sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O meu melhor Natal




Há sessenta anos o meu Pai estava doente, muito doente.

Cerca de um ano antes, estava a trabalhar na Estação Experimental que tinha montado no Gurué e teve uma tontura. Com trinta e cinco anos e cheio de energia, não sabia o que era uma tontura. Parou, ficou à espera, e a tontura foi-se embora. – Bem, isto foi qualquer coisa que eu comi – pensou. Mas passada meia hora, sentiu outra. Depois vieram em sucessão, cada vez com maior frequência. Um quarto de hora, cinco minutos depois, até que se tornou uma tontura permanente e perdeu a capacidade de fazer fosse o que fosse. Mandou o motorista ir buscar o carro e deitou-se no banco de trás.

E foi deitado no banco de trás que fez os 400 km até casa, em Quelimane.

A minha Mãe chamou um médico que o auscultou e não encontrou nada. – Ah, isso deve paludismo – concluiu perante o sintoma de tosse seca. Receitou uma boa dose de antibióticos, mas o estado de saúde do meu Pai agravou-se. Sentia-se angustiado, sem força, nem os braços mexia. A minha Mãe dava-lhe a comida na boca porque não conseguia comer.

O médico aconselhou-o a ir para Lourenço Marques, talvez lá resolvessem o problema. A minha Mãe Coragem, Mãe Força, com duas crianças e um marido que não conseguia andar, embalou tudo e partiu para a capital da colónia. Aí os médicos, reunidos numa junta de saúde nomeada de urgência, decidiram unanimemente despachar o meu Pai para a Metrópole para ser internado no Hospital do Ultramar (actual Egas Moniz).

Fizemos a viagem para Lisboa em condições dramáticas. Lembro-me do meu Pai prostrado, a tremer de frio quando todos tínhamos calor. O “Super-Constellation” da TAP fez uma escala técnica prolongada em Kano e todos os passageiros tiveram de desembarcar, excepto o meu Pai. Não sei o que me marcou mais naquela noite passada no aeroporto nigeriano, se os trajos escuros e os rostos tapados das mulheres muçulmanas ou o vulto do avião onde o meu pai tinha ficado sozinho, na escuridão da pista.

No Hospital do Ultramar concluíram que o meu Pai sofria do Mal ou Doença de Addison, uma doença incurável cuja causa não sabiam identificar. Foi tratado com cortisona, administrada em doses cada vez maiores. Começou a andar, com grande esforço, mas continuava a sentir-se muito mal. Em vez dos habituais 60 quilos, passou a pesar mais de 80 e perdeu progressivamente faculdades. Mal conseguia ler porque estava a perder a visão. 

Sentia a vida a fugir, lenta e inexoravelmente.

Esta é a memória do Natal de há sessenta anos na casa dos meus Avós em Palhais, no sopé da serra de Montejunto. Apesar do esforço da minha Mãe e dos meus Avós, foram dias de “morte cansada, de raiva e agonias, e nada”, como no poema de Saramago!

Como pouco mais podia fazer, o meu Pai procurava distrair-se com os livros que encontrou na estante do escritório do meu Avô. Folheava-os lentamente, com a ajuda de uma lupa, até que num deles, de um médico nutricionista norte-americano, viu descritos, com extraordinária precisão, todos os sintomas que sentia. Leu atentamente todo o livro, estudou as recomendações que lá eram feitas e tomou uma decisão drástica: abandonar toda a medicação e seguir as instruções do nutricionista.

Durante dois meses não ingeriu alimentos sólidos e só tomou, de duas em duas horas, alternadamente, um copo de sumo de cenoura e uma chávena de um caldo antioxidante, um concentrado resultante da cozedura lenta e prolongada de vários vegetais. Foi perdendo peso, dos 80 chegou aos 40 e poucos quilos, ao mesmo tempo que se sentia com cada vez mais energia e a angústia desaparecia. Sentia necessidade de fazer exercício e por isso, diariamente, saía de casa no Areeiro, descia a Almirante Reis, ia até ao Terreiro do Paço e voltava para casa, sempre a andar em passo rápido.

Depois, lentamente, o meu Pai foi acrescentando novos alimentos à dieta. Leu e estudou tudo o que encontrou sobre nutrição e acabou por definir, para si e para a família, o que considerava ser uma alimentação saudável. Regressou ao trabalho e reiniciou uma nova carreira profissional e científica onde atingiu o topo, antes de se reformar em 1993.

Foi assim que, há sessenta anos e sem me aperceber logo, aconteceu o melhor Natal da minha vida. Um Natal que se prolongou por vários meses, fora da época, mas que trouxe de volta o meu Pai, quando pensava que o ia perder.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Fronteiras



Confesso que sempre convivi mal com os serviços que guardam as fronteiras, sejam de alfândega, de emigração ou outra coisa qualquer. Em Portugal e no estrangeiro.

Não sei a razão, talvez seja porque não gosto de fronteiras. Uma das coisas boas que a União Europeia e o tratado de Schengen nos trouxeram foi a possibilidade de viajar na Europa como se não houvesse fronteiras.

Sinto-me sempre desconfortável nas longas filas e interrogatórios para ultrapassar os balcões dos passaportes e nas passagens pelos controlos alfandegários. Sem nenhum motivo para isso, é um mal-estar que não consigo evitar.
 
Apesar do incómodo, esqueci todos os episódios das muitas passagens de fronteiras, excepto um e já passaram mais de quarenta anos.
 
Quando regressámos de Monterey, a Marinha pagou o transporte de 3 metros cúbicos de bagagem. Como não tínhamos dinheiro para extravagâncias, concentrámos tudo o que era importante num caixote com aquele volume. Nem mais um centímetro cúbico de bagagem.

Logo que o caixote chegou a Lisboa, o despachante convocou-me para o cais da Rocha de Conde de Óbidos para estar presente na passagem pela Alfândega. Esperámos junto ao caixote e à hora marcada, apareceu a comitiva chefiada por um guarda-fiscal, com ar de poucos amigos. Depois das formalidades burocráticas, mandou abrir o caixote de madeira e as caixas de cartão do interior.

Abri a primeira caixa de cartão e caíram várias peças de jogos. Passaram à segunda e saíram bonecos, livros infantis e brinquedos, muitos brinquedos usados, de todos os tamanhos, cores e feitios. É que para nós o importante eram os brinquedos da Joana e da Catarina. A mudança para uma terra que não conheciam ou já não se lembravam sem os brinquedos e os objectos familiares seria uma violência, não podia ser.

O guarda-fiscal, enfastiado, exclamou: ─ Não vale a pena, só sai quinquilharia! Voltou-nos as costas e foi-se embora, sem se despedir.

