um ano em que não houve um aluno de quem não tenha gostado muito, de quem não tenha guardado pelo menos uma boa recordação e não queira voltar a encontrar no futuro, seja em que circunstância for.

Afirmou que cada um dos alunos tinha sido extraordinário e tinha cumprido, brilhantemente, o seu papel; que cada um deles permitiu que fosse professor de facto, puxando por ele, motivando-o e fazendo com que tivesse acabado o ano letivo um muito melhor ser humano.

Terminou dando os contactos para o caso de algum dos alunos precisar de alguma coisa dele e desejando felicidades para todos nas vidas que ainda mal começaram!

A mensagem é muito recente e bem real, tão real como o Professor que a escreveu. Felizmente é apenas um dos muitos professores exemplares que encontrei nas escolas públicas do ensino básico e secundário que tive a grata oportunidade de conhecer relativamente bem na última década.

terça-feira, 11 de junho de 2024

"Abril Hoje" na escola Fernão do Pó do Bombarral



Na sequência da conversa sobre o 25 de Abril no Agrupamento de Escolas Fernão do Pó no Bombarral no mês passado, a Professora Bibliotecária Célia Bento decidiu afixar na entrada da biblioteca e distribuir aos alunos e professores a "Carta de um jovem de Abril a um jovem de Hoje" que escrevi em 2017 para os alunos que participaram no projecto "Abril Hoje" na Escola Básica e Secundária de Carcavelos.

 
A carta foi o meu contributo para o estudo e debate do tema do desemprego, uma das principais preocupações manifestadas num inquérito inicial aos alunos do 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário. Nela contei a luta do meu Pai pelo emprego e pela dignidade profissional que aqui tenho recordado a propósito do 100º aniversário do seu nascimento. O tema foi então estudado por duas turmas do secundário, de Sociologia e de Economia, que apresentaram um relatório com sugestões de acções futuras.


Se a minha carta também tiver alguma utilidade para os alunos da Fernão do Pó, ficarei muito feliz.

sábado, 8 de junho de 2024

O poder colonial em Moçambique na década de 1950



Quando há uns anos publiquei pela primeira vez um texto sobre o relatório de 14 de Junho de 1958 do governador do distrito da Zambézia, o Inspector Administrativo Álvaro de Gouveia e Melo, para o governador-geral de Moçambique, o Capitão de Mar e Guerra Gabriel Teixeira, sobre as eleições presidenciais de 8 do mesmo mês, o meu amigo e conterrâneo António Sobrinho perguntou-me, compreensivelmente, se o documento fazia parte do espólio do meu Pai.
Respondi que não porque o meu Pai tinha fechado definitivamente o capítulo moçambicano da sua vida em 1961, raramente falava sobre ele e não guardou documentos da parte final daquele período. Como tive oportunidade de contar nas anteriores publicações sobre o 100º aniversário do nascimento do meu Pai, as autoridades coloniais moçambicanas, em 1959, expulsaram-no da terra onde nasceu, cresceu, casou, criou os dois filhos e exerceu uma intensa e desafiante actividade profissional. Foi um choque violento que o deitou abaixo e por pouco não acabou com a sua vida. Felizmente conseguiu ultrapassar os graves problemas de saúde e reconstruir a carreira profissional, primeiro em Portugal, depois no Brasil e mais tarde noutros países do Mundo, em moldes bem mais gratificantes e psicologicamente mais saudáveis do que em Moçambique.

Por mero acaso, encontrei o tal relatório numa pesquisa na internet, nos arquivos digitais da Fundação Mário Soares, como peça de um conjunto documental depositado pelo meu Camarada e Amigo Luís Costa Correia. Embora o arquivista tenha identificado o conjunto como “Relatório-Secreto n.º 2/G, das Eleições Presidenciais de 1958”, na realidade é uma colecção de documentos em que alguns são relatórios - o “Relatório-Secreto n.º 2/G” é apenas um deles - sobre aquelas eleições presidenciais, fundamentalmente em Moçambique. Como mais tarde o Luís Costa Correia me explicou, o conjunto documental em causa foi um dos dois únicos que retirou dos arquivos da DGS/PIDE, em Maio de 1974, quando coordenou a sua ocupação, para entregar posteriormente a entidades responsáveis por Arquivos históricos, por considerar que seria lamentável que fossem extraviados nos prováveis processos de transferências futuras. No entanto, quando retirou os documentos teve o cuidado de deixar no respectivo arquivo uma anotação explicativa da intenção de serem enviados a adequada entidade que estudasse os métodos eleitorais do Estado Novo, o que viria a ocorrer mais tarde.

