Dos comentadores da guerra na Ucrânia que inundam a comunicação social, os Majores-Generais Carlos Branco e Raul Cunha destacam-se claramente da multidão por terem estudado o assunto e usarem os seus conhecimentos e experiências para produzirem excelentes análises sobre um tema muito complexo. Os outros demonstram quase sempre uma enorme ignorância e limitam-se a papaguear a propaganda dos dois principais actores geoestratégicos, Rússia e EUA, com esmagador predomínio da narrativa do segundo.
O que me espanta é que nada do que se está passar na Ucrânia devia ser uma novidade para quem, por algum motivo, tenha tentado perceber o pensamento geoestratégico dos EUA e da Rússia. No caso dos EUA, todos sabemos que um dos principais mentores do pensamento geoestratégico nas últimas décadas, talvez com o interregno da administração Trump, foi Zbigniew Kazimierz Brzezinski, o Conselheiro de Segurança Nacional de Jimmy Carter. Com Kissinger e Huntington, Brzezinski foi um dos que mais influenciou a geopolítica dos EUA nos últimos 50 anos.
Conselheiro da CIA no Afeganistão durante a ocupação pela URSS, Brzezinski foi muito mais além na definição da política externa norte-americana. Justificou a conciliação com o Paquistão, a tolerância para com a Arabia Saudita ou a cooperação com a China.
No seu livro “The Grand Chessboard - American Primacy and Its Geostrategic Imperatives”, explicou detalhadamente a sua estratégia de cerco "ofensivo" contra a Rússia. Segundo Brzezinski, a liderança dos EUA devia passar não só pelo domínio dos aliados, tais como os países desenvolvidos na Europa e Ásia, mas também por adoptar politicas de “acções de paz”, para lidar com indivíduos “irritantes” como Saddam Hussein do Iraque, Slobodan Milosevic da Servia e Kim Jong II da Coreia do Norte. Para Brzezinski, a politica externa dos EUA devia assegurar a permanência dos EUA como a única superpotência global, não dando oportunidade a países como a Alemanha ou o Japão para resolverem problemas regionais e ganharem supremacia na região em questão.
Brzezinski considerou a Ucrânia um dos pivôs geopolíticos (geopolitical pivots), os outros eram Azerbaijão, Coreia do Sul, Turquia e Irão, e dedicou páginas e páginas do livro “The Grand Chessboard" àquele país e à sua relação com a Rússia, um dos actores geoestratégicos (geostrategic players) concorrentes dos EUA. Os outros eram a França, a Alemanha, a China e a Índia.
Entre outras possíveis citações, deixo esta: “Ukraine, a new and important space on the Eurasian chessboard, is a geopolitical pivot because its very existence as an independent country helps to transform Russia. Without Ukraine, Russia ceases to be a Eurasian empire. Russia without Ukraine can still strive for imperial status, but it would then become a predominantly Asian imperial state, more likely to be drawn into debilitating conflicts with aroused Central Asians, who would then be resentful of the loss of their recent independence and would be supported by their fellow Islamic states to the south. China would also be likely to oppose any restoration of Russian domination over Central Asia, given its increasing interest in the newly independent states there. However, if Moscow regains control over Ukraine, with its 52 million people and major resources as well as its access to the Black Sea, Russia automatically again regains the wherewithal to become a powerful imperial state, spanning Europe and Asia. Ukraine’s loss of independence would have immediate consequences for Central Europe, transforming Poland into the geopolitical pivot on the eastern frontier of a united Europe.”
À luz do pensamento de Brzezinski, o comportamento da Rússia na Ucrânia é compreensível e, tal como o Major-General Carlos Branco escreveu em 2019, “assemelha-se em tudo ao dos EUA relativamente à invasão de Granada em 1983, ou às operações de mudança de regime patrocinadas pelos EUA na América Latina que levaram ao derrube de vários governos eleitos democraticamente, cuja possível simpatia pela potência oponente poderia representar uma ameaça inadmissível à sua segurança.” Aparentemente Putin estudou pela mesma cartilha dos EUA e tirou as adequadas lições do reconhecimento do Kosovo e dos bombardeamentos da Sérvia.
Evocar agora outros argumentos para condenar apenas a Rússia e branquear o papel dos EUA desde pelo menos 2014, quando patrocinou um golpe de Estado e o então senador John McCain disse aos manifestantes, em Kiev, ao lado do líder de extrema-direita do partido Svovoda, “a América está convosco”, e desde então fechou os olhos à violência que resultou na morte de milhares de ucranianos no Donbass, é, no mínimo, uma enorme demonstração de hipocrisia dos comentadores avençados.
Em 2019, o Major-General Carlos Branco escreveu: “O conflito ucraniano será resolvido quando os atores geoestratégicos de primeira grandeza acordarem uma solução, o que não aconteceu até ao momento e não parece que venha a ocorrer num futuro próximo.”
Esperemos que agora os actores geoestratégicos de primeira grandeza mudem de atitude e acordem numa solução.
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