A partir desse dia passei a embirrar com os funcionários das alfândegas.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Uma história para o Miguel




O Miguel telefonou e pediu: — Gostava de ter conhecido o teu Pai... conta uma história do teu Pai.

— Está bem, mas o meu Pai contou-me tantas histórias que não sei por onde começar... Deixa-me pensar… Talvez possa começar por uma que se passou numa terra muito longe, onde ele e eu nascemos, quando o meu Pai tinha mais ou menos a tua idade.

Um dia, um amigo trouxe três embrulhos, três prendas para os três irmãos. O meu Pai era o mais novo e por isso foi o primeiro a escolher. Sem hesitar, escolheu o embrulho maior, devia ser o melhor brinquedo! Era uma cadeira com uma ovelha a fingir que puxava e três rodas: duas grandes atrás e uma pequena à frente. Um triciclo com pedais seria melhor, mas mesmo assim ficou contente. 

O problema foi quando se sentou no brinquedo. A ovelha levantou-se no ar, a cadeira caiu para trás e o meu Pai bateu com a cabeça no chão! Sentou-se de novo, com mais cuidado, mas passado um bocado caiu outra vez para trás. Não havia nada a fazer, o brinquedo era assim... Não era defeito, era feitio…

Deixou de brincar com a cadeira da ovelha até que um dia os três irmãos foram tirar uma fotografia. Vestiram-se para a ocasião e o fotógrafo arranjou um grande brinquedo para os mais velhos. Para o mais novo foram buscar a cadeira da ovelha e sentaram-no, contrariado.

Para a posteridade ficou a foto dos três irmãos, com o mais novo na cadeira da ovelha, com cara de poucos amigos, à espera de cair para trás! Muitos anos depois, o meu Pai mostrou-me a fotografia e contou-me a história da cadeira da ovelha. E explicou-me porque é que estava com aquela cara:
— Não gostava do brinquedo. Foi castigo por ter escolhido o embrulho maior!

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Força de Vida

 


A consulta com a médica de família estava marcada para as quatro da tarde.

A imobilização do braço por causa da recente fractura do colo do úmero não a deixa conduzir e por isso pediu-me para a levar ao centro de saúde. Mas antes ia ao cabeleireiro, estava a precisar: “Vens-me buscar à uma e um quarto e deixas-me lá”.

Faltava um quarto para a uma, telefonou: “Então onde estás, já estou à tua espera?” Fez confusão com as horas de outro compromisso e estava na rua. Saí logo que pude, mas quando a vi já tinha andado mais de um quilómetro. “Vim andando… fez-me bem andar…”

Entrou no carro e deu-me as instruções para a tarde: “Tenho aqui os pingos para vista, são de duas em duas horas. Às duas peço à cabeleireira que mos ponha, mas às quatro tens de ser tu”. A operação que fez na semana passada às cataratas de uma vista obriga a esta rotina.

Deixei-a na cabeleireira e voltei às três e meia. “Mas que grande corte! Está bonita” – disse eu. “Estava mesmo a precisar… Fiz tudo, cabelo, depilação e mãos! Mandei vir o almoço do restaurante moçambicano e comi no cabeleireiro, soube-me muito bem!”

Depois da série de três pingos com intervalos de cinco minutos, entrou no centro de saúde às quatro em ponto. As cinco e meia, telefonou-me: “Saí agora da médica, podes vir buscar-me. Sabes lá, esperei uma hora para ser atendida!

À porta do cento de saúde, recebi mais umas instruções: “Se não te importas, levas-me ali ao supermercado, preciso de fazer umas compras. Mas antes pões-me os pingos das seis".

E assim foi, depois de lhe pôr os pingos, entrámos no supermercado para as compras que só gosta de fazer naquela loja… Já passava bem das seis e meia da tarde quando a deixei em casa.

"Obrigada e até amanhã, filho. Amanhã espero por ti ao meio-dia” – lembrou, não fosse eu esquecer-me do teste à covid para a operação à outra vista na sexta.

A agenda de uma senhora com noventa e três anos é muito cansativa!

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Election Day



Primeiro eram as personagens e as paisagens do faroeste das histórias de quadradinhos do Cavaleiro Andante. Nos primeiros anos do liceu eram os mapas e as fotografias do “Novo Atlas Escolar Português” de João Soares e era a terra de emigração sonhada pelo amigo Joninho. Alguns anos depois passou a ser o país onde faziam a música que gostava de ouvir, da luta pelos direitos civis e dos protestos estudantis contra a guerra que os militares faziam no Vietnam.

A partir de Novembro de 1974, embarcado e a navegar num navio da Marinha de Guerra dos EUA, num tempo em que as comunicações com Portugal eram muito difíceis, foi a imersão total na cultura e modo de vida norte-americanos. Durante seis meses comia comida dos EUA, via filmes dos EUA, via televisão dos EUA, lia jornais dos EUA, sentia-me nos EUA, quer estivesse a navegar, fundeado ou atracado em Gibraltar, em Espanha, em França ou em Itália. A informação sobre Portugal era muito escassa e restringia-se às cartas e aos recortes de jornais que recebia de Lisboa e às notícias vindas dos EUA sobre o medo do que os norte-americanos chamavam de maré comunista.


Nesses seis meses que coincidiram com um turbilhão de acontecimentos mundiais, vivi ao lado de norte-americanos as ondas de choque provocadas pela resignação de Nixon, pelo desaire na guerra no Vietname e pela queda de Saigão. Percebi ao ler pouco tempo depois o livro “The Final Days” e a descrição do episódio de choro e soluços de Nixon ajoelhado no chão do gabinete presidencial, como eram frágeis os presidentes dos EUA e o sistema eleitoral que os elegia.



Depois foi a pós-graduação na Califórnia, viver mais de dois anos com a família o dia-a-dia dos norte-americanos, conhecer um sistema de ensino muito melhor que o português, recordar no campus da UC Berkeley o activismo pela liberdade de expressão e contra a guerra do Vietname, sentir os efeitos sociais e económicos da crise petrolífera, sofrer o assédio dos nacionalistas durante a crise dos reféns em Teerão, conhecer por dentro as qualidades e os defeitos, as forças e as fraquezas de um país e de um povo tão fascinantes e poderosos como frágeis.

Quiseram as circunstâncias profissionais e pessoais que, desde então, nunca deixasse de aprofundar o conhecimento e as ligações aos EUA e ao seu povo. Em 2016 entristeceu-me a eleição de Trump mas não me surpreendeu. Assim como não me surpreenderá a reeleição em 2020 de uma personagem com tantos defeitos e tantos delitos fiscais e financeiros que se perder as eleições corre o risco de falir ou ter problemas sérios com a justiça.