Em boa hora o fez porque permitiu que ao ler aqueles documentos, confirmasse o que o meu Pai me tinha contado sobre as eleições presidenciais de 1958 em Moçambique. Embora sem provas, suspeito que ele, não sendo um oposicionista militante, acabou por ser fortemente penalizado por se ter mantido imparcial e não ter colaborado com as iniciativas manipuladoras e fraudulentas do governador do distrito Gouveia e Melo e do governador-geral Gabriel Teixeira.
 
Os dois relatórios do governador-geral Gabriel Teixeira que integram aquele conjunto documental são excelentes demonstrações da mentalidade de quem tinha a responsabilidade do governo da colónia de Moçambique: a obsessão pela ameaça dos comunistas e dos interesses externos que segundo ele dominavam a oposição, o elogio da vigilância e controlo policial dos cidadãos, a falta de confiança na maioria dos correligionários governadores de distrito e o desprezo pelos directores de serviço e equiparados (“todos frouxos, e talvez até, muitos deles, piores do que frouxos”). Segundo ele as “eleições, com todos os seus malefícios, tiveram o mérito de pôr em relevo vários pontos fracos da vida nacional” e “puseram também a nu a duplicidade de uns e a tibieza de outros, muitos ocupando posições de comando nos quadros do funcionalismo. Foram, enfim, uma lição, e se soubermos aproveitá-la, e estou certo que saberemos, o saldo, em efeitos, das eleições será benéfico para a Nação.”

A repressão que se seguiu às eleições presidenciais de 1958 nos diversos sectores sociais, políticos e económicos de Moçambique − a proibição da cultura do café com enorme prejuízo para os cafeicultores, especialmente da Zambézia, foi apenas uma das acções retaliatórias do poder colonial −, mostrou o entendimento que tinha do que era “benéfico para a Nação”.
 
Para mal dos povos português e moçambicano.

No centésimo aniversário do meu Pai

 


Em 2010, entrevistaram o meu Pai e pediram que falasse das circunstâncias em que começou a trabalhar no Centro de Investigação da Ferrugem do Cafeeiro em Oeiras. E ele respondeu assim:
“Foi numas circunstâncias muito especiais. Eu vim de Moçambique em 1959 numa situação de ser humano destruído. Agora atribuo o que se passou quando eu tinha 30 e poucos anos, nessa altura tinha 35 anos, a uma doença que, nessa altura era pouco divulgada, que era a depressão. Eu devo ter entrado numa depressão com essa idade, porque estando eu durante 12 anos a trabalhar em Moçambique, depois de ter sido nomeado delegado da Junta de Exportação do Café, dessa altura, para Moçambique, a instalar duas estações experimentais, uma para a espécie racemosa e outra para a espécie arábica, em zonas geográficas completamente distintas. As estações estavam muito avançadas e a parte de fomento das culturas também. Tinha conseguido criar uma equipa extraordinariamente interessante de agrónomos e de regentes agrícolas, nessa altura eram engenheiros técnicos agrários, e de um momento para o outro, recebo da sede, portanto, em Lourenço Marques, na capital de Moçambique, um despacho, do ministro do Ultramar a mandar extinguir todos os trabalhos que estavam a ser realizados em Moçambique sobre a cultura do café, e a justificação, para mim, era absolutamente absurda, é que, Moçambique não podia produzir café, só podia produzir chá e que Angola, só podia produzir café e não chá e que, portanto, eu entregava todo o material móvel, imóvel, as edificações, tudo o que tinha sido construído com dinheiro da delegação dos serviços de agricultura e acho, a uma junta de planeamento qualquer, e eu era transferido para Angola para ir trabalhar em café em Angola, uma vez que eu me tinha especializado na cultura do café, depois do estágio em Angola.

