Tenho um enorme respeito pelo esforço e pela obra que os emigrantes portugueses realizaram e continuam a realizar por todo o mundo e observo com interesse os elementos essenciais do processo de preservação e reconstrução da sua identidade cultural em função das condições específicas de cada um dos inúmeros espaços de acolhimento.
Apesar de minha família ser de Portugal Continental e da Madeira, de ter vivido a infância em Moçambique e ter vários familiares emigrados noutras partes do mundo, quiseram as circunstâncias da vida que acabasse por conhecer e compreender melhor a vida das comunidades portuguesas nos Estados Unidos e, em particular, dos emigrantes açorianos na Califórnia.
Até 1975, o meu conhecimento sobre os Açores limitava-se ao pouco que aprendi na escola e a uma curta visita a São Miguel e às suas belezas naturais. A partir de Novembro de 1975 e ao longo de mais de um ano conheci todas as ilhas dos Açores e as gentes que nelas viviam. Logo a seguir fui estudar para a Califórnia e a partir daí nunca mais deixei de me sentir ligado à comunidade portuguesa e luso-descendente, maioritariamente açor-americana, que ali vive. Uma comunidade que admiro pela qualidade dos seus membros e pela obra que realizaram com trabalho e perseverança.
Confesso que quando vivi em Monterey no final da década de 1970 não entendi as peculiaridades económicas, políticas, culturais e psicológicas dos portugueses açorianos emigrados na Califórnia. Nessa altura as minhas preocupações e a minha disponibilidade para reflexões fora do âmbito da engenharia eram muito diferentes das de hoje e por isso só mais tarde comecei a perceber o essencial do processo de assimilação da cultura americana pelos emigrantes açorianos e quais eram os traços identitários fundamentais dos açor-americanos.
Ler os trabalhos dos professores Onésimo Teotónio Almeida ou Francisco Cota Fagundes, os escritos de João de Melo, Álamo Oliveira ou Vamberto Freitas, para citar apenas alguns dos principais, ajudou muito. Mas ao seguir os roteiros de Francisco Cota Fagundes ou de Vamberto Freitas, houve um lisboeta que conheceu bem a comunidade açoriana na Califórnia que me abriu a porta do processo de compreensão e esse foi o professor Eduardo Mayone Dias, recentemente falecido, com as suas “Crónicas da Diáspora”. E fê-lo com três crónicas que também vi citadas num trabalho académico de 2019 realizado na Universidade de Macau (somos realmente globais!): “O Senhor José e os seus Furões”, “A Rainha Santa na Califórnia” e “Forcados com Sapatos de Ténis ou as estranhas andanças da corrida de touros na Califórnia”.
O Senhor José era um caçador inveterado da Terceira que para continuar a caçar coelhos no Vale de San Joaquin, criava e utilizava furões que eram mais do que proibidos pela lei californiana. A medieval Rainha Santa Isabel de Aragão e Portugal era a mais improvável aparição que alguém podia esperar na Califórnia, uma terra remota e estranha a qualquer tipo de história ou lenda religiosa portuguesa. Contudo Mayone Dias escreveu que em Artesia, “o Rei Lavrador e a Rainha Santa regressaram ao século vinte e se estão preparando para ir até ao McDonald’s reconfortar-se com dois hamburgers com batatas fritas e dessedentar-se com duas espumantes coca-colas”. Na mesma Artesia onde ouviu os hinos dos Estados Unidos da América e de Portugal tocados pela banda portuguesa local e viu hastear as bandeiras de ambos os países, para logo de seguida aparecerem os forcados que descreveu assim: “Nenhum traz barrete. Uns estão de jaqueta, outros em mangas de camisa. Alguns usam um calção beige, outros uma calça preta justa, até meio da tíbia. E todos vêm de sapatos brancos de ténis. Os seus nomes vão sendo anunciados pelos alto-falantes e é uma sensação estranha ouvir todas estas menções a Franks, Jakes e quejandos.”
Claro que os forcados que vemos na foto do meu amigo José Ávila, pelo menos no atavio, já não são os Jakes e os Franks de Mayone Dias, mas lá está o velcro para proteger o touro e evitar o derramamento de sangue provocado pelas bandarilhas, muito provavelmente numa tourada associada a uma festividade religiosa, tudo para cumprir a lei californiana e contornar a aversão dos americanos pelas touradas.
É esta capacidade dos portugueses para, partindo de condições adversas, transplantarem as suas tradições culturais e as adaptarem ao novo ambiente, na maior parte das vezes dando a volta por cima e tornando-se tão bons ou melhores que os já residentes no espaço de acolhimento, que me fascina nas comunidades de portugueses e lusodescendentes que tive a sorte de encontrar em todo o mundo, fosse na Califórnia e noutras regiões dos EUA, fosse na Alemanha, em França, em Inglaterra ou na Malásia.
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