Mas apesar de saber que Biden é tão fraco como os outros presidentes norte-americanos que conheci e que o sistema político e eleitoral norte-americano não produzirá melhor do que ele, gostaria que amanhã o colégio eleitoral lhe fosse favorável.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Steinbeck's Cannery Row

 


A obra "As Vinhas da Ira" (The Grapes of Wrath no original) que John Ernst Steinbeck publicou em 1939 é um retrato fiel da devastação capitalista que se apropriou do fruto do trabalho de milhares e milhares de trabalhadores rurais, rendeiros e meeiros norte-americanos e os forçou a migrar para a Califórnia, onde continuaram a ser explorados, a viver em condições sub-humanas e a ser ameaçados por grupos fascistas. Pela sua actualidade, recomendo a leitura do clássico, embora esta não seja a obra de John Steinbeck que mais me marcou.

As circunstâncias da vida fizeram com que o romance “Cannery Row” de 1945 (que na edição portuguesa recebeu o infeliz título de “Bairro da Lata”) fosse a obra de Steinbeck de que mais gostei. Muitas vezes fui conhecer lugares depois de ler as descrições feitas por escritores, mas no caso da Cannery Row em Monterey, a antiga Ocean View Avenue rebaptizada depois do sucesso do livro, aconteceu o contrário. Conheci primeiro o local e depois li o livro. E o que é certo é que, talvez por nele ter identificado imagens, pessoas, sons e cheiros que fixei numa fase muito rica da vida quando, há mais de quarenta anos, vivemos em Monterey, “Cannery Row” passou a ser um dos meus livros preferidos.

“Cannery Row” foi escrito para os jovens norte-americanos que faziam a guerra sem nunca falar dela. Fala dos habitantes de um bairro de Monterey que como o próprio Steinbeck escreveu “alguém disse serem 'prostitutas, chulos, batoteiros e filhos da mãe,' o que significava toda a gente. Tivesse espreitado por outra frincha e talvez dissesse, 'santos e anjos e mártires e homens santos,' e significaria a mesma coisa."

Mas “Cannery Row” poderia ter sido escrito para muitos jovens portugueses da minha geração, tivesse Steinbeck nascido noutra época e noutro continente. Por exemplo, o parágrafo sobre o papel do Ford T na formação de gerações norte-americanas poderia ter sido escrito sobre o papel dos Minis na minha geração: "Someone should write an erudite essay on the moral, physical, and esthetic effect of the Model T Ford on the American nation. Two generations of Americans knew more about the Ford coil than the clitoris, about the planetary system of gears than the solar system of stars. With the Model T, part of the concept of private property disappeared. Pliers ceased to be privately owned and a tyre-pump belonged to the last man who had picked it up. Most of the babies of the period were conceived in Model T Fords and not a few were born in them. The theory of the Anglo- Saxon home became so warped that it never quite recovered."

E o “Cannery Row” poderia ter sido escrito para os jovens da minha geração que também fizeram a guerra e, dependendo da perspectiva, eram chulos e batoteiros, santos e mártires, filhos da mãe e homens bons, todos com histórias de sobrevivência semelhantes às das personagens de Steinbeck. Eram jovens que por educação e tal como os das gerações contemporâneas do modelo T da Ford, sabiam mais sobre a bobine e o carburador dos Mini do que sobre o clitóris ou o sistema solar.

Uma estratégia para a indústria naval militar nacional

Há dez anos concebi uma estratégia para o sector naval militar e com o Fernando Ribeiro e Castro, tentámos motivar as empresas associadas do Fórum Empresarial da Economia do Mar, sem qualquer resultado. 

Esta foi a nossa proposta. 


Introdução

No quadro da globalização competitiva, a Economia do Mar é um componente essencial da estratégia de desenvolvimento de Portugal. De acordo com o Relatório Final daSaeR/ACL de 17 de Fevereiro de 2009, o Hypercluster da Economia do Mar é um dos cinco domínios estratégicos mais promissores, a par do Turismo, do Ambiente, dos Serviços de Valor Acrescentado e da Organização de Espaços Urbanos.

O Hypercluster da Economia do Mar é aqui entendido como o conjunto de clusters ou componentes estratégicos que, não tendo necessariamente entre si relações de intercâmbio económico ou tecnológico estreitas, existem em torno da exploração de um mesmo recurso ou de um mesmo património de grande dimensão e que suporta uma grande variedade de funções. Os componentes estratégicos deste Hypercluster correspondem às actividades económicas ligadas ao mar (Visibilidade, Comunicação, Imagem e Cultura Marítimas; Náutica de Recreio e Turismo Náutico; Transportes Marítimos, Portos e Logística; Construção e Reparação Navais; Pesca, Aquicultura e Indústria de Pescado; Energia, Minerais e Biotecnologia; Obras Marítimas; e Serviços Marítimos) e as necessárias actividades transversais de base ou suporte (Produção de Pensamento Estratégico; Ambiente e Conservação da Natureza; Defesa e Segurança no Mar; Investigação Científica, Desenvolvimento e Inovação; e Ensino e Formação).

Dada a natureza e a estrutura do Hypercluster da Economia do Mar, afigura-se que a realização do objectivo estratégico de salvaguarda dos recursos marítimos nacionais requer uma abordagem holística dos componentes Defesa e Segurança no Mar, Construção e Reparação Navais e Serviços Marítimos e das suas relações.

As funções de Defesa e Segurança no mar são funções em larga medida da responsabilidade do Estado e são essenciais ao funcionamento do Hypercluster. Em Portugal e para além das missões de combate e de projecção de força, existe uma longa experiência de atribuir à Marinha militar missões de serviço público de tempo de paz, sendo que as de segurança são essencialmente executadas com meios navais militares.

Assim, a auto-suficiência da Defesa e Segurança dos recursos marítimos nacionais só será assegurada se a Indústria portuguesa tiver capacidade de manter, modificar, modernizar e reparar os nossos meios navais militares. Por outro lado, as infra-estruturas, equipamentos e competências para construir novos navios militares de dimensão adequada para o exercício das actividades de fiscalização e segurança marítimas podem também ser activos importantes e duradouros naquele contexto.

Neste contexto afigura-se adequado reflectir sobre as condições actuais da construção e reparação dos meios navais militares em Portugal.

 

A Construção e a Reparação Naval Militar

A construção e a reparação de navios são actividades económicas distintas que não concorrem entre si e raramente cooperam, chegando a afirmar-se que só têm a doca em comum. A primeira é capital intensiva e em regra subsidiada, a segunda é mão-de-obra intensiva e actua num mercado muito exigente e dinâmico, ambas têm requisitos de engenharia e tecnologia muito diferenciados.