Interessante, a minha mulher então olhava para mim, eu dei conhecimento à minha mulher, e ela admirou-se de eu ter ficado impávido e sereno depois de ter recebido uma notícia daquelas. Aquilo era destruir o sonho que eu tinha acalentado durante 10 a 12 anos, que era pensar que Moçambique podia tornar-se a segunda colónia produtora de café, mas não de robusta, sim de racemosa, que eu continuo a considerar uma espécie extraordinária de Moçambique, e de arábica. O racemosa nas zonas arenosas do litoral, em que não há culturas ricas que se possam fazer naquelas condições, há só as culturas alimentares que mantêm a população. As populações locais ficavam com meio de ganharem dinheiro vendendo o café racemosa a um preço que era relativamente bom para as famílias. E o arábica, que era uma cultura que também estava a ocupar aqueles fazendeiros que trabalhavam em pequenas fazendas de chá, mas que não tinham condições para criar aquelas grandes unidades de benefício do chá, que estavam nas grandes empresas, que eram, salvo erro, três: Chá Moçambique, Chá Gurué e a outra não me ocorre. Essas empresas compravam a folha do chá aos pequenos agricultores por um preço irrisório, de maneira que, eles sentiam quando surgiu a hipótese de fazer outra cultura, que era a cultura do arábica, em que a estação de benefício eles podiam fazer facilmente, e não estarem dependentes do preço que fixavam as grandes empresas, eles começaram todos a relaxar o aspecto do chá e a meterem-se todos para café. E o que é verdade é que, eu lembro-me de uma estimativa que se fez na altura, pouco antes de haver esse despacho do Ministro, havia já uns 5.000 hectares de arábica na Alta Zambézia, incluía: Gurué, Tacuane, Nauela, Milange, etc., as áreas principais de difusão do arábica.
 
Mas, como eu estava a dizer, eu, praticamente, fiquei na mesma. E disse: bem, agora tenho que tratar de fazer inventário de tudo o que a delegação tem, para fazer a entrega, para depois, a gente então embarcar para Angola. Por essa altura já tínhamos 2 filhos. Telefonei para a Estação Experimental, chamava-se Alverca, o local onde estava a Estação Experimental do Gurué de café e disse: eu vou aí para vos ajudar a fazer o inventário, porque havia os camiões, havia tratores, havia os edifícios, aquela coisa toda, ia ver como é que se fazia aquilo, bem, eu não percebia nada de inventários, mas levava uma pessoa para orientar a fazerem aquele trabalho da inventariação das coisas para a entrega. Portanto segui, normalmente, de carro, com o motorista dos serviços, para o Gurué, para a Estação Experimental, uns 400 km de onde eu morava.
 
Chego lá, montei logo a máquina, para aquilo estar tudo a funcionar, e tudo muito bem, e só ao fim de uma semana é que me deu uma tontura. Ora, um sujeito com 35 anos, cheio de energia, a mexer por todos os lados, sabia lá o que era uma tontura. Deu-me a tontura, eu parei um bocadinho, fiquei assim à espera e a tontura foi-se embora, bem, eu pensei, isto é qualquer coisa que eu comi, mas o que é verdade, é que depois, passada meia hora ou coisa assim, deu-me outra tontura e o que é verdade é que a segunda já me preocupou um bocadinho. Mas ainda me preocupou mais quando, me deu um quarto de hora depois, 5 minutos depois, e a páginas tantas, era uma tontura permanente. Perdi totalmente a capacidade de dirigir qualquer coisa, só tive energia para dizer ao motorista para pegar no carro, meter-me lá dentro. Deitado no banco de trás, fiz o trajecto directo para minha casa em Quelimane, que era a 400 km. Lá fez os 400 km e lá me entregou à minha mulher. E aí é que entrei numa fase muito complicada porque, de um momento para o outro, uma pessoa que tinha aquela energia toda, vendia saúde e que nunca tinha tido problemas, como é que tinha ficado um chaço assim de repente? Perdi as forças, não conseguia levantar os braços, de maneira que, a minha mulher mandou chamar um médico lá a casa.”

