quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A Casa da Cerca



Durante anos estiveram lá as ruínas, feias e tristes, e por isso era fácil explicar onde foi a reunião de São Pedro do Estoril. Agora é mais difícil porque o casarão que testemunhou um dos momentos mais dramáticos da preparação do derrube do regime também foi demolido. Ficou a empena sul, a imagem aérea no Google Maps e a memória de quem, no início da década de 70 do século passado, tinha todos os sonhos do mundo.
Mas nisto da memória, não há nada como sermos fiéis à do Vasco Lourenço, organizador e moderador da reunião, quando recordou no Canadá como os caminhos da luta contra o fascismo se cruzaram na Casa da Cerca, o edifício que existia colado às traseiras da Colónia Balnear Infantil O Século, em São Pedro do Estoril.
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Pedem-me os meus amigos do Centro Cultural 25 de Abril - Núcleo Salgueiro Maia, que conte uma Pequena Estória. Por hoje, vou lembrar uma reunião que, não sendo considerada uma das grandes reuniões conspirativas que nos levaram ao 25 de Abril de 1974 - falo do 9 de Setembro, em Alcáçovas; do 1 de Dezembro, em Óbidos; do 5 de Março, em Cascais - se realizou a 24 de Novembro de 1973, em São Pedro do Estoril e que estava destinada a desempenhar papel importante na nossa acção.

Reunião que se realizou num momento particularmente sensível da vida do Movimento dos Capitães, quando se atravessou uma fase de clarificação que provocou rupturas, mas nos permitiu prosseguir com mais segurança. Refiro-me à única cisão que o Movimento sofreu durante a conspiração, em consequência de uma tentativa do poder para nos controlar por dentro, através de alguns conspiradores.

Nascido há menos de três meses, o Movimento dava passos titubeantes, procurando consolidar posições, ao mesmo tempo que tentava alargar o seu espaço de acção. Foi então que fomos confrontados com a proposta de dar um cheque em branco ao governo, pois ele iria resolver os nossos problemas corporativos e profissionais. Proposta que nos forçou a uma clarificação, que passou pela auto-suspensão da actividade da comissão coordenadora provisória, saída da reunião de Alcáçovas em 9 de Setembro.
E provocou a marcação de uma reunião alargada, para eleger uma comissão coordenadora definitiva e decidir sobre o rumo a seguir. No entanto, dada a grande importância desta reunião, havia que prepará-la bem, para o que se marcou uma outra, com delegados que cobrissem todo o Exército.

Foi com essa intenção que procurámos que alguém nos disponibilizasse uma casa onde pudessem reunir-se cerca de 50 pessoas. Apareceu então o capitão Bismarck a informar-nos que conseguira uma casa junto à Colónia Balnear Infantil O Século.
Não me recordo se foi o Bismarck ou outra pessoa que pôs a correr que a casa onde iríamos reunir era a do guarda das instalações da colónia balnear. O facto é que essa foi a versão que fez história durante muitos anos e apenas foi desfeita, quando preparávamos a evocação dos 25 anos da mesma.
Por isso, só então pudemos agradecer publicamente a José Manuel Fonseca Ribeiro que, consciente dos perigos que corria, aceitou ajudar-nos e nos permitiu reunir no casarão da Cerca de S. Pedro, paredes meias com a referida colónia balnear.

Bem-haja, pela coragem e pelo patriotismo de que então deu prova! Não lhe pudemos fazer esse agradecimento em vida, mas, 25 anos depois, recordámo-lo e agradecemos-lhe publicamente, em cerimónia evocativa, nas pessoas de sua mulher e seus filhos, aí presentes.
Nessa altura, agradecemos também a sua irmã, Maria da Fonseca Ribeiro, a coragem que a levou a resistir às torturas da PIDE/DGS.
Agradecimento que juntámos ao que, sem o sabermos, lhe fizemos em 27 de Abril, quando a libertámos de Caxias.

Permita-se-me, aqui, um parêntesis para lembrar que a Maria da Fonseca Ribeiro pertencia à LUAR e fora presa, na sequência da prisão do Palma Inácio, em 23 de Novembro, precisamente na véspera da nossa reunião.
Ora, sabendo a PIDE/DGS que ela escondera material explosivo da LUAR, torturaram-na nesses dias, para que ela confessasse o local do esconderijo. E ela, sem fazer ideia que o irmão emprestara a casa para uma reunião clandestina - que por sua vez também não fazia ideia que a irmã era da LUAR e utilizara a casa familiar para ali esconder material dessa organização - resistiu e nada confessou.
Calcule-se o que teria acontecido se ela indicasse o local: os pides iriam lá, desprevenidos e dariam com mais de quarenta oficiais do Exército, armados e em ambiente extraordinariamente explosivo...!

Voltando à reunião de 24 de Novembro de 1973, recordemos que ela foi bem mais importante do que à partida supúnhamos, porque nela participou o tenente-coronel Luís Banazol.
Com efeito, tacteando o caminho, segredando, com algum receio ou com algum desenvolto descaramento, a hipótese de avançar para o derrube do regime, não vínhamos conseguindo afastar-nos do enredo de uma luta de mais ou menos papéis. Recordo que, tendo já discutido formalmente a hipótese de um golpe de força, numa importante reunião em 6 de Outubro, ela fora afastada liminarmente.

Foi aí que, decidido e corajoso, na reunião que aqui evocamos, aparece o Luís Banazol a afirmar que isto não vai lá com papéis! O governo só cai à força! E nós é que temos a força necessária! Por isso, nada de hesitações! Revolução, já!
O aviso da presença de uma bomba, ou a chegada da Pide ao local, dificilmente teriam provocado maior efeito que a intervenção deste militar de Abril. Foi como se os seus galões de tenente-coronel tivessem dissipado todas as dúvidas, todos os receios, todas as hesitações. Fortemente aplaudido, como se não estivéssemos numa reunião clandestina, foi com alguma dificuldade que se conseguiu serenar os ânimos, acalmar o entusiasmo. E as poucas intervenções mais cautelosas não obtiveram qualquer aceitação.

Foi já sob uma contida excitação que se aprovou a agenda para a reunião marcada para dali a 8 dias, em Óbidos. Agenda que os presentes levaram a todas as unidades do Exército, promovendo a sua discussão e preparando as respostas a fornecer na que viria a ser uma das principais reuniões conspirativas.

O Luís Banazol merece a homenagem que nesses 25 anos de evocação lhe fizeram os camaradas que ele ajudou a enfrentar a realidade e que nem sempre o compreenderam. Teve, no entanto, sempre quem o respeitasse, o compreendesse e o estimasse.
Quer se queira ou não, quer se concorde ou não, não tenhamos dúvidas: sem a acção do Luís Banazol teria sido bem mais difícil chegar ao 25 de Abril e à libertação de Portugal!

