quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Uma prova de gratidão

 


Recorte da notícia "O paquete "Loanda" - Uma prova de gratidão dos seus passageiros" no jornal "A Capital" de 2 de Abril de 1918:

"Como na nossa seção Última Hora hontem noticiámos, A Capital recebeu o encargo de fazer distribuir pela marinhagem e artilheiros do caça-minas Augusto de Castilho a quantia de 128$70, somma subscripta pelos passageiros do paquete Loanda, como prova da sua imensa gratidão pelo brioso procedimento por ocasião da ameaça do ataque d'um submarino alemão, a meio caminho da Madeira para Lisboa.
Vamos tratar de saber no comando central de defezas marítimas o modo mais prático de entregarmos esse dinheiro, desempenhando-nos assim do honroso encargo que nos foi cometido.
Os passageiros que contribuíram foram os seguintes:
...
(lista dos passageiros da 1º, 2ª e 3ª classes e respectivas contribuições)
...
O que perfaz a totalidade de 128$70.
Como hontem dissemos e hoje repetimos, o Loanda viu surgir de súbito um submarino alemão. A marinhagem e os artilheiros do Augusto de Castilho, que comboiava aquelle paquete, imediatamente romperam fogo, o que obrigou o alemão a fugir.
Passava-se isto no dia 23 de março findo e é desejo dos passageiros do Loanda que a quantia que nos foi entregue seja dividida pela marinhagem e artilheiros que n'esse dia estavam a bordo do caça-minas."

Não soube deste episódio quando tinha oportunidade de confirmar mas espero que o 2º artilheiro José Francisco Martins, meu avô, tenha recebido o seu quinhão.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

O centralismo da(á) asneira

 




Ouvi o professor Carvalho Rodrigues dizer a propósito do opressivo centralismo lisboeta: “Tudo o que é produzido aqui (na Guarda e no interior) vale zero, tudo o que é produzido lá (em Lisboa e no litoral), incluindo as asneiras, vale imenso!”

Pois é caro professor, essa é uma queixa bem antiga. Ouvia-a do meu avô quando falava da sua terra transmontana ou da agricultura que fazia no sopé da serra de Montejunto, a dois passos de Lisboa; ouvia-a do meu pai em Moçambique quando barafustava contra as decisões dos que ele chamava de “calcinhas“ de Lisboa; ouvi-a de alentejanos, de madeirenses e de açorianos. Ouvia-a de todos os que se sentiam vítimas dos comportamentos de influência e manipulação política, corrupção, compadrio, favor, cunha, há muito associados ao centralismo e ao poder instalado na capital.

O egocentrismo do poder lisboeta é tão obsessivo que chegou ao ponto de desenvolver a doutrina de que a melhor forma de defender Portugal seria defender Lisboa com todos os recursos disponíveis. E se bem pensou, melhor o fez. No final do século XIX e início do século XX, quase todo o dispositivo militar português — tanto do Exército como da Marinha —, passou a estar concentrado na defesa de Lisboa.

O poder central mandou construir uma série de novas e modernas fortificações, adaptar algumas já existentes, tudo para criar o Campo Entrincheirado de Lisboa. As fortificações receberam modernas peças de artilharia e foram interligadas por redes telefónicas e telegráficas, bastante avançadas para a época. A partir de 1899, o Campo Entrincheirado passou a constituir um comando militar, organizado permanentemente em pé de guerra, cujo governador era um general, na dependência directa do ministro da Guerra.

Na frente terrestre, Lisboa era protegida por uma linha defensiva de Sacavém a Caxias, constituída pelos Fortes do Monte Cintra, em Sacavém, de D. Carlos I, na Ameixoeira, do Marquês de Sá da Bandeira, em Monsanto e de D. Luís I, em Caxias. O Forte de Monsanto era o reduto central de todo o sistema e nele foi instalado o comando da linha defensiva.

Na frente fluvial, o Tejo era protegido pelos Fortes do Bom Sucesso e do Alto do Duque. A frente marítima, a barra do Tejo, a margem sul e as aproximações a Lisboa eram protegidas pelos Fortes de São Julião da Barra, em Oeiras, e de Almada. A Marinha empenhava neste dispositivo o couraçado Vasco da Gama que funcionava como uma bateria flutuante contra ataques marítimos, uma esquadrilha de navios e um serviço de minas.

O sistema defensivo era complementado com diversos outros fortes, redutos, postos, baterias e fortificações secundárias. Para defender a barra do Tejo, para a além da Bateria da Laje, foram construídas na década de 1900 duas baterias mais pequenas e idênticas: a das Fontainhas, entre Oeiras e Paço de Arcos, e a do Areeiro, na ponta oeste da praia de Santo Amaro de Oeiras, junto ao Forte de Santo Amaro. Ambas tinham como função “baterem, com o seu fogo, as embarcações que intentem rocegar a faixa de torpedos (minas marítimas) estabelecida entre as duas margens do Tejo."

