domingo, 19 de janeiro de 2020

Revolução náutica


A exploração marítima do Atlântico no século XV com o objectivo último de encontrar o caminho marítimo para o Oriente das especiarias não foi só uma extraordinária demonstração da força física e psicológica de todos os intervenientes. Quando comparamos o mar conhecido pelos portugueses no início das explorações em 1415 com o que era conhecido nos primeiros anos de 1500 quando se iniciou a movimentação contínua de homens, navios e mercadorias em todos os sentidos, não podemos deixar de pensar que se tratou de uma verdadeira revolução.

Uma revolução na construção dos navios utilizados, as caravelas e as naus, na aplicação da astronomia e da matemática à navegação marítima com métodos e instrumentos simples, na acumulação contínua de informação geográfica, hidrográfica, física e náutica, reutilizada e melhorada em cada repetição das viagens. Uma revolução que na opinião de muitos estudiosos se deveu ao processo de gestão que se manteve sem alteração ao longo de todo o século XV, apesar das várias mudanças do poder político: os pilotos adquiriam a informação a bordo dos navios durante as viagens, a hierarquia entregava-a à estrutura em terra que a tratava e melhorava para depois a fornecer aos intervenientes na preparação e execução das futuras viagens. Este ciclo de enriquecimento do repositório e padrão de conhecimento existente em Lisboa manteve-se pelo menos durante dois séculos.

É certo que todas as culturas produziram técnicas e procedimentos semelhantes aos usados pelos portugueses para navegarem os seus mares. Mas o que diferenciou as explorações portuguesas foi a sua dinâmica de gestão quando comparada com a das navegações dispersas e muito localizadas que se praticavam até então. O modo como foi gerida a expansão marítima portuguesa permitiu que num curto período de tempo os portugueses adquirissem o conhecimento do Atlântico e do modo de o navegar, e logo a seguir contribuíssem para o conhecimento de todos os mares do mundo. Há evidências documentais de que os pilotos, os principais responsáveis pela recolha da informação, tinham instruções escritas e detalhadas para cumprir e que o faziam com grande rigor.

A viagem de Pedro Álvares Cabral é um excelente exemplo dessa dinâmica. Socorrendo-me de um autor insuspeito, o Almirante Samuel Eliot Morison, um oficial da Marinha dos EUA conhecido e respeitado pelos seus trabalhos de História marítima, tracei a rota aproximada da primeira viagem de Vasco da Gama em 1497 sobre a gravura onde Morison, no livro “Portuguese Voyages to America in the Fifteenth Century” de 1940, compara a rota de Cabral em 1500 com as recomendações do Instituto Hidrográfico dos Estados Unidos e do Almirantado Britânico aos veleiros do século XX.

Vasco da Gama, partindo das ilhas de Cabo Verde, começou por navegar para Sudeste ao longo da costa ocidental africana, tal como Bartolomeu Dias tinha feito em 1487. Como outros antes dele sofreu os efeitos das tempestades, das calmarias equatoriais e da corrente da Guiné, mas reconhecendo o regime de ventos do Atlântico Sul, com o alísio do Sueste em qualquer época do ano a constituir uma barreira, Gama decidiu fazer a “volta pelo largo” e afastou-se da costa de África, navegando com sucesso à bolina com amuras a bombordo até à latitude do Cabo da Boa Esperança.

Após o regresso a Portugal e com a lição aprendida, Gama recomendou a Cabral que velejasse “directamente para a ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, sem precisar nela tocar, no caso de ter água suficiente para quatro meses. Dali deveria navegar para o Sul e, se tivesse necessidade de guinar, que fosse Sudoeste. Desse modo a navegação seria mais rápida, os mantimentos conservar-se-iam melhor e a gente iria mais sã e os navios ficariam defendidos do gusano.”

Cabral cumpriu rigorosamente as recomendações de Gama e depois disso, como Morison reconheceu em 1940, não foi possível “achar rota melhor do que aquela aconselhada por Vasco da Gama a Pedro Álvares Cabral em 1500.” Em 2016, o Comandante Malhão Pereira, um marinheiro, exímio velejador e estudioso da História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, escreveu que “o mesmo pensam os velejadores da Vendée Globe, que com todas as mordomias atuais, fizeram, durante a regata à volta do mundo em 2004, a mesma rota. E em todas as outras regatas é assim que se procede.”

Foi a capacidade do poder político adquirir, tratar e divulgar rapidamente o conhecimento que caracterizou e determinou o sucesso do empreendimento da expansão marítima portuguesa no século XV. E esta é uma lição da História que nunca deveríamos esquecer.