Foi uma jornada difícil, onde tivemos de enfrentar, mas soubemos vencer, as enormes dificuldades criadas pelo poder militar, pelo poder político, pela PIDE/DGS.
Resta dizer qual a agenda ali aprovada, para a reunião de 1 de Dezembro em Óbidos:
A.1. Conquista do Poder, para com uma Junta Militar, criar no País as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional (Democratização)
A.2. Dar oportunidade ao Governo de se legitimar perante a Nação através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelo Exército, precedidas de um referendo sobre a Política Ultramarina
A.3. Utilização de reivindicações exclusivamente militares, como forma de alcançar o prestígio do Exército e de pressão sobre o Governo
B. Circunscrever o problema só ao Exército ou alargá-lo a todas as Forças Armadas
C. Como deve ser constituída a Comissão Coordenadora, por quem e quais as suas funções.
D. Para a solução escolhida, acha que se deve contactar algum chefe? Quem?
E. Estudo de situação.

Agenda para reunião de Óbidos - Apontamentos de Vasco Lourenço

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Só mais umas notas:

Para responder às movimentações dos capitães do Exército, o coronel Viana de Lemos foi nomeado para subsecretário de Estado do Exército do Governo de Marcelo Caetano em 7 de Novembro de 1973. Viana de Lemos tinha ligações a alguns dos conspiradores e tentou, através deles, controlar o Movimento por dentro. A resposta do Movimento foi dada em São Pedro do Estoril e depois em Óbidos

Muitos dos que participaram na reunião de São Pedro do Estoril estavam de facto armados e um deles até tinha no porta-bagagens do carro uma bazuca com duas granadas anticarro. O Vasco Lourenço disse noutra ocasião que se a PIDE tivesse aparecido levaria 3, 4, 5 pessoas no máximo, que seriam abatidas, disso não tem dúvida nenhuma. “Naquele ambiente, se nos aparecem lá tipos da PIDE, a malta pegava nas armas que tinha, e com a experiência que tinha, e com a bazucada e tudo, naquele dia havia de ser bonito!

Dias depois, na Casa do Povo de Óbidos, 180 delegados de unidades em representação de 429, votaram a hipótese A.3, por estreita margem em relação à A.1. Embora a hipótese de derrube do regime tenha sido preterida por influência dos para-quedistas, que recusaram liminarmente qualquer acto de força, a crescente consciencialização política do Movimento, que passou a ser dos Oficiais das Forças Armadas com a decisão de alargamento à Marinha e à Força Aérea, assim como a convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse derrubado, tinham tornado o processo irreversível.
A estrutura organizativa do Movimento que iria derrubar o regime também ficou definida em Óbidos com a eleição da Comissão Coordenadora e Executiva, com três elementos da cada Arma ou Serviço do Exército. Na escolha dos chefes prestigiados o mais votado foi o general Costa Gomes, o segundo o general António de Spínola e o terceiro... o general Kaúlza de Arriaga!
Estávamos a menos de cinco meses do 25 de Abril!

Reza ainda a lenda que os proprietários da casa da Cerca, uma família conservadora com antecedentes monárquicos e profundas convicções católicas, com ligações de amizade pessoal a figuras proeminentes do regime salazarista, adquiriu a antiga fábrica de conservas de sardinha em 1943 para no terreno construir uma nova casa, com vista para o mar. Como a construção não foi autorizada, o edifício acabou por ser só recuperado e o casarão, que tinha uma capela onde o bispo autorizou a celebração da missa, foi também local de reuniões clandestinas de oficiais da Marinha com exibição de filmes sobre a guerra no Vietnam e O Couraçado Potemkin e nele actuou José Afonso.

De facto, a resistência política na Marinha, particularmente activa a partir da fraude eleitoral de 69, é uma realidade histórica ainda desconhecida de muitos. As várias formas de organização e acção - pública, semiclandestina e clandestina – baseada nos cursos da Escola Naval, nas guarnições dos navios e unidades em terra e nas áreas de residência, com locais de reunião que tanto podiam ser as unidades como as casas de cada um ou o Clube Militar Naval, é um caso de estudo interessante. E essa actividade começava pouco depois da entrada na Escola Naval, muitas vezes com ligações aos cursos da Reserva Naval, os oficiais milicianos da Marinha. Foi assim que oficiais da Marinha participaram em diversos movimentos cívicos de resistência nos anos que antecederam o 25 de Abril, incluindo as eleições de 1969 e o congresso da oposição democrática de Aveiro em 1973. E foi também por isso que a integração com o Movimento dos Capitães, em especial a partir da reunião de São Pedro do Estoril, foi feita com prudência, mas sem grande dificuldade. Quem conhece o que se passou na Marinha antes do 25 de Abril compreende o seu papel no golpe e no PREC e o contributo para evitar a guerra civil em Novembro de 1975. Mas o que importa agora lembrar é que embora a maioria dos oficiais do Exército reunidos naquele dia 24 de Novembro de 1973 não tivesse consciência disso, o caminho da resistência na Marinha também se cruzou com o do Movimento dos Capitães na Casa da Cerca.

Finalmente, no dia 24 de Novembro de 1973, o José Manuel Fonseca Ribeiro, para além do risco que correu ao emprestar a casa para a reunião conspiratória, decidiu estar presente acompanhado dos seus quatro filhos para que ela parecesse um encontro de família. Claro que seria um cenário difícil de justificar tendo em conta os mais de quarenta homens de cabelo curto e porte militar que nela participaram, mas ficou a intenção e, acima de tudo, a prova da sua coragem.

Muitos caminhos se cruzaram na casa que agora é apenas uma memória!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Crónica de Abril Hoje




Quando os jovens discutem, planeiam e concretizam soluções para os problemas que os afectam, num exercício de cidadania e construção de uma sociedade mais justa, acontece Abril. Aconteceu em 1974, no “dia inicial inteiro e limpo” segundo Sophia, mas também está a acontecer hoje, na Escola Básica e Secundária de Carcavelos, quando as turmas do secundário identificaram as cinco preocupações ou problemas que afectam os jovens portugueses; quando uma assembleia de delegados de turma votou o desemprego e o bullying para serem estudados e, colectivamente, serem encontradas soluções para apresentar à Escola e a outras entidades públicas; e quando o André Santos, a Beatriz Ferreira, a Carolina Conceição, a Íris Ramos, o Lucas Gabriel e a Mafalda Silva, eleitos para dinamizar o projecto, dirigiram uma reunião com quase centena e meia de colegas para apresentar os resultados do inquérito de atitude aos alunos da escola e iniciar o debate sobre as estratégias de prevenção e contenção do bullying a serem implementadas na escola.

E como o raciocínio e a memória, sendo duas faculdades distintas, só se desenvolvem completamente uma com a outra, convidaram dois membros da Associação 25 de Abril, jovens militares em Abril de 1974, para evocarem as suas memórias e reflexões. O Jorge Bettencourt sobre o Portugal do Estado Novo e a primeira fase da conspiração do 25 de Abril, e o Fernando Cavaco sobre a violência entre os jovens e nos grupos sociais. É que a evocação de memórias individuais e colectivas e a reflexão sobre impressões, fragmentos e imagens do passado são instrumentos essenciais para uma sociedade consciente construir soluções sólidas e de acordo com as necessidades do seu presente.

