Aníbal Jardim Bettencourt, 1956 |
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão, Movimento Perpétuo, 1956
Esta é a história
de um jovem nascido em Moçambique nos anos vinte do século passado mas que
vamos encontrar em Lisboa, no último ano do liceu Camões, nas aulas de Química do professor Rómulo de Carvalho, o poeta António
Gedeão da Pedra Filosofal. Filho de um casal de madeirenses que
três ou quatro anos antes da primeira Grande Guerra cumpriram a sina de
muitos portugueses, deixaram a terra natal e emigraram para Moçambique
para fugir à pobreza e procurar uma vida melhor.
O pai teve vários
empregos, foi colocado na ilha de Moçambique e mobilizado para combater
os alemães no norte da província ultramarina até que estabilizou como
funcionário dos correios na capital. A mãe, uma lutadora, criou os
filhos, uma menina e quatro rapazes, e fazia o possível e o impossível
para dilatar o magro ordenado do marido. Com os negócios que inventava,
conseguiu mandar três filhos para a metrópole para tirarem cursos
superiores. Medicina ou engenharia, queria ela. Os mais velhos
fizeram-lhe a vontade e matricularam-se no Técnico.
O nosso jovem,
excelente aluno, decidiu ser diferente e assim que acabou o liceu escolheu Agronomia. A mãe não achou muita graça, disse-lhe até que ia estudar para “engenheiro das nabiças,”
mas sempre o apoiou. Terminou o curso de engenheiro
agrónomo em 1948 e foi estagiar na Junta de Hidráulica Agrícola, no
projecto de Idanha-a-Nova. Terminado o estágio ficou desempregado e
regressou a Moçambique.
Concorreu aos Serviços de
Agricultura e depois de meses de espera, foi admitido na Secção de
Hidráulica Agrícola. Quando ocorreu um problema no vale do rio Incomáti,
encarregaram-no de ir à Manhiça saber o que se passava. Elaborou um
projecto de enxugo e rega para uma parcela do vale mas não o pôde
executar por falta de financiamento e vontade política. Convencido que a
burocracia de Lourenço Marques nunca o deixaria fazer obra válida,
pediu transferência para Inhambane para estudar e trabalhar a cultura do
café racemosa, espécie espontânea no litoral arenoso de
Moçambique.
Em Inhambane dedicou‑se de corpo inteiro a apoiar os pequenos
agricultores que encontravam na cultura do café uma alternativa às
culturas do algodão, caju, chá, sisal, arroz e cana-de-açúcar, impostas
pela administração colonial. Para estas culturas, cabia às empresas
concessionárias, protegidas pelo Estado colonial, a organização de
mercados de venda e o monopólio da compra do produto final. Em
Moçambique o café escapava a estes circuitos monopolistas e durante
alguns anos o mercado funcionou normalmente. O nosso jovem agrónomo foi
instalando de raiz estações experimentais a centenas de quilómetros de
casa, primeiro na Malamba, a sul de Inhambane, e depois no Gurué, na
Zambézia, para o arábica, quando foi transferido para Quelimane.
Produzia e distribuía sementes aos fazendeiros e agricultores que
assumiam por inteiro todo o circuito de produção e venda do café. Claro
que esta situação era intolerável para os poderes coloniais e em 1958 a
cultura do café foi proibida em Moçambique. Quem quisesse trabalhar em
café, que fosse para Angola!
O nosso agrónomo entregou
toda a obra feita e preparou-se para mudar para Angola. Mas a
destruição abrupta de mais de uma década de trabalho intenso afectou-o,
física e psicologicamente, e adoeceu gravemente. Recuperou depois de quase um ano
de tratamento em Portugal mas viu-se de novo à procura de
emprego. A experiência na cultura do café permitiu-lhe um
trabalho precário no Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro,
uma instituição científica sediada em Oeiras que se dedica ao
melhoramento genético das plantas com o objectivo de encontrar
variedades produtivas e resistentes às pragas e doenças que atacam as
plantações nos países produtores de café. Agarrou a oportunidade com entusiasmo, sem hesitar. Consolidou e expandiu as suas
competências com o trabalho para o Instituto do Café de Angola, do
qual dependia administrativamente, e para o Instituto Brasileiro do
Café, porque o Brasil era um dos países produtores mais afectados pela
ferrugem do cafeeiro.
Quando ocorreu o 25 de Abril, foi colocado
no Quadro Geral de Adidos e partilhou a saga da integração vivida por
milhares de portugueses das ex‑colónias, mas nem por isso deixou de ser
um apoiante incondicional do movimento libertador.
Ao longo de mais de
trinta anos, seleccionou e apurou variedades híbridas de cafeeiros
resistentes, distribuiu as suas sementes por todo o mundo produtor de
café. Pediam-lhe para trabalhar em Angola, Brasil, Venezuela, Colômbia,
México, Guatemala, Nicarágua, Honduras, Costa Rica, Panamá, República
Dominicana, para criar estações experimentais, para ensinar nas
universidades, para apoiar centros de investigação, a tal ponto que
passava no máximo dois meses por ano em Portugal e o resto andava a
calcorrear o mundo. Ganhou reconhecimento mundial como um dos maiores
cientistas no melhoramento genético do cafeeiro. Reformou-se aos 70 anos
e publicou o último de inúmeros artigos científicos em 2008, encerrando
a carreira científica.
Esta é a história da carreira profissional do jovem aluno de Química do poeta António Gedeão, a história de quem me marcou indelevelmente por ser meu Pai!
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