Tabela 1 – Construção naval militar e comercial - Comparação

 

Militar

Comercial

Quanto aos Processos de Negócio

Mercado

Monopsônio, com a procura totalmente controlada pelo Estado através da Defesa Nacional

Aberto e global, com mecanismos de oferta e procura dependentes dos armadores e operadores comerciais, estaleiros e fabricantes de equipamentos

Contratação

Demorada, com formação de parcerias limitadas de fornecedores em função das condições específicas e grande envolvimento de recursos, sujeita a regras administrativas complexas mas tolerantes às variações de prazos e preços induzidas pelas alterações de requisitos durante a construção

Rápida, simples, regulada pelos mecanismos da oferta e procura e da competição entre múltiplos fornecedores, com formação de preços fixos e margens reduzidas para alterações ou revisões de preços

Gestão de projecto

Complexo

Simples

Construção

Soluções delicadas (ex. chapa fina, espaços reduzidos), maior duração (cerca de 4 vezes mais) e controlo de qualidade mais oneroso

Fortemente capital intensiva, com requisitos de produção quantitativa e qualitativamente pouco exigentes

Recursos humanos

Fortemente trabalho intensivo, rácio entre pessoal de colarinho branco e azul de 1:1,7, 30% do esforço aplicado nas estruturas do navio

Rácio entre pessoal de colarinho branco e azul de 1:6, 50% do esforço aplicado nas estruturas do navio

Quanto ao Produto

Dimensão e complexidade dos navios

Compactos e complexos

Grandes e, normalmente, simples

Definição e estabilização de requisitos técnicos e funcionais

Muito demoradas, com intervenção de múltiplas entidades e especialistas

Rápida e simples, com poucos intervenientes multidisciplinares e condicionada pelas regras padronizadas das sociedades classificadoras

Projecto

Duração média superior a 2 anos, com grande interacção com diversos intervenientes, conformidade com normas muito diversas, exigentes e em constante evolução, sistemas de combate e segurança complexos, novos desenvolvimentos frequentes e suportados pelo armador, esforço muito significativo de produção e gestão de documentação técnica

Duração média de 6 meses, com interacção com um número muito reduzido de intervenientes, conformidade com normas simples e estáveis, replicação de soluções comuns a muitos navios e patrocinadas pelos fornecedores dos sistemas e equipamentos, consagradas contratualmente e com inovações reduzidas ou nulas por conta do construtor

Equipamentos

Características funcionais e ambientais específicas, sendo críticas no caso das armas e sensores

Características técnicas e funcionais padronizados e comuns a múltiplos fornecedores

Provas

Extensão e profundidade das provas de aceitação maximizadas, com intervenção de diversos intervenientes e de acordo com regras muito exigentes

Extensão e profundidade limitadas e complementadas pelos testes funcionais em serviço


Sendo certo que a diferenciação é quase absoluta para os navios comerciais, também é verdade que a construção e a reparação são cada vez mais encaradas como componentes importantes e complementares das políticas nacionais de sustentação dos meios navais militares e de optimização da Defesa e Segurança no mar. Quando exercidas no contexto restrito do ciclo de vida dos navios militares, estão interligadas e contribuem, de acordo com a dimensão do país e a consequente importância relativa de cada uma, para a sustentação de um sector estratégico com características muito particulares e que enfrenta hoje importantes desafios. É assim apropriado abordar a estratégia para o sector de construção e reparação naval militar nacional de forma integrada, à semelhança do que se faz nos países com clusters marítimos importantes.

Por outro lado, o sector de construção e reparação naval militar também se diferencia do sector de construção e reparação naval comercial. Enunciam-se na Tabela 1 as principais diferenças entre construção naval militar e comercial, sendo que uma comparação semelhante para a reparação tem resultados análogos. As Indústrias Navais militar e comercial são de facto duas realidades distintas que raramente coexistem, mesmo quando estaleiros militares e comerciais são geridos pelo mesmo grupo (ex. Damen Group na Holanda) ou quando o mesmo estaleiro realiza construções militares e comerciais (ex. HDW do ThyssenKrupp alemão). No mundo anglo-saxónico estas realidades são clara e inequivocamente diferenciadas nas suas designações correntes: naval shipbuilding para a militar e commercial shipbuilding para a comercial. Neste contexto é aconselhável grande prudência na aplicação de soluções do sector comercial ao militar e vice-versa.

 

A Situação Internacional

Ao analisarmos as principais economias ocidentais com interesses no mar e nas actividades marítimas - Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha, Noruega -, verifica-se que o sector de construção e reparação naval militar é fortemente, senão mesmo totalmente, condicionado pelas políticas de Defesa e Segurança dos respectivos Estados. É aliás esta a razão da natureza monopsonista deste sector nos países onde tem alguma relevância. O domínio da Defesa Nacional como o único comprador em cada um dos países e os mecanismos de protecção interna associados conferem características únicas a este sector.

Sem qualquer excepção, os planos estratégicos definidos para o sector de construção e reparação naval militar de cada um dos países observados têm como principais objectivos:

  • Manter em cada país as capacidades e competências estrategicamente importantes, de acordo com a política de Defesa do Governo e os requisitos operacionais e as necessidades da Marinha militar;
  • Definir o relacionamento entre a Defesa Nacional e a Indústria, nacional e estrangeira, mais apropriado para o desenvolvimento e entrega oportuna, dentro do orçamento e conforme as especificações de desempenho, dos meios navais requeridos pala Marinha militar;
  • Assegurar o acesso às tecnologias que desenvolvam e fortaleçam a independência do sector tecnológico e industrial nacional;
  • Propiciar ao Governo o melhor retorno de longo prazo para cada investimento de aquisição e de apoio ao ciclo de vida dos meios navais, num contexto industrial viável, internacionalmente competitivo, eficiente e fiável;
  • Propiciar à Indústria certezas e orientações de planeamento sobre necessidades previsíveis da Marinha de modo a que as construções e reparações sejam geridas e executadas por um sector de construção e reparação naval sustentável e eficiente;
  • Assegurar condições para investimentos de longo prazo em I&D e formação.

Os mesmos planos estratégicos preocupam-se sempre com os três elementos nucleares para o sector:

  • Pessoas com conhecimentos e competências especializados para construir e manter os meios navais da Marinha militar;
  • Infra-estruturas singulares pela sua natureza especializada ou proximidade geográfica das bases navais e pontos de apoio,
  • Tecnologia relevante e respectiva propriedade intelectual.