 

Preparação do 25 de Abril

Do Portugal de antes do 25 de Abril, os alunos reunidos no auditório da Escola Secundária de Carcavelos na manhã de 12 de Dezembro de 2016, lembraram a falta de liberdade e o regime autoritário e repressivo imposto pelo Estado Novo, a restrição dos direitos das mulheres consagrada na Constituição de 1933, os baixos índices de desenvolvimento económico e as condições de vida difícil que levaram à emigração em larga escala de muitos portugueses. Lembraram os treze anos de guerra em África que afectou profunda e negativamente oitocentos mil jovens, tirando a vida a quase nove mil. Lembraram a contestação ao congresso dos combatentes e a génese do Movimento dos Capitães.

Lembraram a primeira reunião plenária em Alcáçovas, em 9 de Setembro de 1973, e o carácter de insubordinação da movimentação dos jovens oficiais do Quadro Permanente do Exército, que nunca foram mais de 700 em 4 165. Lembraram como à medida que se realizavam as reuniões, a questão corporativa perdeu terreno perante outros objectivos, dos quais a dignificação das forças armadas e a solução política da guerra se apresentavam como os mais significativos. Lembraram a importância da reunião de 45 militares do Exército e alguns observadores da Marinha na Casa da Cerca em S. Pedro do Estoril, em 24 de Novembro de 1973, uma casa emprestada que desconheciam ter servido de esconderijo de propaganda e material explosivo da LUAR, de local de reuniões clandestinas de oficiais da Marinha com exibição de filmes sobre a Guerra no Vietnam e O Couraçado Potemkin e onde actuou José Afonso.

Na reunião de S. Pedro do Estoril, onde foi pela primeira vez sugerido o derrube do regime, foi preparada a agenda da reunião de Óbidos de 1 de Dezembro de 1973. Foi pedido às unidades que enviassem àquela reunião delegados com respostas sobre a via a prosseguir: Hipótese A - «Conquista do poder para, com uma Junta Militar, criar no país as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional (democratização)»; Hipótese B - «Legitimação do Governo, através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelo Exército, seguindo-se um referendo sobre o problema do Ultramar»; Hipótese C - «Utilização de reivindicações exclusivamente militares, como forma de alcançar o prestígio das Forças Armadas, e de pressão sobre o Governo, com vista à obtenção da hipótese B». Além da posição sobre a via a prosseguir, os delegados deveriam também dar resposta às seguintes questões: 1.ª - «Deve o assunto ser circunscrito ao Exército ou alargar-se ao âmbito das Forças Armadas?»; 2ª - «Como será constituída a próxima Comissão Coordenadora? Quem a constituirá e que funções terá?»; 3ª - «Devem ou não escolher-se chefes militares de prestígio, aos quais nos liguemos e que orientarão politicamente a nossa acção, face a uma das três hipóteses? Em caso afirmativo, qual ou quais os chefes a eleger?». Com a reunião de S. Pedro do Estoril, o Movimento entrou numa fase marcadamente política.

Dias depois, na Casa do Povo de Óbidos, 86 delegados de unidades em representação de 200, votaram a hipótese C, por estreita margem em relação à A. Embora a hipótese de derrube do regime tenha sido preterida por influência dos pára‑quedistas, que recusaram liminarmente qualquer acto de força, a crescente consciencialização política do Movimento, que passou a ser dos Oficiais das Forças Armadas com a decisão de alargamento à Marinha e à Força Aérea, assim como a convicção de que a guerra só seria resolvida se o Governo fosse derrubado, tinham tornado o processo irreversível. A estrutura organizativa do Movimento que iria derrubar o regime também ficou definida em Óbidos com a eleição da Comissão Coordenadora e Executiva, com três elementos da cada Arma ou Serviço do Exército. Na escolha dos chefes prestigiados o mais votado foi o general Costa Gomes, o segundo o general António de Spínola e o terceiro o general Kaúlza de Arriaga.

Depois de S. Pedro do Estoril e Óbidos, o Movimento tornou-se mais abrangente, quer em objectivos quer em participantes. É por isso que embora o Movimento dos Capitães tenha estado na génese do MFA, não corresponde exactamente à mesma realidade política e sociológica. Houve oficiais que pertenceram ao primeiro e não estiveram no segundo, assim como uma parte dos oficiais que integrou o MFA não pertenceu ao Movimento dos Capitães.

Em 5 de Dezembro, na reunião da Comissão Coordenadora na Costa da Caparica, a estrutura organizativa do Movimento é completada com a eleição da sua Direcção: Vítor Alves (orientação política), Otelo Saraiva de Carvalho (secretariado) e Vasco Lourenço (organização interna e ligações).

 

Bullying

"Se eu pudesse
ir para a escola
quando me apetece
jogar à bola
sem me chatear com quem me aborrece!"
(Mafalda)

A violência, entendida como uma acção ou comportamento que causa dano a outra pessoa ou ser vivo, que nega ao outro a autonomia, a integridade física ou psicológica e até mesmo o direito à vida, tem no ambiente escolar diversas manifestações; algumas afectam os professores, outras os funcionários, mas na sua maioria afectam os alunos de diversas faixas etárias. A violência escolar mais frequente entre colegas é conhecida como bullying e manifesta-se através de comportamentos agressivos de intimidação do outro de que resultam práticas violentas exercidas por um indivíduo ou por pequenos grupos, com carácter regular e frequente. Os comportamentos incluídos na categoria bullying são muito diversos e estão ligados a acções físicas, verbais, psicológicas e sexuais.

Na análise metodológica considera-se que existem três tipos de bullying: o físico ou directo, o psicológico e o indirecto. O primeiro abrange comportamentos como bater, pontapear, empurrar, roubar, ameaçar, brincar de uma forma rude intimidatória e usar armas. O segundo consiste em chamar nomes, irritar ou gozar, ser sarcástico, insultuoso ou injurioso, fazer caretas e ameaçar. Por fim, o terceiro, que é o mais dissimulado porque não é tão visível, inclui excluir ou rejeitar alguém de um grupo.

No teste de atitude relativamente ao bullying realizado por 131 alunos dos 7º, 8º e 9º anos (Básico) da escola, os resultados foram:

  • 45% considera que o bullying não passa de uma brincadeira entre amigos e que nem sempre é intencional e maldoso;
  • 77% considera que tem sempre consequências negativas
  • 61% pensa que os agressores procuram os pontos fracos dos “amigos” e a maioria considera que o bullying é um ato prolongado no tempo;
  • Aproximadamente 70% pensa que o bullying não é praticado apenas por jovens nem recai apenas sobre jovens.



No mesmo teste realizado por 115 alunos dos 10º, 11º e 12º anos (Secundário) os resultados foram:

  • 62% não considera que o bullying seja apenas uma brincadeira entre amigos , ao contrário da opinião dos alunos do ensino básico;
  • Aproximadamente 70% acha que as consequências são sempre negativos e prejudicam sempre a vítima;
  • 52% pensa que nem sempre é praticados sobre pessoas indefesas;
  •  72% considera que os agressores procuram aproveitar os pontos fracos dos “amigos”;
  • A maioria considera que o bullying é um ato prolongado no tempo;
  • 86,1% considera que não se trata de maneira nenhuma de uma prática pacífica;
  • A grande maioria pensa que nem os agressores, nem as vítimas são sempre jovens.