O Canto V dos Lusíadas


Onésimo Teotónio Almeida disse um dia que tinha começado a gostar d’Os Lusíadas pelo Canto V, quando percebeu que Camões contava a viagem de Vasco da Gama a partir da sua própria experiência de navegação para a Índia a bordo da nau S. Bento. Comigo aconteceu o mesmo, muitos anos depois da seca que foi estudar Os Lusíadas no liceu.

Se fosse professor de Português ou de História começaria exactamente por aí, por falar do Canto V como a narrativa de uma viagem bem real. E lançaria um desafio aos alunos: investigarem e discutirem se a viagem que Camões descreve foi realmente a de Vasco da Gama ou uma outra segundo uma rota diferente.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Nem oito nem oitenta

  
 
Tenho grande admiração pelo saber e pela capacidade que Fernão de Magalhães demonstrou quando planeou a viagem às Molucas e obteve os meios para a fazer, quando insistiu prosseguir para sul até encontrar a passagem no extremo meridional do continente americano e quando atravessou o Pacífico sem nada saber sobre os ventos, as correntes, a navegação naquele oceano. Apesar de se desconhecer o que Magalhães tinha em mente para o regresso das Molucas, a viagem até às Filipinas foi uma realização espantosa, demonstrando ser um dos maiores navegadores e exploradores da História e, por isso, um excelente exemplo para os jovens de hoje.

No entanto tenho por vezes a sensação que relativamente a Magalhães passámos do oito para o oitenta, que passámos do português desprezado que traiu a pátria para o génio sem mácula ou incapaz de errar. Na verdade Magalhães tomou decisões que são difíceis de explicar e do ponto de vista dos resultados pretendidos, a viagem que planeou pode ser considerada um fracasso: a rota que defendeu para o comércio das especiarias acabou por não ter aproveitamento e em poucos anos foi esquecida.

Das decisões que tomou, a navegação no Atlântico é uma das que têm suscitado mais debates. Apesar das instruções do rei para se dirigir para as Molucas sem “nenhuma deficiência”, ou seja, sem perder tempo e pela rota mais rápida, a partir das Canárias Magalhães optou pela rota de Vasco da Gama, o que provocou um atraso significativo que acabou por ter um impacto negativo no desenrolar da viagem. Depois de regressar da Índia, Gama deu instruções a Pedro Álvares Cabral para que a viagem fosse mais rápida, nomeadamente: "velejar directamente para a ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, sem precisar nela tocar, no caso de ter água suficiente para quatro meses, e dali navegar com os alísios NE à proa, para o Sul e, se tivesse necessidade de guinar, fosse para Sudoeste". Ao navegar para sudeste, passando entre Cabo Verde e o continente africano, em vez de seguir a rota de Cabral, perdeu tempo e teve de reduzir as rações de vinho e de água, o que criou descontentamento entre os tripulantes das naus. Magalhães sujeitou-se às calmarias que os portugueses já sabiam evitar e só alcançou a zona do actual Rio de Janeiro 84 dias depois de deixar a Europa. Cabral, em 1500 e partindo de Lisboa, só precisou de 44 dias para chegar à mesma zona.

Depois disso gastou muito mais tempo do que pareceria razoável a inspeccionar toda a costa até ao Estreito. Magalhães precisou de 14 semanas para chegar a Porto São Julião, num trajecto que uns anos mais tarde Elcano fez em cinco. Há por isso quem seja da opinião que os 13 meses que Magalhães gastou no Atlântico até alcançar o estreito, com a consequente fome e miséria e com todos os problemas com as guarnições das naus, terão comprometido seriamente ou terão mesmo sido fatais para o sucesso da expedição.

Nunca saberemos as verdadeiras razões de Magalhães porque era muito reservado na divulgação dos seus planos (os capitães e pilotos queixaram-se que só os revelava com 24 horas de antecedência), mas uma hipótese possível seria que estivesse a avaliar a forma de assegurar o seu próprio lucro e futuro, assim como o lucro de Cristóbal de Haro, um banqueiro e comerciante de Burgos que desempenhou um papel fulcral na organização e financiamento da viagem. A escolha de uma rota de travessia do Atlântico muito a sul e a inspecção cuidada das costas da América do Sul, podem ter tido a ver com os planos para tomar posse dessas terras de acordo com o celebrado com Carlos I e com um eventual tráfego de escravos de África, em sociedade com Cristóbal de Haro.

Em 1503, Cristóbal de Haro era um comerciante de especiarias em Lisboa e os seus navios transportavam escravos da África Ocidental para as Antilhas. À época o tráfego de escravos era uma actividade normal, legal e muito rentável. Haro trocou Lisboa por Sevilha quando em 1517 seis dos seus navios negreiros foram afundados por um pirata português e o rei de Portugal não aceitou indemnizá-lo. Em Sevilha, teve um papel central na preparação e financiamento da viagem de Magalhães com quem certamente terá estabelecido um acordo comercial. 