Nos países onde a Defesa Nacional mantém um relacionamento sustentável com um sector de construção e reparação naval militar consolidado, a abordagem à concretização daqueles planos estratégicos é muito semelhante, apenas diferindo em aspectos de pormenor resultantes dos condicionalismos nacionais particulares.

As competências que todos procuram preservar nos respectivos sectores de construção e reparação naval militar são de dois grandes tipos:

  • Actividades de engenharia naval militar de topo tais como engenharia de sistemas, projecto detalhado, gestão de programas e projectos complexos, e integração de sistemas e da plataforma;
  • Actividades de produção tais como construção, aprestamento e instalação de equipamentos.

As competências associadas às primeiras são específicas da construção e reparação naval militar, têm um valor estratégico elevado e são detidas por um número muito restrito de organizações ou empresas nacionais. As competências de produção são igualmente importantes para o sector mas podem ser encontradas com facilidade fora dele, em especial no sector de construção e reparação comercial. É preocupação essencial dos responsáveis pelas políticas de Defesa manter ambos os conjuntos de competências alinhados de modo a mitigar os riscos inerentes aos principais programas navais militares, tanto de construção de navios como de manutenção da esquadra.

Quanto ao modelo estrutural adequado para o sector de construção e reparação naval militar, os vários países realizaram estudos extensos e profundos durante as últimas décadas e os de média e pequena dimensão chegaram, sem excepção, a duas conclusões centrais:

  • A procura em cada país só permite sustentar uma única entidade construtora e reparadora de meios navais militares especializada, independentemente da dispersão ou variedade dos meios técnicos e fabris orgânicos que coordene;
  • O paradigma de uma entidade singular responsável pela construção e reparação dos meios navais militares (ECRN) e operando em regime de ajuste directo (sole source arrangement) gerido conjuntamente com os Ministérios da Defesa como clientes, afigura-se como o único viável para responder às necessidades das respectivas Marinhas militares nacionais.

A existência de uma entidade empresarial nacional e autónoma responsável pela construção e reparação naval militar e reconhecida como aliado e interlocutor privilegiado da Defesa, a ECRN, tem como objectivo, de entre outros, resolver as disfunções e assimetrias de um mercado onde os Ministérios da Defesa e/ou as Marinhas militares nacionais são o único comprador em cada país. A natureza peculiar e assimétrica do sector e a adopção de modelos e práticas de contratação e supervisão generalistas mas pouco adequados, têm efeitos perversos que se procura minorar ou eliminar com esta abordagem. Com frequência, a relação entre os representantes da Defesa Nacional e os múltiplos fornecedores, com capacidades e dimensões muito díspares, está na origem de situações lesivas dos interesses dos Estados e que oscilam entre a prepotência ou desincentivo relativamente aos pequenos e médios fornecedores nacionais e a submissão, consciente ou não, aos interesses dos grandes fabricantes internacionais.

Assim e em consequência da aplicação daquelas conclusões nos países com um sector de construção e reparação naval militar relevante, assistiu-se à consolidação dos correspondentes meios de engenharia e fabris, com a formação de entidades empresariais públicas ou privadas que, isoladamente ou em cooperação com organismos fabris estatais, asseguram integralmente a execução dos programas definidos pelos governos para o sector. Cita-se a BAE Systems no Reino Unido, a DCNS e Thales em França, a Navantia em Espanha, o ThyssenKrupp na Alemanha ou o Damen Group na Holanda.

Por outro lado e com pequenas variações, os diversos países têm vindo a adoptar o mesmo modelo de relacionamento entre a Defesa Nacional e as ECRN. A Figura 1 esquematiza esse modelo comum de relacionamento, ressalvando-se as diferenças de implementação nos diversos países.


Figura 1 - Modelo conceptual de organização do sector de construção e reparação naval militar

Em termos muito gerais, o quadro de referência das relações entre os intervenientes na construção e reparação naval militar em países onde foi instituído o princípio da ECRN é construído com base em parcerias ou alianças de configuração e duração variável e distribuídas por três níveis distintos de decisão e execução:

  • Liderança estratégica
  • Alianças de Capacidades
  • Agrupamentos de Subcontratantes.

As parcerias ou alianças nos diferentes níveis, incluindo o de Liderança estratégica, são definidas caso a caso (programa a programa ou projecto a projecto) de acordo com regras contratuais e parâmetros de avaliação de desempenho bem definidos.

A Liderança Estratégica é o corpo director do quadro de referência para todos os intervenientes e estabelece o “porquê” e o “quê” das actividades relevantes de construção e reparação naval militar. Constitui-se por relação contratual de parceria entre a Defesa e a ECRN em função dos programas navais militares decididos pelo Governo. Superintende a gestão de cada um dos programas de construção e reparação executados pelo sector e, mais importante, assegura a manutenção e sustentação das capacidades e competências estratégicas do sector de construção e reparação naval militar nacional.

As Alianças de Capacidades são os diversos agrupamentos ou consórcios do nível intermédio que contam sempre com a participação da Defesa e da ECRN. Se bem que de natureza diferente conforme se trate do apoio na fase operacional ou de um projecto de construção ou aquisição, em ambos os casos asseguram o fornecimento de meios ou capacidades. Neste nível e para cada projecto concreto, as relações de parceria com as empresas nacionais e estrangeiras assumem grande relevância e não devem ser confundidas com as relações complementares de subcontratação.

Em todos os países observados a implementação deste modelo está relativamente consolidada e estável e assegura em cada um deles a integração vertical e a protecção das respectivas competências e capacidades estratégicas. As participações cruzadas entre os países que adoptaram o modelo é normalmente feita no nível inferior de Agrupamentos de Subcontratantes, dado que os dois níveis superiores estão em regra blindados aos actores estrangeiros. A participação da Thales no nível intermédio do programa CVF inglês é uma interessante excepção à regra.

A projecção de cada um desses países no mercado militar internacional é feita com o apoio do respectivo ministério da Defesa, no âmbito da Liderança Estratégica, oferecendo soluções que replicam as que desenvolveram de acordo com o quadro estratégico de referência interno. Desta forma rentabilizam os investimentos internos e asseguram a subsistência das empresas nacionais do sector. Os alvos são geralmente os países que não possuem um sector de construção e reparação naval militar ou que, possuindo-o, não têm um quadro estratégico de referência que o proteja. Países como o Brasil até muito recentemente, a Indonésia, a Malásia ou Portugal são territórios privilegiados para esse tipo de acções comerciais, normalmente sob a forma de financiamento de novas construções ou transferência de meios navais, de participação em grupos de utilizadores desses meios, de oferta de ‘soluções acabadas e testadas’ a preços baixos, de consultoria em áreas estratégicas como o projecto preliminar e detalhado, a gestão de programas, o procurement ou o apoio logístico integrado. Esta política comercial agressiva dos grandes grupos internacionais resolve os problemas imediatos mas acaba por resultar a prazo no definhamento dos sectores de construção e reparação naval militar dos países alvos e na dependência e submissão a interesses externos.