Para dar resposta às preocupações suscitadas pela ocorrência do bullying, os alunos vão agora estudar o fenómeno nos diferentes níveis - escola, turma, indivíduo e família - para delinear um plano de prevenção e contenção a apresentar em Maio.

Para isso lembrarão as vivências pessoais relatadas pelo Fernando Cavaco, o menino que cresceu em Alcochete, filho do funcionário das Finanças. Era um dos poucos que usava sapatos. Os outros eram, por exemplo, o filho do GNR local e o filho do médico da Vila que, por terem sapatos, sofriam a violência dos meninos descalços. Claro que também havia o Pedrinhas, que usava botas, filho dum salsicheiro, um homem rico da terra, mas esse não agredia os meninos com sapatos, fazia bullying sim…, mas aos meninos descalços. E lembrar-se-ão que o filho do funcionário das Finanças deixou de ser agredido quando o pai apareceu e falou com os colegas do filho.

Fernando Cavaco quis deixar uma recomendação de pesquisa e aproveitou para mostrar que na AUSÊNCIA de PAI pode haver bullying, fenómeno de violência impensada, mas sentida. O bullying é filho da frustração e do vazio, quer individual quer do grupo. A gestão dos afectos está na sua origem. Podemos começar a sua análise, percebendo que … TUDO COMEÇA em CASA, disse.

Mostrou que, para além da análise quantitativa, que é muito importante, é fundamental, portanto, que ela se faça acompanhar de uma análise qualitativa.

Lembrarão outros casos então citados: o da menina de um bairro degradado de Lisboa, que era acordada pelo pai quando este chegava de mota a meio da noite, alcoolizado, e via filmes pornográficos na presença de toda a família. Na escola, a menina projectava o seu mal-estar interior fazendo bullying sobre as suas colegas. Lembrarão, igualmente, o menino do mesmo bairro degradado, superprotegido pela mãe, que era gozado e agredido pelos colegas.

Lembrarão, portanto, a necessidade de explorar a ideia do efeito que a família a mais ou a família a menos tem na ocorrência do bullying. E a referência a dois livros: “O Homem Sem Qualidades” de Robert Musil (escrito ainda antes da 2ª Guerra Mundial); e a outro muito recente da psicanalista Annie Anzieu, “La femme sans qualité”. E certamente que recordarão ainda a pequena história do final dos anos 60 na Escola Naval, no Alfeite, a revolta de cadetes contra a praxe, uma forma violenta de forçar a integração num grupo.

Por falta de tempo, não ouviram falar da menina portuguesa que foi com os pais para a Alemanha e sofreu bullying dos colegas do 5º ano no Gymnasium porque não sabia alemão. Não ouviram que em países com desigualdades salariais elevadas há mais bullying entre pré-adolescentes do que em países com desigualdades salariais baixas. Que Portugal está no quartil superior da frequência de ocorrências de bullying enquanto a Suécia, que tem a desigualdade de rendimentos mais baixa da Europa, está no quartil inferior.

E não ouviram, porque também não perguntaram, a história dos dois bustos de negros em madeira que estiveram durante toda a sessão em cima da mesa. Se tivessem perguntado, o Fernando teria mostrado que constituíam uma oferta de um menino de Luanda que trabalhou na lavandaria de um navio português e que, a bordo, foi vítima de bullying … por ser negro.

 

Epílogo

Na manhã de 12 de Dezembro de 2016, os alunos e professores Escola Secundária de Carcavelos e os convidados da Associação 25 de Abril fizeram um exercício de cidadania e de construção de uma sociedade mais justa e conforme com o espírito de Abril. Muito ficou por dizer, mas falaram de violência e agressividade, de família a mais e de família a menos, de frustrações, de desejo, de vontade, de valores éticos e sociais, de amor-próprio, de comunicação, de participação, de cidadania, de democracia, do 25 de Abril.

E no final decidiram estudar mais e em Maio responder à pergunta da Sara, que mostra já que há … no ar… um DESEJO: ― Como é que se acaba com o bullying?
Será só um desejo da Sara?

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Pompa e triste circunstância


Há quem diga que o meu pai tinha uma relação muito especial com o dinheiro mas eu tenho a certeza que ele não tinha qualquer relação com o dinheiro. Nos cinquenta anos de actividade profissional, nunca soube quanto ganhava. Quando o vencimento era pago em numerário, recebia e entregava o envelope à minha mãe, e não pensava mais no assunto. Quando passou a receber no banco, libertou-se totalmente da preocupação de levantar o ordenado.

Viveu noventa e um anos, sempre com muito pouco dinheiro na carteira, só o estritamente essencial para as suas necessidades, que eram exíguas. O orçamento familiar era administrado pela minha mãe, que se encarregava de adquirir todos os bens necessários, dos alimentos aos medicamentos, dos livros à roupa, dos computadores aos carros. Quando o meu pai, por qualquer razão, decidia premiar monetariamente os filhos, e mais tarde os netos ou os bisnetos, escrevia num pedaço de papel: VALE Cinco Escudos, ou outro valor qualquer. Depois lá íamos nós ter com a minha mãe para resgatar o vale e ouvir o discurso do costume: — O teu pai é muito esperto, não tem dinheiro mas inventa-o!

Lembrei-me disto a propósito da permanente ameaça de crise por falência de bancos e de como ela tem servido para nos pôr a pagar a vida faustosa dos banqueiros e dos seus associados. Claro que os tipos da finança sabem que a crise não será como a pintam mas dá muito jeito manter a ameaça. Aprenderam em 1970, na Irlanda, que era possível passar sem eles. Fizeram uma greve e fecharam os bancos para vergar os trabalhadores bancários e ao fim de seis meses recuaram porque nada de grave se tinha passado. A população criou um sistema de trocas, com instrumentos semelhantes aos vales do meu pai, e mostrou que os bancos eram menos necessários que a maioria dos serviços camarários.

É certo que os irlandeses precisaram de uma espécie de sistema financeiro, mas provaram que passavam bem sem os edifícios majestosos, os bónus e as remunerações obscenas, a especulação de risco e, em especial, os resgates pagos pelos bolsos dos contribuintes.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A Memória de um Território e de um Povo


  
As traineiras abrigam-se na barra
os mastros em fantástico arvoredo.
São peixes coloridos, de brinquedo
e eu o triste rapaz que solta a amarra.

Os telhados reúnem-se no largo,
assembleia de pobres e crianças.
Em falas, cantos cobram-se esperanças.
Homens chegam do mar com rosto amargo.

Lá baixo a vaga escreve na muralha
a história destes muros. Toda em brios
salta adiante o Baleal e falha.

E na gávea da velha fortaleza,
fico a seguir o rumo dos navios,
num choro de asas de gaivota presa.

