A exploração marítima do Atlântico no século XV com o objectivo último de encontrar o caminho marítimo para o Oriente das especiarias não foi só uma extraordinária demonstração da força física e psicológica de todos os intervenientes. Quando comparamos o mar conhecido pelos portugueses no início das explorações em 1415 com o que era conhecido nos primeiros anos de 1500 quando se iniciou a movimentação contínua de homens, navios e mercadorias em todos os sentidos, não podemos deixar de pensar que se tratou de uma verdadeira revolução.
Uma revolução na construção dos navios utilizados, as caravelas e as naus, na aplicação da astronomia e da matemática à navegação marítima com métodos e instrumentos simples, na acumulação contínua de informação geográfica, hidrográfica, física e náutica, reutilizada e melhorada em cada repetição das viagens. Uma revolução que na opinião de muitos estudiosos se deveu ao processo de gestão que se manteve sem alteração ao longo de todo o século XV, apesar das várias mudanças do poder político: os pilotos adquiriam a informação a bordo dos navios durante as viagens, a hierarquia entregava-a à estrutura em terra que a tratava e melhorava para depois a fornecer aos intervenientes na preparação e execução das futuras viagens. Este ciclo de enriquecimento do repositório e padrão de conhecimento existente em Lisboa manteve-se pelo menos durante dois séculos.
É certo que todas as culturas produziram técnicas e procedimentos semelhantes aos usados pelos portugueses para navegarem os seus mares. Mas o que diferenciou as explorações portuguesas foi a sua dinâmica de gestão quando comparada com a das navegações dispersas e muito localizadas que se praticavam até então. O modo como foi gerida a expansão marítima portuguesa permitiu que num curto período de tempo os portugueses adquirissem o conhecimento do Atlântico e do modo de o navegar, e logo a seguir contribuíssem para o conhecimento de todos os mares do mundo. Há evidências documentais de que os pilotos, os principais responsáveis pela recolha da informação, tinham instruções escritas e detalhadas para cumprir e que o faziam com grande rigor.
A viagem de Pedro Álvares Cabral é um excelente exemplo dessa dinâmica. Socorrendo-me de um autor insuspeito, o Almirante Samuel Eliot Morison, um oficial da Marinha dos EUA conhecido e respeitado pelos seus trabalhos de História marítima, tracei a rota aproximada da primeira viagem de Vasco da Gama em 1497 sobre a gravura onde Morison, no livro “Portuguese Voyages to America in the Fifteenth Century” de 1940, compara a rota de Cabral em 1500 com as recomendações do Instituto Hidrográfico dos Estados Unidos e do Almirantado Britânico aos veleiros do século XX.
Vasco da Gama, partindo das ilhas de Cabo Verde, começou por navegar para Sudeste ao longo da costa ocidental africana, tal como Bartolomeu Dias tinha feito em 1487. Como outros antes dele sofreu os efeitos das tempestades, das calmarias equatoriais e da corrente da Guiné, mas reconhecendo o regime de ventos do Atlântico Sul, com o alísio do Sueste em qualquer época do ano a constituir uma barreira, Gama decidiu fazer a “volta pelo largo” e afastou-se da costa de África, navegando com sucesso à bolina com amuras a bombordo até à latitude do Cabo da Boa Esperança.
Após o regresso a Portugal e com a lição aprendida, Gama recomendou a Cabral que velejasse “directamente para a ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, sem precisar nela tocar, no caso de ter água suficiente para quatro meses. Dali deveria navegar para o Sul e, se tivesse necessidade de guinar, que fosse Sudoeste. Desse modo a navegação seria mais rápida, os mantimentos conservar-se-iam melhor e a gente iria mais sã e os navios ficariam defendidos do gusano.”
Cabral cumpriu rigorosamente as recomendações de Gama e depois disso, como Morison reconheceu em 1940, não foi possível “achar rota melhor do que aquela aconselhada por Vasco da Gama a Pedro Álvares Cabral em 1500.” Em 2016, o Comandante Malhão Pereira, um marinheiro, exímio velejador e estudioso da História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, escreveu que “o mesmo pensam os velejadores da Vendée Globe, que com todas as mordomias atuais, fizeram, durante a regata à volta do mundo em 2004, a mesma rota. E em todas as outras regatas é assim que se procede.”
Foi a capacidade do poder político adquirir, tratar e divulgar rapidamente o conhecimento que caracterizou e determinou o sucesso do empreendimento da expansão marítima portuguesa no século XV. E esta é uma lição da História que nunca deveríamos esquecer.
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