Vale a pena analisar o caso da Austrália e da Nova Zelândia. Apesar das dificuldades no estabelecimento de um plano estratégico para o sector de construção e reparação naval militar, têm gerido de forma inteligente e equilibrada o relacionamento com grandes grupos industriais dos Estados Unidos, do Reino Unido, da França e da Alemanha, estabelecendo regras de actuação e reforçando o seu sector de construção e reparação naval militar. As orientações para a reorganização da Indústria nacional de material de Defesa definidas na recente Estratégia Nacional de Defesa do Brasil são também um caso interessante de estudo. A transferência de tecnologia passou a ser um dos pontos fundamentais da política brasileira de Defesa, sendo um factor decisivo para a aquisição de equipamentos militares. Mesmo que um determinado equipamento tenha um preço mais elevado ou características funcionais e tecnológicas inferiores ao similar estrangeiro e acabado, dá-se preferência se for nacional ou se forem criadas condições para desenvolvê-lo no país e elevá-lo aos padrões internacionais.

 

A Situação Nacional

Na ausência de um quadro de referência estratégico para o sector de construção e reparação naval militar nacional, parece razoável utilizar o modelo descrito anteriormente para caracterizar a situação do sector em Portugal.

Desde logo verifica-se que não existe uma entidade comparável à ECRN, com responsabilidade de direcção técnica e coordenação superior ao longo de todo o ciclo de vida dos meios navais. Nos programas de aquisição e construção as suas funções são parcial e casuisticamente desempenhadas pelo Ministério da Defesa Nacional (MDN) com assessoria da Marinha, verificando-se ainda nos programas executados em Portugal a intervenção do Estado através dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. A reparação dos meios navais tem sido da responsabilidade exclusiva da Marinha e a sua execução orgânica relaciona-se marginalmente com a política e os programas de aquisição e construção.

Os representantes do Estado acabam por, na maior parte dos casos, intervir nos níveis intermédio e inferior, envolvendo-se com frequência nos processos de subcontratação e de execução e avaliação de desempenho dos subcontratantes. Sem o enquadramento estratégico de modernização do cluster marítimo nacional nem a definição da política de alianças de capacidades mais adequada, os representantes do Estados limitam-se a aplicar casuisticamente as regras gerais da contratação de bens e serviços. A aplicação transversal e uniforme dessas regras num quadro de globalização competitiva de um sector peculiar e assimétrico acaba por desincentivar os actores nacionais e favorecer os grandes fabricantes internacionais.

A simples selecção ou decisão de aquisição de um equipamento ou até mesmo de um sistema para um navio da Marinha pode ter implicações sistémicas que vão muito para além das considerações técnicas e económicas típicas de um processo isolado de contratação de bens e serviços. Este é um factor crítico do sucesso ou fracasso das estratégias de modernização, fortalecimento e projecção das empresas nacionais do sector.

Acresce que o vazio deixado pela inexistência de uma ECRN na gestão e execução dos programas é em regra preenchido pela Marinha ou pelos estaleiros construtores, numa situação de risco acrescido. Em programas de construção naval militar não é sensato conferir aos estaleiros protagonismo em níveis de decisão e execução acima do adequado (3º nível de do modelo de referência, Agrupamentos de Subcontratantes). A estabilização dos requisitos operacionais, a elaboração e discussão do projecto preliminar, a gestão de riscos do programa ou o enquadramento da construção no ciclo de vida dos meios navais são elementos estranhos à actividade regular dos estaleiros, sejam eles de construção naval militar ou comercial.

No caso de estaleiros de construção naval comercial, o risco é ainda maior porque a cultura, as competências e as capacidades próprias não estão alinhadas com as da construção naval militar. De entre outros, a natureza e a dinâmica da especificação de requisitos do projecto de um navio militar ou a particularidade do relacionamento com o armador militar ou com os fornecedores críticos para o sucesso do programa são elementos estranhos à realidade dos estaleiros de construção naval comercial.

Programas de construção recentes demonstraram as deficiências do modelo centrado nas abordagens tradicionais de um estaleiro de construção naval comercial. No momento em que se procuram alternativas e sendo certo que os principais actores dos diferentes complexos industriais navais militares europeus têm uma capacidade muito grande de perceber as nossas dificuldades assim com as nossas fraquezas e vulnerabilidades estruturais, torna-se-lhes fácil apresentar soluções atraentes e expeditas, verdadeiros cantos de sereia para os responsáveis por um sector em crise profunda. É necessário estar atento e acautelar os potenciais efeitos negativos das propostas dos grandes grupos europeus do sector.

A reparação naval militar, que no caso português é a actividade do sector com maior relevância para a Indústria nacional, tem sido exclusivamente gerida pela Marinha e, tal como a construção, é estranha a uma política integrada para o sector. É no entanto consensual que o Arsenal do Alfeite é o elemento fundamental de uma estratégia eficaz de sustentação e modernização dos meios navais militares. Actualmente é uma actividade cujos processos tecnológicos apresentam índices de desempenho razoáveis mas com carências e disfunções no que se refere à gestão de projecto e à cadeia logística (supply chain). A recente empresarialização do AA pode permitir a correcção das disfunções assim como a qualificação e expansão da actividade de reparação naval militar.

É um lugar-comum dizer-se que as crises podem revelar-se como oportunidades. No caso do sector de construção e reparação naval militar nacional a crise actual pode ser uma oportunidade, embora muito estreita, de regeneração e fortalecimento. Existem condições objectivas, grande parte na esfera de acção da Estado e das empresas com interesse no sector, para se definir um quadro estratégico de referência e gerir correcta e adequadamente o relacionamento com os potenciais parceiros internacionais, com o objectivo de se evitar o provável colapso, reconstruir as capacidades nacionais e projectá-las nos nossos mercados naturais de expansão.

As Empresas do Sector Naval Militar Nacional

Em países com a dimensão de Portugal, a sustentação de empresas nacionais com competências e capacidades específicas das áreas da Defesa e Segurança no mar e da construção e reparação naval militar, só se afigura viável se, no quadro estratégico de referência definido para cluster marítimo nacional, houver estabilidade e continuidade na utilização dessas capacidades.

As diferenças significativas entre os sectores militar e comercial reflectem-se não só nos estaleiros navais mas também nas empresas de suporte, fornecedoras de bens e serviços ou outras. As empresas tecnológicas especializadas em soluções para o sector naval militar são em regra distintas e em número muito reduzido quando comparadas com as do sector naval comercial. A utilização de algumas tecnologias e soluções por ambos os sectores (dual use) permite atenuar alguns dos efeitos das diferenças entre os dois contextos sem contudo os eliminar.