A entrevista continuou e a partir dela, a neta Catarina escreveu um pequeno texto que é a belíssima história de uma vida.
 
A vida do meu Pai, que faria hoje 100 anos.

Saudades



“Perguntava muitas vezes se eramos felizes.
Preocupava-o não o sermos.

Para ele a felicidade nada tinha de supérfluo.
Fazer os outros felizes, respeitá-los e ser fiel eram a sua forma de ser e estar na vida, a fórmula correcta para descobrir a felicidade.

O outro era o lado maravilhoso da vida, da sua vida.

O privilégio foi nosso.
O lado maravilhoso da sua vida fomos nós.
Foi assim que nos fez sentir desde sempre e até ao fim.
E é assim que nos sentimos hoje.

Vivemos com saudade.
Mas celebraremos a vida e a felicidade.
Por ele e por causa dele.”

As palavras são da neta Catarina.
As saudades são de todos nós.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Melhorar o nosso mundo


Costumamos acabar as sessões do "Semear Abril" com esta imagem e a pergunta: "O que vais fazer para melhorar o teu mundo?" Normalmente não esperamos resposta porque o objectivo é apenas deixar o desafio aos jovens. Mas hoje, no último “Semear Abril” do 4º ano da EB1 Fausto Cardoso de Figueiredo, partimos dessa pergunta para que os alunos apresentassem propostas de melhoria do seu mundo, no caso a escola que estão prestes a deixar.


A turma dividiu-se em quatro grupos de cinco alunos e, durante vinte minutos, cada um dos grupos pensou uma ideia, ilustrou-a numa folha de papel A3 e elegeu um porta-voz para a apresentar à turma. As quatro propostas foram depois sujeitas a votação por braço no ar para que a turma escolhesse a preferida. Numa hora e meia, crianças de oito e nove anos foram capazes de elaborar quatro propostas de raiz, apresentá-las e discuti-las com os colegas e fazer uma escolha democrática da que consideravam mais apropriada.
 
Foi assim que se propuseram fazer uma campanha de sensibilização dos colegas através de cartazes e mensagens para que deixem de deitar lixo para o chão, apresentaram sugestões de melhoria da qualidade da comida da escola e de criação de um dia da comida em que seria servida uma refeição do agrado da maioria, propuseram a criação de um conselho dos representantes das turmas junto da direcção da escola e propuseram a criação de um momento de atenção em que cada um pudesse divulgar os seus interesses e habilidades e conversar sobre eles com especialistas externos convidados.

Na votação foi democrática (e pragmaticamente) escolhida a proposta de melhoria da comida da escola, mas os outros grupos deixaram claro que iriam também tentar concretizar as suas ideias.

Esta manhã, as crianças do 4º ano da EB1 Fausto Cardoso de Figueiredo deram uma lição magistral de cidadania. Se todos os grupos sociais se comportassem como eles, o mundo seria de facto muito melhor.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

O Comodoro e o Tarrafal

 


Nas conversas com os jovens do “Semear Abril” costumo ilustrar a violência da repressão salazarista com a história da prisão do meu primo Benjamim Inácio Garcia na "Colónia Penal" do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. O Benjamim fez parte do segundo grupo de prisioneiros que inaugurou o terrível campo de concentração.

O Benjamim trabalhava como carpinteiro de moldes do Arsenal da Marinha quando, em 1935, aos 18 anos de idade, foi preso “por ordem superior” e mandado para a então Fortaleza Militar de Peniche. Foi absolvido e libertado em Abril de 1936 por um Tribunal Militar, mas um ano depois foi "preso novamente para averiguações, recolhendo à cadeia do Aljube". Embarcou para Cabo Verde, na segunda leva de presos que inaugurou a "Colónia Penal" do Tarrafal, em Junho de 1937, sem julgamento. Sete anos depois, em Outubro de 1944, regressou a Portugal, tuberculoso e em fase terminal de vida. Um mês depois, em 1 de Novembro de 1944, foi finalmente julgado, “tendo sido condenado na pena de 23 meses de prisão correcional, dada por expiada com a prisão preventiva de 7 anos e 238 dias e na perda dos direitos políticos por 5 anos”. Foi libertado em 7/11/1944.