António Borges Coelho


No início da década de 80 do século passado, depois da saída das últimas pessoas vindas das ex-colónias e alojadas nos edifícios da antiga prisão da Fortaleza de Peniche, um grupo de cidadãos de ou com afinidades a Peniche, procurou ali instalar um museu e evitar que os espaços mais significativos da prisão fossem destruídos ou destinados a outra coisa que não a invocação da memória da resistência ao Estado Novo. Apesar da instabilidade política e das alterações do poder na autarquia, foram capazes de obter o apoio dos autarcas que fizeram nascer o Museu Municipal, concebido como dois museus num só: um museu local e do mar, que representasse a realidade de uma terra pobre de pescadores que lutam pela vida no mar; e outro em memória da realidade dos que, privados da liberdade, lá sofreram anos a fio por terem lutado pela liberdade do povo português e por ideais humanistas.

Como o Estado Novo tinha desfigurado o edifício no seu traçado arquitetónico de fortaleza militar, concentraram-se na preservação do núcleo da prisão política. Com entusiasmo e poucos recursos, fizeram muito para as condições existentes. O espaço, exterior e interior, foi limpo e arranjado. O acervo arqueológico e etnográfico disponível na terra ocupou uma parte do museu. No espaço reservado à resistência, com a colaboração de ex-presos políticos e de resistentes antifascistas, instalaram diversa iconografia e informação sobre o que tinha sido a vida na prisão. Sabiam que o que faziam era pouco mas acreditavam que a associação dos vários elementos constituintes do museu seria um factor dinamizador. E de facto a Fortaleza tornou-se lugar obrigatório de visita de gente da região, de escolas, de turistas, de militantes políticos, de investigadores, de curiosos. Desde então a média anual de visitantes ronda os quarenta mil. Realizaram-se encontros, conferências, debates.

Infelizmente o entusiasmo que levou à criação do Museu Municipal não se manteve e a carência de recursos da autarquia, agravada com a falta de apoios externos, não possibilitou a expansão e a melhoria do Museu e o aproveitamento e conservação dos edifícios. Mais de quatro décadas depois do Movimento das Forças Armadas ter aberto as portas da Fortaleza e apesar do esforço continuado da autarquia, o estado dos edifícios não ocupados pelo Museu é lamentável e é notório o subaproveitamento de um espaço que deveria ser de partilha do saber e da memória, assim como de evocação e estudo da resistência antifascista. Ciclicamente é lembrada a necessidade da recuperação e dignificação da Fortaleza de Peniche, em regra associada por quem levanta a questão à concessão de parte do espaço para instalação de uma unidade hoteleira, que uns dizem ser compatível com o Museu da Resistência que tarda a ser criado e outros discordam. Os responsáveis autárquicos e governamentais manifestam as suas preocupações e intenções, a comunicação social é inundada de posições de quem conhece e não conhece o assunto, mas logo vem a acalmia e tudo fica na mesma, até ao próximo alarme intelectual.

Parece ser maioritariamente consensual que o ciclo da inoperância deve ser quebrado, que a Fortaleza de Peniche e a sua envolvente deve ser transformado num espaço digno, apelativo e sustentável que propicie a partilha da história e do saber de um povo do mar, a evocação da memória da resistência e da luta pela liberdade e o estudo e o debate dos caminhos do futuro, e que esse deve ser o objectivo primordial de qualquer solução que venha a ser definida e concretizada. A discussão entre quem defende a rentabilização do local com uma unidade hoteleira que nenhuma entidade, pública ou privada, teve vontade ou foi capaz de construir, mas que financiaria e potenciaria o culto da memória e do saber e quem argumenta que o espaço não deve ser concessionado para exploração hoteleira e o Estado deveria (?) encontrar a melhor solução para a recuperação da fortaleza, mascara a nossa incapacidade colectiva de defender aquele património e a memória a ele associada. Entretanto há quem tente retirar dividendos políticos, acenando com soluções milagrosas de contornos mal definidos e mérito duvidoso, nunca confirmado durante as mais de duas décadas de duração da polémica.

De facto, a polémica sobre a recuperação e valorização da Fortaleza de Peniche tem sido contaminada pela partidarite e pelo irrealismo. São muitas as vozes e poucas as nozes, raramente com algum miolo. Entre a degradação e o subaproveitamento do edifício e do espaço da prisão fascista e a utopia da “cidadela de Cascais,” é difícil encontrar uma ideia realista e exequível tendo em conta as condições de Peniche e o interesse dos penichenses. Os contributos positivos para a discussão e solução do problema são excepções no meio de um mar de opiniões e comentários que inunda os meios de comunicação e as redes sociais.

A Magna Carta para o Desenvolvimento de Peniche no horizonte de 2025, aprovada por unanimidade na reunião de Câmara de Peniche de 15 de Janeiro de 2009, pouco ajuda a perceber o plano de acção dos responsáveis autárquicos relativamente à Fortaleza. No cenário preferido, o Cenário Verde Escuro (Sustentável e Equilibrado) - Sardinha Viva, limita-se a referir a “requalificação da Pousada na Fortaleza” e a transformação do Bairro do Visconde “num ecomuseu ao vivo, interagindo com a Pousada da Fortaleza,” como se a Pousada fosse um dado adquirido e essencial para o desenvolvimento de Peniche. Percebe-se assim a frustração dos actores políticos perante a falta da Pousada. É certo que a Magna Carta refere a valorização e recuperação do Património Histórico-Militar de Peniche – Fortaleza de Peniche, Forte de Nossa Senhora da Consolação e Forte de São João Baptista –, mas nada mais adianta sobre o assunto.

Ainda sobre a Pousada, conhecemos o protocolo de 2002 entre a Câmara Municipal de Peniche, a Direcção-Geral do Património e a ENATUR e os acordos posteriores, mas também sabemos do desinteresse e incapacidade de os concretizar. Tudo indica que a recuperação e a valorização da Fortaleza, assim como a preservação da memória da prisão política e a edificação do Museu da Resistência, sendo importantes para a promoção e desenvolvimento de Peniche, terão de ser conseguidas sem a famosa Pousada, ou independentemente dela. Desde logo porque a promoção de Peniche, como de qualquer outro território, deve ser feita com base na sua identidade territorial, evidenciando os traços culturais, históricos e tradições. No caso de Peniche, para além do Mar, a Fortaleza é sem dúvida um desses traços. De há uns anos para cá, Peniche tem sido identificado como Capital da Onda. A marca Peniche, Capital da Onda é interessante e tem contribuído para a notoriedade de Peniche na comunicação social e para um aumento de visitantes em determinadas épocas do ano, mas é redutora e não reflecte a identidade do território.

A identidade de um território é construída ao longo de gerações. Tem como pilar o seu povo, com os seus hábitos, vivências e lendas, que originam a sua própria cultura e a sua história e que tornam esse território único e genuíno. Peniche é um território com história. O seu povo é o resultado do cruzamento de culturas e identidades de vários locais do país, que se fixaram neste local para trabalhar na faina do mar, na indústria conserveira e na indústria naval. Ainda ligado ao mar, Peniche é uma referência na gastronomia, em que o peixe é um ingrediente de excelência. O porto de Peniche é um dos principais portos de pesca de Portugal e foi um dos portos de defesa mais importantes. A praça-forte de Peniche, com a sua Fortaleza e as outras fortificações do concelho, era, no século XVII, a segunda mais importante de Portugal e defendia o território de pilhagens e invasões hostis. A Fortaleza foi no século XX uma das principais prisões políticas do Estado Novo, que marcou a vivência da cidade e do seu povo durante quatro décadas. Recentemente, os desportos náuticos têm-se desenvolvido uma vez que o território tem um património natural de costa, mar, ondas e ventos, que os favorecem. São todos estes, e não apenas o surf ou as praias, os traços marcantes de Peniche, a sua marca mais genuína.