Em 1525, Elcano repetiu como piloto, sob o comando de Loaysa, a viagem de Fernão de Magalhães, de novo organizada e financiada por Haro. Loaysa recebeu ordens para repetir a viagem de Magalhães, evitando os seus erros. Ainda assim Elcano e Loaysa voltaram a cruzar o Atlântico perto do equador, até um pouco mais a sul. Dada a insistência nesta rota, podemos especular que Haro, em associação com Magalhães e depois Loaysa, quisesse investigar a possibilidade de uma travessia ao sul do Equador que evitasse as rotas portuguesas usuais e permitisse o tráfego mais directo de escravos da Nigéria e das bacias do Congo para as terras da América do Sul atribuídas a Castela pelo tratado de Tordesilhas e descobertas por Magalhães. 

Seja como for e quaisquer que tenham sido as razões da demora na travessia do Atlântico Sul, até nos aparentes fracassos Magalhães é uma personagem interessante. 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A História e a política


 Ferdinandes Magalanes Lusitanus
Gravura de Jan van der Straet, Stradanus, 1523 - 1605


Embora a realidade da viagem de Fernão de Magalhães até às Filipinas seja muito mais fascinante do que a ficção evocada pelo Presidente da República e pelo Ministro do Mar na largada da Sagres para a viagem de circum-navegação, os responsáveis políticos preferiram mais uma vez usar a História para um exercício de patriotismo primário de exaltação de feitos do passado à luz de um certo presente, esquecendo o essencial da viagem de Magalhães: o desafiar do estabelecido para realizar o impossível, utilizando com rigor e disciplina as metodologias e os instrumentos técnicos e científicos disponíveis à época. Uma cerimónia pública não é o momento adequado para dissertações históricas, mas também não deve ser o palco para leituras políticas de um passado ficcionado.

É um facto que a primeira travessia do Pacífico por navios que partiram da Europa e navegaram para ocidente foi um marco na História que se deveu ao português Fernão de Magalhães. O saber, a experiência e a obstinação de Magalhães foram determinantes para que a esquadra atingisse as Filipinas. Foi ele que percebeu que a Terra era um planeta oceânico que podia ser navegado em todos os sentidos e que podia usar as tecnologias náuticas e os conhecimentos de cartografia e astronomia adquiridos e acumulados por navegadores portugueses ao longo de quase um século de expansão marítima para atingir o objectivo que definiu para a expedição: alcançar as ilhas Molucas, que julgava estarem na área de influência castelhana definida em Tordesilhas, e dominar o comércio das especiarias raras que a coroa portuguesa geria a partir de Malaca através da rota da Índia.

Foi Fernão de Magalhães quem apresentou o projecto ao rei Carlos I de Castela e Aragão, que obteve a autorização e o financiamento para a constituição da esquadra. Foi ele quem teimou, contra os sublevados que queriam desistir e regressar a Sevilha, em prosseguir para sul até encontrarem a passagem marítima no extremo meridional do continente americano e foi ele que teve o conhecimento e a intuição para traçar a rota certa para atravessar o oceano Pacífico sem dispor de qualquer informação prévia.

Mas também é verdade que Fernão de Magalhães nunca teve a intenção de circum-navegar a Terra, assim como também não tinha Juan Sebastián Elcano, um homem com uma personalidade bem menos vincada e que desempenhou um papel activo na sublevação falhada de Porto São Julião. O plano de Magalhães era ir às Molucas e regressar pelo mesmo caminho. Tinha-se comprometido a não sulcar águas sob jurisdição portuguesa e caso não tivesse sido morto em Mactan a 27 de Abril de 1521, teria tentado regressar pelo Pacífico. Depois da morte de Magalhães e atingidas as Molucas, Elcano e Espinosa decidiram que cada um tomaria um rumo diferente para regressar à Europa: o primeiro, com a Victoria, pelo Cabo da Boa Esperança, o caminho mais curto e conhecido, mas dominado pelos portugueses; o segundo, com a Trinidad, pelo desconhecido Pacífico. Espinosa fracassou por falta de conhecimentos náuticos e Elcano chegou a Sevilha em condições muito precárias porque teve de evitar os navios portugueses.

A primeira viagem de circum-navegação foi assim fruto das circunstâncias e nunca esteve nos planos de Fernão de Magalhães e daqueles que comandou até alcançar as Filipinas. É por isso que se queremos festejar a circum-navegação da nau Victoria ao serviço do rei Carlos I de Castela e Aragão, conde de Barcelona e imperador Romano-Germânico Carlos V, lembremos Elcano. Se queremos festejar a descoberta do Estreito, a travessia do Pacífico e a perícia de um navegador português, celebremos Fernão de Magalhães e o seu feito.

E façamo-lo no mar e em terra, em especial nas escolas, com um discurso diferente do que se ouviu na largada da Sagres.