O que conto aos jovens sobre a forma como a ditadura salazarista usou o Tarrafal para destruir a vida do Benjamim durante mais de 7 anos sem julgamento, à semelhança de muitos outros portugueses, consta da sua ficha prisional, uma das 29 510 fichas dos presos pela PVDE/PIDE/DGS entre 1934 e o dia 18 de Abril de 1974 que a Torre do Tombo disponibilizou online. No entanto, não costumo contar como o Tarrafal foi encerrado depois do 25 de Abril, no dia 1 de Maio de 1974, com a libertação dos últimos prisioneiros políticos do Estado Novo.

O principal responsável por essa libertação foi o Comodoro Pedro Fragoso de Matos que conheci em 1970, quando entrei na Escola Naval. Como chefe de curso tive oportunidade de contactar com alguma frequência com o Comodoro Fragoso de Matos, então Comandante da Escola Naval, tendo ficado com uma boa impressão sobre o seu carácter.

Era um homem com consciência humanista, que exercia o cargo com a preocupação de justiça e de respeito pelos alunos, permitindo a estes o exercício de liberdades de expressão e manifestação que não eram vulgares em escolas militares. E fê-lo de tal maneira que ouvi oficiais apoiantes da ditadura afirmarem que o nosso curso estava perdido (para a causa deles) por ser o "curso do Fragoso de Matos".

No dia 1 de Maio de 1974, o Comodoro Fragoso de Matos era o Comandante-Chefe das Forças Armadas em Cabo Verde e Encarregado do Governo na sequência da demissão do anterior Governador depois do 25 de Abril. Apesar das pressões da Metrópole, em particular do Presidente da República, General Spínola, e dos círculos mais conservadores de Cabo Verde (alguns militares e funcionários da administração colonial), o Comodoro Fragoso de Matos tomou a corajosa decisão de libertar todos os prisioneiros políticos que ainda estavam no Tarrafal.

No dia seguinte comunicou a sua decisão a Lisboa num telegrama com a classificação de “secreto”. Nele dava conta de que “foram restituídos liberdade todos presos políticos Tarrafal em 1 Maio às 15 horas 30 [minutos].” E justificava: “Esta decisão, […] teve consideração perigosa explosiva acuidade situação em crescente irreprimível pressão população activa e comprovada insuficiência meios controlar possível generalização distúrbios.” Por fim propunha “colocação minha disposição máxima urgência transporte aéreo fim serem remetidos Estado Angola” treze dos libertados, naturais daquele território.

No mesmo dia o Comodoro Fragoso de Matos recebeu a resposta de Lisboa: “Informo Vexa JSN fixou seguinte interpretação sobre aplicação amnistia presos políticos: Decreto Lei JSN determina que todos presos políticos cujos crimes se enquadrem nº 2 artº 1 aludido Decreto-Lei sejam imediatamente restituídos liberdade. Não são abrangidos situações ligadas cometimento actividades subversivas violentas."

Tarde piaram…

sábado, 6 de abril de 2024

Onde eu estava...

 


Oficial de Marinha reformado e engenheiro, nascido em Lourenço Marques (Maputo) em 1950.

No início de 1974 estava no 4º e último ano da Escola Naval, uma escola bem diferente do Técnico que frequentei antes de optar pela Marinha. Contudo, esse período de 1968 a 70 marcado pelo activismo estudantil universitário, influenciou a forma como via a ditadura.

Estava certo de que a liberdade e a democracia com que sonhava só seriam possíveis com um golpe militar que mudasse o poder em Portugal. As farsas eleitorais de 1969 e 73, a resistência dos sectores conservadores da Marinha a iniciativas como, por exemplo, a denúncia de práticas formativas caducas ou a criação de um jornal escolar para os alunos debaterem ideias, assim como as ameaças de expulsão da Escola Naval apesar de ser um dos primeiros classificados do curso, militar e academicamente, não permitiam qualquer ilusão.