Com o condicionamento da actividade piscatória e as consequências negativas na indústria conserveira e de construção naval, o turismo passou a ter uma importância reforçada na economia de Peniche. E na actualidade, o turismo cultural é um importante sustentáculo da actividade turística. O turismo cultural era tradicionalmente associado à cultura sofisticada e a pessoas instruídas e endinheiradas, mas hoje este segmento inclui muitas atracções culturais populares, para públicos alargados, e os lugares culturais devem funcionar como lugares de interesse para indivíduos de escalões etários e graus de instrução diversificados. O turismo cultural abrange um leque alargado de patrimónios, culturas e vivências que devem contar uma história, tornar a experiência participativa, serem focadas na qualidade, serem relevantes para o turista e proporcionarem uma sensação de autenticidade. Com a competição entre mercados tradicionais de turismo, aumentou a procura das especificidades territoriais e locais como alternativa de destinos a nível mundial. Por outro lado, o turismo cultural não só estimula os países e as regiões a protegerem as culturas das suas comunidades, como também desempenha um papel crucial na reabilitação das identidades locais e culturais, contribuindo para a sua difusão mundial. O turismo cultural pode ser um estímulo para revalorizar, afirmar e recuperar os elementos culturais que caracterizam e identificam cada comunidade perante um mundo globalizado.

No caso de Peniche, os elementos culturais que caracterizam o território e o seu povo são os que António Borges Coelho sintetizou no poema que escreveu na prisão inspirado pela vista do porto e da vila. Um belo soneto mais tarde musicado por Luís Cília que nos fala dos edifícios e ambiente social de Peniche e da experiência do prisioneiro. São também os elementos culturais que Mariano Calado, filho adoptivo de Peniche, decidiu descrever no livro Peniche na História e na Lenda, depois de estar detido nas prisões do Aljube e de Caxias na sequência do “Golpe da Sé” e sentir, com mais consciência, o significado da existência em Peniche de uma prisão política. Os mesmos elementos culturais que Mariano Calado estudou e descreveu na tese sobre as fortificações da região e nos outros trabalhos sobre a história, os costumes, as crenças e as tradições de Peniche.

Assim tudo parece apontar para que a recuperação e a valorização da Fortaleza de Peniche sejam enquadradas no fortalecimento da identidade cultural da região e na criação de um pólo de atracção de turismo cultural, entendido na sua forma moderna e segundo os seguintes vectores:
  • Divulgação das características e papel das Fortalezas Abaluartadas na defesa do território e na expansão do império português;
  • Divulgação dos mecanismos de poder e repressão da ditadura do Estado Novo e da luta de resistência;
  • Divulgação dos hábitos, vivências e lendas do povo de Peniche, incluindo a sua gastronomia.
A Magna Carta para o Desenvolvimento de Peniche considerou que o Cenário Verde Escuro (Sustentável e Equilibrado) – Sardinha Viva é o que melhor se adapta à perspectiva de desenvolvimento do município. Nesse contexto, a Fortaleza deverá constituir-se como polo central de divulgação e dinamização do quadro prospectivo de desenvolvimento definido para esse cenário, numa estratégia de valorização, recuperação e dinamização do centro da cidade, nomeadamente do centro histórico, enquanto área privilegiada de circulação pedonal, de visita e de comércio, com o objectivo fundamental da sua regeneração. Para além do Museu da Resistência, que asseguraria a evocação e caracterização histórica, política e social do regime salazarista, da repressão e da luta antifascista, seria instalado no interior da Fortaleza um Centro de Interpretação dos três vectores de turismo cultural: sistema de fortificações defensivas, mecanismos de poder e repressão da ditadura do Estado Novo e história e cultura do povo de Peniche. Sobre ao sistema defensivo do concelho de Peniche e da região envolvente, seria feita uma contextualização histórica, militar e estratégica dos elementos que o integram. O Centro de Interpretação apostaria fortemente na imagem e na informação interactiva e funcionaria como centro de recepção e orientação dos visitantes, em grupo ou individuais, do sistema defensivo espalhado pelo Concelho, do Museu da Resistência, do porto integrado no meio urbano onde poderiam assistir à descarga, transformação e comercialização do peixe, e de todos os outros locais do Concelho com interesse turístico. O Centro de Interpretação serviria também como local de reuniões e debates e de apoio a visitas escolares ou eventos culturais.

Mas mesmo que o cenário definido na Magna Carta para o Desenvolvimento de Peniche não seja integralmente confirmado no futuro, o espaço da Fortaleza deve ser recuperado e estruturado de forma a contemplar os três vectores de atracção turística, que naturalmente partilharão recursos tecnológicos, de reunião e apresentação, de arquivo, de apoio e de serviços públicos comuns. Será desejável que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o projecto seja tanto quanto possível coordenado a nível local, envolvendo a autarquia e os cidadãos que para isso estejam disponíveis, assim como as entidades e associações de cidadãos interessadas. Como em muitas outras questões, o sucesso depende da convergência de esforços em torno de um objectivo comum e do que todos formos capazes de realizar, cidadãos e instituições autárquicas e governamentais responsáveis pela Fortaleza de Peniche.

sábado, 29 de outubro de 2016

Capitalismo autoritário



Com a queda do muro de Berlim e sobretudo com a crise financeira de 2008, o debate ideológico entre o socialismo soviético e o liberalismo europeu foi perdendo relevância e para muitos, entre os quais me incluo, é cada vez mais uma curiosidade histórica. Com a globalização, diversos elementos daquelas duas concepções antagónicas da sociedade convergiram para um novo paradigma que muitos designam por capitalismo autoritário (authoritarian capitalism).

Trata-se do modelo de sociedade que foi testado com violência no Chile de Pinochet e na Argentina de Videla, e que se caracteriza por ser autoritário na política, capitalista na economia e nacionalista na ideologia. Hoje, depois de convenientemente reciclado pela banca, pelos mercados, pelo poder financeiro mundial, de tal modo que um economista americano já o designou de mercantilismo autoritário, renasceu pujante e mostra-se como o mais sério inimigo da democracia liberal. Para além das ocorrências na Rússia de Putin, na China de Xi Jinping ou na Hungria de Orban, ganha força em países com tradição democrática como a França, com Le Pen, ou a América, com Trump.

É certo que a democracia liberal prevalece em muitas paragens do mundo, mas na Europa, para além da expansão do capitalismo autoritário, estamos a assistir ao recuo perigoso de uma outra ideologia baseada na democracia liberal. Uma ideologia com contornos doutrinários difusos, mas com fortes preocupações sociais, que esteve na origem e permitiu o sucesso, durante décadas, do modelo social europeu e do Estado social que o consubstanciou.