Terminada a Primeira Grande Guerra e pouco mais de dez anos depois de concluído o Campo Entrincheirado de Lisboa, tornou-se evidente que o conceito em que assentava não fazia sentido e a maioria das fortificações deixaram de ser utilizadas como tal e foram transformadas em depósitos, paióis ou prisões.

E o fim das nossas duas baterias também ficou traçado. A Bateria das Fontainhas, em cuja zona de servidão a Câmara Municipal de Oeiras foi autorizada a captar água das nascentes, acabou aquartelamento do Terço de Oeiras da Legião Portuguesa. A Bateria do Areeiro, que em 1916 ainda deu um arzinho da sua graça e fez fogo sobre um navio norueguês e um yacht português que não respeitaram os sinais da Marinha de Guerra, entrou em rápida decadência e acabou convertida em “Harbor Entrance Control Post” e transferida para a Marinha em 1957.

Mas o erro do Campo Entrincheirado de Lisboa, assim como tantos outros erros do centralismo, não serviram de lição. Identificado com a vida política portuguesa ao longo de séculos, continua a fazer vítimas por mais que a maioria dos portugueses se lamente. Tudo o que ele produz, incluindo sobretudo as asneiras, continua a condicionar negativamente o progresso de Portugal e do povo português.

A edificação onde esteve instalada a nossa Bateria do Areeiro e depois o Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, é bem a imagem do pior que o centralismo produz. Há vinte anos que, abandonada, saqueada, vandalizada, usada por marginais, aguarda que dois poderes políticos, o central e o autárquico, decidam fazer a obra de recuperação que tarda. Ou deixem cidadãos interessados e empenhados fazerem essa obra.

Caro professor Carvalho Rodrigues, não é só o que se produz na Guarda e no interior que vale zero. Muito do que se produz bem perto de Lisboa, bem junto ao mar, também vale zero!

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O passeio


Palhais - Verão de 2018    (foto do Tomás)


“Anda passear, avô!”

Sim, vamos.
Ver os pássaros
procurar as rãs
visitar os dois pinheiros.
Subir à serra
descobrir os moinhos
perceber o fabrico do gelo.

Depois vamos falar do mar
de terras e povos distantes.
De abril e da liberdade
do sonho e da realidade
de gente boa
e dos carapaus de corrida.

Vou tentar lembrar-me
do que os teus outros avôs
me ensinaram.
Os nomes das plantas
enxertar uma árvore
ou ler as nuvens.

Mas acima de tudo
vou aprender contigo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Amorada*



O miúdo teria uns treze ou catorze anos e a namorada, menos dois. Moravam no mesmo prédio em Lisboa, mas nas férias grandes iam ambos para casa dos avós, ele para Palhais e ela para Peniche. Durante mais de três meses não se encontravam porque os cinquenta quilómetros entre a serra e o mar eram uma barreira intransponível. Bem, quase intransponível, porque para um adolescente não há impossíveis.

Como a namorada ia fazer anos e há meses não a via, o miúdo decidiu que seria uma boa ocasião para lhe fazer uma surpresa. Depois de obter a autorização materna para a viagem, o que não foi fácil, e de convencer um amigo a fazer-lhe companhia, antes do nascer do sol do dia 3 de Setembro, o dia de aniversário da namorada, o miúdo e o amigo prepararam o farnel, montaram as bicicletas sem mudanças e fizeram-se à estrada. Conheciam bem o caminho até ao Bombarral, mas depois eram estradas que só tinham feito de carro. O maior obstáculo foi a subida até à Serra d'El-Rei, mas depois, não tardou muito, passaram pelo posto da GNR à entrada de Peniche (com algum medo porque o amigo não tinha carta para conduzir velocípedes) e bateram à porta da casa do Campo da Torre.

Foi uma enorme surpresa para todos, em especial para a menina que se preparava para sair com a família. Iam passar o dia fora e tivessem o miúdo e o amigo chegado uns minutos mais tarde, teriam batido com o nariz na porta e a viagem, tão bem planeada, teria sido um fiasco. Mas não, o objectivo foi plenamente atingido! É certo que não tiveram tempo para conversar, mas a troca de olhares e o sorriso de felicidade da namorada, compensou todo o esforço.

O miúdo e o amigo despediram-se, foram à praia dar um mergulho, comeram o farnel à sombra de um pinheiro (sim esta história é do tempo em que havia um pinhal em Peniche), dormiram uma sesta durante o pico do calor para retemperar forças e fizeram-se à estrada para os cinquenta quilómetros de regresso a Palhais.

Quase sessenta anos depois, o miúdo continua a festejar o aniversário da amorada, agora com as filhas Joana e Catarina e os oito netos. E sem precisar de fazer 100 quilómetros de bicicleta!
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Segundo a nossa neta Maria, se duas pessoas se amam, são, obviamente, amorados e nós concordámos com ela. Não quisemos saber se a palavra podia ter outros significados, se podia ser sair da morada ou ter a cor da amora. Para a Maria e para nós o importante era o radical amor. E por isso, depois de tantos anos de o sermos, declarámo-nos finalmente amorados.