segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O jogo da bola


Jogar futebol, ou melhor, jogar à bola na rua ou no adro da igreja foi uma das minhas escolas na infância. Nela aprendíamos tudo sobre relações sociais: que havia habilidosos e aselhas, magros e gordos, pepe-rápidos e pés-de-chumbo; que uns jogavam calçados e outros descalços porque não tinham botas ou sapatos; que uns escolhiam e lideravam as equipas e outros eram escolhidos; que uns assumiam as consequências dos estragos nas casas dos vizinhos e outros fugiam; e que havia sempre o dono da bola, o tipo que tentava impor as regras!

Depois, à medida que o futebol passou a ser apenas negócio e competição entre adultos, sejam eles jogadores, adeptos, dirigentes, agentes e até pais de crianças candidatas a craques, desinteressei-me.

Hoje, quando o futebol é também uma fonte de instabilidade social instigada por dirigentes e meios de comunicação social irresponsáveis, voltei a interessar-me pelo fenómeno.
Desta vez para o censurar.

domingo, 3 de dezembro de 2017

O Pé-Leve




A imagem que guardo dele é de um homem muito grande e afável, de um bom gigante. Fez parte do meu universo de criança até aos 9 anos. Apesar da perna disforme, consequência da elefantíase, caminhava quilómetros com grande agilidade. Aliás essa característica valeu-lhe uma das alcunhas dadas pela minha avó: o Pé-Leve.

O Pé-Leve era o homem dos setes ofícios e das mil manhas. Por isso a minha avó também o chamava de Manha-Manha, talvez o tratamento que mais usava. A relação do Pé-Leve Manha-Manha com ela, e depois com o meu pai, merece uma explicação mais detalhada.

O Pé-Leve era natural de Inhambane e foi trazido para Lourenço Marques, como cozinheiro, pelo vizinho dos meus avós, ainda na casa da Anchieta. Mas para além da culinária, tinha muitos outros misteres, incluindo o de homem de Deus, pastor de uma igreja protestante. Estivesse onde estivesse, o Pé-Leve não passava despercebido, sempre activo e empreendedor, e talvez por isso criou laços afectivos muito fortes com a minha família paterna. Quando os meus pais foram para Inhambane, tinha eu poucos meses, pediu que o levassem. Apesar da incompatibilidade com as manhas do Pé-Leve, o meu pai fez-lhe a vontade e arranjou-lhe um cargo na repartição de agricultura que foi chefiar.

De vez em quando o Pé-Leve, ou melhor, o Manha-Manha, pregava uma partida. Um dia, na véspera do meu pai se deslocar à estação experimental que tinha instalado na Mahalamba, perto de Inharrime, com cerca de uma centena de trabalhadores, o Manha-Manha pediu boleia para ele e para a família, porque o Primo que lá trabalhava, está por esclarecer se Primo por parentesco ou nome próprio, tinha falecido. O meu pai disse que sim e indicou-lhe o local e a hora da partida.

No dia seguinte lá estava ele, não com meia dúzia de familiares mas com um numeroso grupo que sobrelotou a caixa aberta da carrinha. O meu pai fez os cento e tal quilómetros por estradas e picadas miseráveis até à Mahalamba com um cacho de gente a dar cabo da suspensão da carrinha que tanto estimava, e mais tarde assistiu, zangado, aos festejos do funeral, bem regados com muita aguardente. Foi por isso que o Pé-Leve, ou melhor, o Manha-Manha, teve de penar muito até que o episódio fosse esquecido. 

Quando alguns anos depois o meu pai foi transferido para Quelimane, o Pé-Leve quis acompanhá-lo. Apesar de não dominar o Chuabo, o dialecto da região, criou de imediato uma rede de contactos. Pediu autorização para usar a garagem da nossa casa para as suas celebrações religiosas e o que é certo que ali pregava para muitas dezenas de crentes que o iam ouvir.

E cedo criou nova família e descendência na terra do rio dos Bons Sinais. Quando o novo rebento nasceu, o Pé-Leve, ou talvez o Manha-Manha, baptizou-o, em honra do meu pai, de Engenheiro Aníbal Jardim Bettencourt. Assim mesmo, com título académico e tudo a que tinha direito!

O Rameloso


Aeroclube de Inhambane, 1951

Sempre que não engraçava com alguém, era certo e sabido, punha-lhe uma alcunha. Acontecia com todos mas muito em particular com os representantes do poder colonial. O governador-geral de Moçambique era o Fadista, o governador de Inhambane era o Rameloso, assim como mais tarde o de Quelimane foi o Narciso. Era assim que se referia a eles nas conversas com a mulher e os mais próximos.
Os amigos não estranhavam mas a mulher, cautelosa, avisava:
– Habituas-te a usar alcunhas e um dia ainda te sai sem quereres!
E de facto, o inevitável aconteceu.
Passeavam na marginal com um casal recém-chegado a Inhambane e ele, entusiasmado com a descrição da actividade profissional, começou a referir-se ao Rameloso para aqui, ao Rameloso para acolá, sem se lembrar que os interlocutores não faziam ideia de quem era tal personagem.
Até que um deles perguntou a medo, não fosse a pergunta ser interpretada como demonstração de ignorância:
– Mas quem é o Rameloso?
– É Sua Excelência o Senhor Governador – respondeu com toda a naturalidade, e continuou a conversa.

A foto de 1951 foi a única que encontrei com as duas personagens. O 1.º da direita, em pé, é o protagonista, o meu pai, e Sua Excelência o Senhor Governador, como manda o protocolo, ficou ao centro. Para além do governador, vemos o presidente e os pilotos do Aeroclube de Inhambane que assinaram o verso da fotografia.