Os meus pais também não tinham simpatia pelo Estado Novo. Da minha mãe, nascida numa aldeia no sopé da serra de Montejunto, ouvi falar do primeiro emprego na sede da Companhia de Diamantes de Angola e dos tiques de ditador do seu patrão, um oficial de Marinha monárquico próximo de Salazar que foi ministro da República, administrador colonial e de várias empresas e bancos. Do meu pai, que nasceu em Lourenço Marques, filho de madeirenses à procura de uma vida melhor em Moçambique, ouvia críticas ao Estado colonial. Formado em Engenharia Agronómica, casou na metrópole, concorreu aos Serviços de Agricultura de Moçambique e foi colocado em Inhambane, onde vivemos os primeiros 7 anos da minha vida. Decidiu apoiar os pequenos agricultores na cultura do café, uma alternativa às concessionadas pela administração colonial às grandes empresas. Instalou estações experimentais, primeiro na Malamba, a sul de Inhambane, e depois no Gurué, na Zambézia, quando foi transferido para Quelimane, onde produzia e distribuía sementes aos fazendeiros e agricultores que assumiam por inteiro o circuito de produção e venda do café. Mas esta situação incomodava os poderes coloniais e em 1958 a cultura do café foi proibida em Moçambique. Quem quisesse trabalhar em café, que fosse para Angola!

Em consequência ou por coincidência, o meu pai adoeceu gravemente e perante um desfecho que os médicos previam fatal, veio deixar a minha mãe, a minha irmã e eu, então com 9 anos, em Portugal. Felizmente, recuperou ao fim de um ano, voltou ao trabalho e tornou-se um especialista do melhoramento genético do cafeeiro. Mas, acentuou a descrença na política colonial portuguesa, sentimento que transmitia aos filhos.

Casei em Fevereiro de 1973, estava no 3º ano da Escola Naval. A minha mulher engravidou poucos meses depois e foi na expectativa do nascimento do primeiro filho e dos resultados da conspiração em que procurava participar, que chegou o dia 3 de Março de 1974, o dia em que o bebé nasceu e o mundo desabou. Na maternidade, explicaram que o menino sofria de uma malformação congénita, com danos do tecido nervoso que não podiam ser avaliados com rigor, mas eram significativos e irreversíveis. O menino foi internado no hospital de Santa Maria e faleceu com dez dias de vida.

Foram os dez dias mais duros e intensos da nossa vida. Ao drama pessoal juntou-se a vivência das carências do sistema público de saúde de então. Numa enfermaria cheia de bebés, muitos deles abandonados pelas famílias, faltava tudo menos o esforço e o empenho das enfermeiras. O que se passava num dos maiores hospitais nacionais era bem a imagem de um regime decadente. Mas a mãe do menino, depauperada física e emocionalmente, encontrou forças para o acompanhar, cuidar e mimar até aos últimos minutos de vida.

Depois foi preciso voltar a levantar o mundo, juntos. Um mês e meio depois, na madrugada do dia 25 de Abril, um camarada avisou-me de que as tropas do Movimento estavam na rua. Despedi-me da minha mulher e apresentei-me na Escola Naval.

(Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles e publicado nas versões impressa e digital do Diário de Notícias)

sábado, 16 de março de 2024

A lição dos pinheiros

Foto de Joana Bettencourt

Era um espaço feio, sem vegetação, com o solo empobrecido pelo entulho das obras. Por isso, o Avô entendeu que era o espaço adequado para os cinco netos compreenderem os benefícios de se plantarem árvores, neste caso, pinheiros-bravos.