Na generalidade dos países, os investimentos em programas nacionais integrados de construção e reparação naval militar são rentabilizados através da projecção no mercado externo das soluções e dos produtos desenvolvidos pelos núcleos de especialização nacionais. As parcerias internacionais são cada vez mais utilizadas como instrumento de fortalecimento da capacidade tecnológica nacional e de redução da dependência externa que é característica dos países compradores de serviços e produtos acabados. Neste contexto as experiências nacionais são incentivadas pelo Estado e os casos de sucesso são escrutinados e aproveitados como instrumentos da política económica externa.

Mas se a demonstração da operacionalidade e robustez das soluções desenvolvidas para programas nacionais é uma condição necessária para que venham a ser consideradas pelos potenciais clientes internacionais, não é contudo suficiente para assegurar a sua adopção por esses clientes. A promoção no mercado externo requer também uma política comercial agressiva de parcerias e de acordos que assegure a entrada em áreas de influência dos grandes fornecedores internacionais. No caso de países como Portugal, as parcerias e os acordos são fundamentais para viabilizar a abertura ou expansão de mercados, com o consequente aumento das exportações de marcas e produtos nacionais para mercados de Defesa e Segurança dominados ou influenciados pelos principais países vendedores.

Os programas de apetrechamento naval, novas construções, aquisições ou modernizações, são oportunidades de consolidação e fortalecimento das competências nacionais nas duas vertentes principais: maximização da participação nacional nas soluções seleccionadas e criação de parcerias para o mercado internacional. Em concreto, ao acordar programas de apetrechamento naval com outros países, afigura‑se necessário que Portugal dê preferência à solução x do fabricante y do país z, desde que, em regime de acordo de negócio ou parceria (business agreement) e não de contrapartida, o país z também dê preferência ao sistemas ou produtos nacionais ou o fabricante y incorpore os produtos e serviços das empresas nacionais na solução x ou noutras e os promova nos seus projectos em mercados internacionais.

Mas quais serão as soluções e serviços oferecidos pelos núcleos de especialização nacionais que interessa fortalecer, projectar e replicar no mercado global? A resposta a esta questão requer uma análise detalhada e rigorosa do mercado global que ultrapassa o âmbito deste apontamento mas é possível identificar algumas áreas onde essas soluções de complementaridade podem ser definidas.

Desde logo e por ser mais óbvio, as áreas de aplicação directa das tecnologias na construção e reparação de navios e dos seus sistemas e equipamentos, especialmente dos utilizados nas funções de vigilância, comando e controle, comunicações e de gestão de informação. Tratando-se de um mercado saturado e muito competitivo e sem prejuízo da avaliação que as empresas nacionais terão necessariamente de fazer das reais oportunidades de negócio, isoladamente ou em parcerias, afigura-se que as soluções que requeiram a integração de sistemas são as que em princípio oferecem melhores condições de sucesso.

Existem, no entanto, outros produtos e serviços que as empresas do sector de construção e reparação naval militar nacional podem oferecer com impacto sistémico em todo o cluster marítimo nacional. Estão nessa condição os produtos e serviços associados à criação e manutenção das condições de sustentabilidade dos meios navais (lifetime supportability) que com alguma facilidade podem ser replicados ou estendidos a outros componentes estratégicos do Hypercluster do Mar, nomeadamente aos Serviços Marítimos de gestão de frotas, à Náutica de Recreio e Turismo Náutico, aos Portos, Logística e Transportes Marítimos e ao Ambiente e Conservação da Natureza.

Admitindo condições ideais de sustentabilidade dos meios navais militares nacionais e à semelhança do que fazem os países preocupados com a redução dos custos de aquisição e manutenção do seu dispositivo de Defesa, o MDN define um plano estratégico para o sector de construção e reparação naval militar e estabelece as regras do sistema de aquisição e manutenção dos meios militares em coerência com aquele plano estratégico. Nesse contexto, o MDN ou um corpo técnico e de engenharia na sua dependência, estabelece políticas de gestão do material, alinhadas com os modernos padrões científicos, tecnológicos e económicos.

No caso da manutenção dos meios militares e para além de outras abordagens facilitadoras e de controlo como a melhoria contínua de processos (CPI) e a logística centrada no desempenho (PBL), é hoje universalmente aceite que a estratégia de sustentabilidade de todo o ciclo de vida dos sistemas dos navios se construa a partir do que se designa por “Condition Based Maintenance Plus” (CBM+). A estratégia CBM+ procura optimizar os indicadores de desempenho que caracterizam a prontidão do material: disponibilidade, fiabilidade, tempo de paragem e custos de propriedade. A estratégia CBM+ expande os tradicionais processos de manutenção baseados na avaliação em tempo real da condição dos sistemas a partir de sensores embebidos ou de testes externos, e na execução da manutenção perante a evidência da sua necessidade. A estratégia CBM+ utiliza uma abordagem de engenharia de sistemas para recolher dados, analisá-los e sustentar os processos de decisão para aquisição, sustentação e operação dos sistemas de Defesa e Segurança. Os conceitos de sistemas de gestão da manutenção automatizados (CMMS) e de apoio logístico integrado (ILS) dos anos 80, da manutenção centrada na fiabilidade (RCM) e da manutenção por acompanhamento de condição (CBM) dos anos 90, deram lugar neste milénio às abordagens de prognostic and health management (PHM) e mais recentemente CBM+, com integração de disciplinas de engenharia, de gestão e de apoio à decisão até hoje estranhas à actividade de manutenção.

A adopção de estratégias CBM+ leva à criação sistemas de sustentação multidisciplinares ajustados às condições locais, com incorporação de capacidades orgânicas na dependência da Defesa Nacional e da Indústria privada, com a presença de diversas tecnologias, processos e metodologias, designadamente e de entre outros, diagnóstico e prognóstico, informação distribuída, treino interactivo, fusão de dados, sistemas de informação integrados de apoio à decisão, identificação e localização automática de material e activos, reconhecimento de imagem e som, sistemas cognitivos, sistemas de comunicações, etc.

A construção e a manutenção de um sistema de sustentação robusto e completo como o que atrás se caracterizou requerem assim um esforço de coordenação e de integração de sistemas que não se compadece com a aplicação fragmentada das regras gerais de contratação de bens e serviços.