Convém recordar que o Estado social, na minha opinião uma das maiores conquistas da humanidade, não é um conceito ideológico da esquerda ou da direita política. Foi a forma da Europa, e em particular dos países com um elevado grau de responsabilidade social e confiança nas instituições, concretizar o que foi consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Declaração que no seu artigo 25º diz expressamente que “toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.”
 
O Estado social existe assim na Europa para assegurar o bem-estar dos cidadãos, o mesmo bem-estar que é referido no artigo 9º da nossa Constituição quando diz que é uma tarefa fundamental do Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.” O Estado social representa para o cidadão europeu um seguro social assente em dois pilares: a solidariedade entre cidadãos e a sustentabilidade do próprio sistema.

Mas desde os tempos da célebre proclamação da Sra. Thatcher no final da década de 80 segundo a qual “there is no such thing as society, there are individual men and women, and there are families,” que assistimos à erosão da confiança no Estado social. Desde então, e em particular na última década, o Estado social tem sofrido um intenso cerco ideológico favorável ao individualismo e contrário à solidariedade social, e a sua estrutura tem sido abalada pela ganância do sistema financeiro e do capitalismo mundial, pelas limitações do crescimento económico e da demografia, pelas desigualdades na distribuição da riqueza, pela assimetria de rendimentos, pela pobreza e suas consequências, pelas migrações políticas e económicas.
 
Na sequência das políticas nacionais e europeias fortemente condicionadas pelo poder financeiro mundial e pelo imobilismo partidário e sindical, um número cada vez maior de cidadãos europeus descrê da capacidade do Estado social assegurar a segurança na infância, na educação, no emprego, na doença, na justiça, na velhice, na protecção da sua própria vida e dos seus bens. A segurança foi gradualmente substituída pela insegurança, o bem-estar foi substituído pelo mal-estar social. E as dúvidas sobre a viabilidade, a sustentabilidade e até a necessidade do Estado social fortaleceram também a atracção pelo capitalismo autoritário, regime que é encarado por muitos europeus como alternativa a uma democracia que consideram doente.

Neste contexto, para os que como eu sonham com a liberdade e uma democracia saudável e robusta para as filhas e os netos, o debate ideológico deixou há muito de ser entre direita e esquerda, entre socialismo e liberalismo. A única luta ideológica e concreta que ainda me interessa e entusiasma é a oposição ao capitalismo autoritário e a defesa de um Estado social responsável e adaptado às novas circunstâncias económicas, sociais e políticas. A defesa de um Estado social que sirva o interesse público e o bem comum na educação, na justiça, na saúde, na segurança social, que contrarie o princípio da igualdade incondicional, que elimine direitos injustificáveis, mas supostamente adquiridos para sempre, interesses corporativos inaceitáveis, desperdícios e redundâncias insustentáveis.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O Tovinhas


Escolheu cuidadosamente um carro para a mulher e encomendou-o da fábrica em Inglaterra, por catálogo.
Só podia ser um Austin Mini Special de Luxe, de 1970, uma novidade em Portugal. Para além dos 1000 cm3 de cilindrada e de algumas melhorias estéticas relativamente aos vulgares 850, era o primeiro Mini com elevador manual de vidros nas portas laterais!

Depois de uma longa espera e de um complicado processo de desalfandegamento, o carro finalmente chegou. Um Mini vermelho resplandecente, que desde logo pareceu ser diferente de todos os outros carros. Por isso foi baptizado com o nome de Tovinhas. Tinha de ter nome, e o dele foi sugerido pela matrícula inglesa: TOV 441 H.

Hoje sabemos que o Tovinhas é de facto diferente dos outros carros. De tal forma que faz parte da família, já lá vão quatro gerações. Foi e será sempre o carro da mulher. Mas também foi o primeiro carro conduzido pelos filhos, foi o carro onde passeou e brincou com os netos e, acima de tudo, foi o carro onde voou com os bisnetos.
Voou? Sim, leram bem, voou!

E a prova de que voou é esta conversa registada pela neta mais velha, há poucos dias, quando conduzia quatro dos doze bisnetos no seu mono-volume, com o tejadilho aberto.
– Parece que voamos! – exclamou o Pedro.
– O Tovinhas é que voa mesmo! – corrigiu a Maria. – Já voaste nele, Pedro?
– Ainda não – respondeu o Pedro. – Eu já! – atalhou o João.
– Sabes, a chave que o faz voar está perdida em Palhais... – esclareceu a Maria. – Quando lá formos dormir podíamos ir à procura, não era?

E todos afirmaram que sim, excepto o Tomás, que ia à frente.
Deu um toque no braço da mãe e sorriu.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A Vencedora



Sempre disse que tens tanto de sensível como de forte e determinada.
E tu provaste que estava certo.
Venceste o inimigo traiçoeiro e no fim da infinita aflição, vimos uma flor ainda mais bela brotar do impossível chão, tal e qual como diz a canção.

Parabéns, minha neta, minha linda flor!

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Um Menino Especial


Dizem que és um menino especial.
Tu não sabes porquê, mas eu sei.
E um dia vou contar-te.
Com muito amor.
Com o mesmo amor que senti há um ano, na mais bela passagem de testemunho a que assisti.
A passagem de testemunho da vida!

sábado, 3 de setembro de 2016

Coincidência

 
Em Setembro de 1974, o ano de todas as experiências, estávamos em Angola.

Março tinha sido um mês muito triste para a João e para mim. A Isabel, já com uma bela barriguinha, e tu, tentaram animar-nos mas não era possível fazer mais. Lembro-me de dizermos que a partir daquele momento a preocupação era a vossa criança.

Abril foi o mês da liberdade. Festejámos juntos, com a sensação de que estava tudo por fazer. E cada um de nós tentou fazer o seu melhor.

A partir de Junho navegámos no mesmo navio. Luanda, Moçâmedes, Cabinda, São Tomé, São Vicente, foram alguns dos portos onde percebemos que o mundo iria mudar para quem vivia na África colonial portuguesa. Assustámo-nos com a ilusão vivida por muitos, apesar dos sinais de que a situação caminhava rapidamente para o descontrolo. A reacção ao assassinato de um taxista em Luanda foi o sinal de alarme.

No terceiro dia de Setembro, em prevenção rigorosa por causa dos conflitos nos musseques de Luanda, recebeste a notícia do nascimento da tua filha. Tenho a certeza que foi o dia mais feliz da tua vida. Festejámos juntos e adequadamente o sucesso da chegada da criança que tinha deixado de ser preocupação.

Por coincidência, a Renata nasceu no dia de aniversário da João. Não estranhei porque já estava habituado. Há anos que me encontrava contigo e com os teus irmãos nos momentos mais diversos da vida, sem que nada tivesse sido previamente combinado. Foi no liceu, foi no Técnico, foi na Escola Naval. Porque é que a Renata não havia de ter direito à sua coincidência?

Depois desse Setembro de 1974, continuámos a viver uma amizade que não foi feita de coincidências. Até que a vida nos pregou uma valente partida.

Por isso, neste dia de aniversários, sinto sempre saudades tuas, Paulo!

terça-feira, 30 de agosto de 2016

12 Jovens Fechados


No início dos anos 60 integrei um grupo de jovens da igreja de São João de Deus, em Lisboa. Um grupo só de rapazes, como era próprio da época, que se identificava como “Cavaleiros do Santo Graal”.

