quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Memórias do Liceu de Camões

 

Ilustração de Susa Monteiro na crónica “O Pilinhas” de António Lobo Antunes na Visão


As memórias do Liceu de Camões são como as cerejas, vêm umas agarradas a outras. São memórias de um reitor que controlava todas as acções dos alunos, no interior e no exterior do Liceu; era proibido permanecer frente ao Liceu, era proibido comprar coisas ao vendedor ambulante, era proibido correr, era proibido jogar à bola, era proibido brincar ao eixo ou com pedras, era proibido entrar no Liceu sem gravata, era proibido permanecer no jardim, era proibido trazer para o Liceu livros e revistas que não fossem de estudo, era proibido…

Todos os procedimentos eram definidos pelo reitor: a forma como se apanhava o autocarro, como se entrava e saía das salas de aula, como se circulava nas galerias, o tipo de vestuário que devia ser usado, a postura a ter no exterior do Liceu. Os processos disciplinares, que terminavam com o castigo do aluno, resultavam em regra de violações das regras estabelecidas pelo reitor.

No Liceu de Camões, onde tudo era controlado e vigiado, havia um médico pedófilo que dava aulas de Moral e assediava o Antunes e os putos mais inocentes e impreparados. E o reitor Joaquim Sérvulo Correia ordenava a abertura de um processo disciplinar com o seguinte despacho de 9 de Maio de 1965:

«Professor Secretário do Liceu de Camões;
Pelo professor de História, Dr. Pereira Miguel, foi entregue na Reitoria um exemplar da revista americana, em língua espanhola, “Life” cuja capa é construída por uma gravura representando uma artista de cinema quase nua. A revista foi tirada ao aluno (…), que a lia durante o funcionamento da aula, e foi trazida para o Liceu talvez pelo nº38, (…). Os factos, moralmente graves, tornam-se mais graves ainda por se tratar de uma turma frequentada também por alunas. Digne-se V. Exa. proceder a inquérito e organizar o consequente processo disciplinar

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