Orientados pelo Avô, os netos escolheram os locais onde cada um ia plantar o seu pinheiro. Limparam o terreno à volta e abriram cinco covas, com terra solta no fundo, para colocarem as pequenas plantas de pouco mais de um palmo. Taparam as raízes com terra que calcaram com as mãos e os pés, antes de deitarem a água que traziam da garagem em baldes. Espetaram uma estaca junto de cada pinheiro para servir de tutor e moldaram as caldeiras de retenção de água, reforçadas por um pequeno muro de terra na parte mais baixa do terreno em declive. Finalmente, taparam as caldeiras até ao nível do solo com material vegetal para manter as raízes húmidas e fornecer nutrientes aos pinheiros.

Durante meses o Avô e os netos cuidaram dos pinheiros. Regaram, mantiveram o material vegetal de proteção dentro das caldeiras e eliminaram as plantas invasoras em redor. Com estes cuidados, os pinheiros cresceram e ficaram mais altos do que os netos, excepto um que, na véspera do Natal, foi cortado e levado, certamente para enfeitar a sala do ladrão durante as festividades natalícias antes de ser despejado no lixo.

E como se isso não bastasse, pouco tempo depois, o Avô e os netos constataram que a haste de outro tinha sido partida, muito provavelmente por um apanhador de caracóis. Mas desta vez, o pequeno pinheiro deu uma lição de resistência à adversidade e de superação das dificuldades.

A haste partida foi substituída por um dos ramos horizontais e, apesar da deformação do tronco, o pinheiro continuou a crescer e hoje, quatro décadas depois, nada o inferioriza relativamente os outros três!

domingo, 3 de março de 2024

Mulher Coragem

 

O Jorge Miguel nasceu no final do domingo, dia 3 de Março de 1974. Faria hoje 50 anos.

A jovem mãe, muito combalida por um parto demorado e difícil, sentia a felicidade que todos as mães sentem quando finalmente podem ver o primeiro filho. As marcas dos "ferros" eram bem visíveis na cabeça do bebé, mas estava certa de que iriam desaparecer. Notou a imobilidade das pernas do menino, mas a inexperiência, a delicadeza da médica que decidiu conceder-lhe uma noite de felicidade e a satisfação de olhar o primeiro filho ofuscaram os sinais de que algo estava errado.

No dia seguinte, o mundo desabou quando um médico neurocirurgião entrou no quarto acompanhado de uma enfermeira e lhe explicou que o menino sofria de uma malformação congénita, espinha bífida aberta. A extensão dos danos neurológicos não podia ser avaliada com rigor, mas eram significativos e irreversíveis. O tecido nervoso perdido não podia ser reparado e as funções dos nervos danificados não podiam ser restauradas. E era urgente decidir fazer, ou não, a cirurgia para fechar o defeito e eventualmente impedir a infecção dos tecidos expostos e a morte do bebé.

Foi o primeiro dos dias mais duros da vida da jovem mãe. Com o pai, consultou especialistas, mas depressa percebeu que pouco ajudavam. A decisão teria de ser deles e rápida. E decidiram não operar. O menino foi internado no hospital de Santa Maria por ser o local com melhores condições técnicas para a sua situação. Faleceu com dez dias de vida.

Dez dias em que a mãe do menino, depauperada fisicamente e sujeita a um vendaval de emoções, encontrou a força necessária para o acompanhar, cuidar e mimar com muito amor, até aos últimos minutos de vida. Num ambiente hospitalar desolador, onde faltava tudo menos o esforço e empenho das enfermeiras, a jovem mãe revelou a coragem e a determinação que mais tarde constituíram a trave-mestra de uma maternidade plenamente realizada.

Depois foi preciso voltar a levantar o mundo. Pouco mais de um mês depois foi o 25 de Abril. A seguir a segunda gravidez e a ansiedade da espera, com o pai ausente a navegar nas águas do Atlântico Sul e depois do Mediterrâneo. O nascimento da Joana, quase um ano depois, foi anunciado ao pai por mensagem no centro de comunicações de um navio da Marinha dos EUA. Depois veio a Catarina. E mais tarde um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito netos!

E o oitavo neto é o Miguel Jorge, um sinal de que as contas da vida da mulher coragem estão saldadas e de que muito do que é a nossa família foi construído com o que sentimos e aprendemos nos dez dias de vida do nosso filho Jorge Miguel.