Num exercício que pode ser facilmente estendido a outras áreas tecnológicas do sistema de sustentação dos meios militares navais, valerá a pena analisar o caso do sistema de gestão da plataforma, uma das principais fontes de dados para o acompanhamento de condição e a gestão da manutenção. É sabido que o mercado de automação naval está reduzido a 4 ou 5 fornecedores mundiais. Assumindo-se que as características funcionais e físicas das soluções oferecidas são semelhantes, que critérios de selecção, para além do preço, devem ser considerados em cada novo projecto de construção ou modernização?

Na perspectiva da estratégia CBM+, a adopção de protocolos abertos que permitam a sustentação do hardware e software do sistema de automação por empresas nacionais e a ligação a sistema de diagnóstico e prognóstico é desde logo essencial. Complementarmente os fabricantes que proporcionarem oportunidades de parcerias comerciais para exportação da solução nacional de CBM+ são em princípio preferenciais. Do ponto de vista do interesse nacional, os fornecedores que oferecerem a promoção e venda da solução de PHM eventualmente desenvolvida em Portugal no âmbito de um projecto de I&D deveriam também ser privilegiados. Finalmente, se o diagnóstico e a avaliação de condição forem associados a um software de gestão de manutenção ou, em âmbito ainda mais alargado, de gestão do ciclo de vida dos sistemas e equipamentos certificado por sociedades classificadoras, o papel das tecnológicas nacionais pode ganhar uma dimensão muito interessante, com óbvias e rentáveis aplicações no sector marítimo comercial.

Neste contexto, a selecção de um fabricante de automação naval num programa de apetrechamento naval, seja ele de construção ou modernização, adquire uma importância que ultrapassa a mera avaliação técnica e financeira de propostas de fornecimento do sistema de gestão da plataforma. Sendo certo que todos os fornecedores mundiais de automação naval reclamam que têm soluções acabadas e completas prontas a fornecer a preços competitivos e que os sistemas integrados de um único fabricante têm vantagens para o utilizador final, cabe aos responsáveis pela construção e reparação naval militar do país comprador alinhar as considerações comerciais com os imperativos estratégicos e dar prioridade ao desenvolvimento de capacidades tecnológicas nacionais que assegurem e optimizem a sustentabilidade dos meios navais afectados pela decisão final.

Dentro de uma política de apoio e manutenção que minimize o custo total do ciclo de vida dos navios e que rentabilize e procure o retorno do investimento inicial, o sistema de gestão da plataforma de cada navio é uma das peças fundamentais para a gestão da infra-estrutura de informação de apoio à decisão. Fora deste contexto, a selecção da automação é determinada por considerações técnicas e financeiras associadas ao comando e controle dos sistemas. Em regra privilegia-se a unicidade, normalmente associada à rigidez da solução ou a custos elevados de adaptação, e secundariza-se compatibilidade, factor facilitador da integração e do retorno económico do investimento inicial.

Conclusão

Afigura-se desejável que o sector da construção e reparação naval militar abandone o modelo baseado na dependência tecnológica externa com o consequente impacto negativo na Economia Portuguesa e se constitua como um componente estratégico essencial do Hypercluster da Economia do Mar nacional. Nesse contexto é aconselhável que a regeneração e consolidação do sector de construção e reparação naval militar nacional procure subir na cadeia de valor, de acordo com o modelo adoptado pelos países com interesses no mar e nas actividades marítimas e onde a Defesa mantém um relacionamento sustentável com um sector de construção e reparação naval militar consolidado.

O sector naval militar, à semelhança de todo o cluster marítimo nacional, tem exigências holísticas que tornam irrelevantes as actuações fragmentadas. Tem também potencial sinergético ao nível das empresas porque, ultrapassada a visão fragmentária ineficaz, a actuação sistémica revelará e potenciará as forças internas agregadoras e empenhadas no desenvolvimento e consolidação do sector.

O Estado, que não tem condições objectivas para satisfazer as exigências de todos os níveis de actuação, deveria deixar para as empresas a definição das alianças de capacidades e dos agrupamentos de fornecedores mais adequados para se atingirem os objectivos estratégicos por ele definidos.

A criação de uma entidade empresarial nacional e autónoma responsável pela construção e reparação naval militar e reconhecida como aliado e interlocutor privilegiado do Ministério da Defesa Nacional, pode resolver as disfunções e assimetrias actuais. A relação estreita entre a Defesa Nacional e essa entidade empresarial nos dois níveis superiores de decisão e execução (Liderança estratégica e de Alianças de Capacidades) pode criar condições para uma política de construção, aquisição, apoio e manutenção que minimize o custo total do ciclo de vida dos meios navais empenhados na Defesa e Segurança no Mar.

A propriedade, o governo e organização operacional dessa entidade empresarial são factores chave para o seu sucesso e é necessário definir com clareza os princípios orientadores essenciais.

Quanto à propriedade, deve ser maioritariamente nacional, e há vantagens na diversidade para evitar o controlo por qualquer grupo de interesses. O Estado, através da Defesa Nacional ou de qualquer outra entidade estatal, não deve ter o controlo maioritário do capital. Deve no entanto aprovar as emissões ou transferências de participações ou acções de modo a assegurar, entre outros objectivos, que as alterações de propriedade não prejudicam o acesso às tecnologias e aos conhecimentos estratégicos. A organização operacional deve ser autónoma, tendo a Defesa Nacional visibilidade da gestão e desempenho da nova entidade empresarial sem interferir nas suas actividades operacionais. A implementação destes princípios deve ser simples e os mecanismos reguladores da nova entidade empresarial devem ser claros e transparentes, eventualmente consagrados no regime contratual estabelecido com a Defesa Nacional nos diversos níveis de actuação.

No quadro preconizado para o sector de construção e reparação naval militar, onde a entidade empresarial nacional e autónoma terá um papel agregador e catalisador das capacidades da Indústria, devem ser definidas quais as soluções e serviços oferecidos pelos núcleos de competência nacionais que interessa fortalecer e projectar no mercado global, assim como a forma de o fazer.

Numa visão holística, o contributo das empresas nacionais actualmente participadas pelo Estado será fundamental para a rentabilização da construção e reparação dos meios navais militares essenciais para a Defesa e Segurança no Mar e um factor crítico de sucesso do Hypercluster do Mar nacional, em especial devido à sua experiência, às suas competências e às suas soluções em áreas muito diversas. Mas nesta mesma visão, a participação qualificada do sector privado nos programas de construção, aquisição, manutenção e modernização de meios navais nacionais, com soluções passíveis de serem replicadas e projectadas no mercado global, em parcerias nacionais e internacionais, é condição necessária para consolidar e rentabilizar o trinómio Defesa e Segurança no Mar, Construção e Reparação Navais e Serviços Marítimos, e contribuir positivamente para a Economia Portuguesa.