Não me recordo das razões e circunstâncias da minha ligação a estes Cavaleiros mas duvido que fosse por motivações religiosas ou políticas. Para além do fascínio do nome, que associava ao universo das lendas medievais, julgo que terei sido atraído pela novidade e diversidade das actividades e iniciativas do grupo. Hoje sei o que eram estes grupos de juventude mas, na época, a integração nos Cavaleiros foi apenas uma das muitas experiências de um adolescente a descobrir o mundo e a aprender a vida.

De entre as várias actividades, aproveitávamos o auditório da igreja para realizar espectáculos onde fazíamos tudo: criávamos, programávamos, encenávamos, tocávamos, representávamos, sempre com o objectivo de cairmos nas boas graças das meninas, e das mães das meninas, que vinham assistir às nossas habilidades.

Em regra representávamos comédias mas um dia resolvemos mudar de registo e optámos pela peça “Twelve Angry Men,” de Reginald Rose. Inicialmente um guião escrito para um programa de televisão americana, foi depois adaptado para palco e, finalmente, para cinema, dele resultando o conhecido clássico de Sidney Lumet, estreado em 1957.

Para os mais jovens, digo que a peça não é mais do que a discussão entre doze jurados que se reúnem para decidir a absolvição ou a condenação à cadeira eléctrica de um jovem porto-riquenho acusado de ter esfaqueado mortalmente o próprio pai. O veredicto dos jurados deve ser unânime e, seja ele qual for, será adoptado irrevogavelmente pelo juiz. Na primeira votação, apenas um dos jurados vota pela inocência do jovem, não por estar convicto dela mas porque tem dúvidas sobre as provas e testemunhos apresentados pela acusação. Por falta de empenho da defesa, considera que não terão sido adequadamente refutados durante as audiências do julgamento. À medida que a discussão avança, o jurado número 8, cujo nome só conhecemos no fim da peça, chama a atenção para as inconsistências dos relatos das testemunhas e das provas e consegue que os outros admitam, um após outro, que o jovem pode estar inocente. Os onze jurados que votaram inicialmente culpado, mudam o sentido do voto nas sucessivas votações até à absolvição do jovem por unanimidade. À medida que repensam o voto, revelam os seus próprios traços de personalidade e mostram que a convicção inicial de culpabilidade se baseava mais nas suas experiências pessoais, nos seus preconceitos, nas suas concepções e narrativas da sociedade, nos estereótipos dos jovens latinos, negros ou marginalizados, e menos na avaliação dos factos concretos.

E foi assim que pegámos na tradução de Luís Galhardo (Filho), com o título de “12 Homens Fechados”, que tinha sido representada em 1959 no Teatro da Trindade por um elenco de luxo da Companhia Teatro Nacional Popular, e começámos a ensaiar com todo o entusiasmo. Sem termos consciência da sua importância, fomos assimilando princípios fundamentais para a construção de uma sociedade democrática: o princípio da presunção de inocência, o princípio “in dubio pro reo”, o princípio da equidade e do direito a um processo equitativo, a garantia do contraditório, o princípio da legalidade e o princípio da investigação e da verdade material. E assimilámos a defesa que o jurado número 11, migrante refugiado, faz da democracia.

Em tempos de censura e repressão, era óbvio que a iniciativa estava destinada ao fracasso. Não tardou que o pároco da igreja mandasse interromper os ensaios com uma justificação incompreensível para a maioria de nós: a peça era amoral e portanto não tinha interesse!

De facto não me recordo das razões e circunstâncias da minha aproximação aos Cavaleiros do Santo Graal. Mas sei que este episódio marcou o meu afastamento.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Eles não sabem nem sonham



Révolution des oeillets ao Portugal - 1er mai 1974 - Gérald Bloncourt
 
Não partilho a euforia futeboleira mas se me alhear do vergonhoso aproveitamento mediático, o que não é fácil, reconheço que é o grito de afirmação e de revolta de muitos de nós contra a arrogância, a prepotência e a xenofobia dos que se julgam donos do mundo. Gostaria de o sentir noutras circunstâncias e de forma continuada mas admito que seja somente umas das minhas utopias.
 
Sei de fonte segura que os que se julgam donos do mundo não sabem nem sonham, como disse o poeta, que este pequeno Portugal no extremo sudoeste da Europa tem 900 anos de história. Não sabem nem sonham que o seu povo teve de jogar muitas vezes feio, mesmo muito feio; teve de matar para não o matassem; teve de se aliar com poderosos pouco fiáveis para não ser destruído por outros ainda menos fiáveis; teve de sofrer, trabalhar e lutar em locais distantes e hostis para vencer a pobreza; teve de percorrer o mundo e confiar noutros povos, desconfiando.
 
Eles não sabem nem sonham que na guerra os portugueses tiveram de combater muitas vezes em inferioridade numérica e com armas muito mais fracas, mas mesmo assim atingiram o objectivo. Não sabem nem sonham que um jovem artilheiro de dezoito anos, uma criança transmontana feita homem como marçano nas ruas de Lisboa, não hesitou em abrir a culatra sempre que falhavam as escorvas para que não houvesse interrupção no tiro da peça montada na proa do arrastão de pesca transformado em navio de guerra. E fê-lo, não para vencer um dos mais poderosos cruzadores submarinos alemães, o que era impossível, mas para permitir que com as duas horas de combate, as duas centenas e meia de compatriotas embarcados no San Miguel, na sua maioria açorianos, chegassem a salvo à ilha verde no meio do Atlântico. E eles não sabem nem sonham que este foi apenas um dos muitos episódios protagonizados por milhares e milhares de portugueses ao longo da História na Europa, na Ásia, em África, na América, em todo o mundo.
 
Eles não sabem nem sonham que foi a aceitar e absorver as diferenças dos outros que os portugueses se tornaram únicos. Eles não sabem nem sonham que é isso que nos permite dizer sem medo que somos portugueses e ser recebidos com carinho por povos de todo o mundo. Eles não sabem nem sonham que há uma jovem mãe em Malaca que se diz portuguesa e que desconfiou que eu o fosse porque era muito alto e muito branco para o ser. Eles não sabem nem sonham que essa mãe está certamente a festejar a vitória da selecção de Portugal e a agitar uma bandeira portuguesa. Como estarão milhares de pessoas em todo o mundo, mesmo sem saberem uma palavra de português e nunca terem estado em Portugal.
 
Eu de facto não partilho a euforia futeboleira mas sinto muito orgulho de ser Português, mesmo que os que se julgam donos do mundo digam que sou pequeno, feio, tosco ou mestiço!


A foto foi tirada por Gérald Bloncourt em Lisboa no 1º de Maio de 1974.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Contradições



A experiência da vida, ou se calhar o envelhecimento, trouxe-me o respeito pelas contradições. Quando jovem tinha uma visão do mundo isenta delas. Aceitava sem pestanejar a lógica aristotélica de que não se podia dizer de algo que é e que não é no mesmo sentido e, ao mesmo tempo. O modelo do meu mundo era simples e qualquer incompatibilidade lógica entre duas ou mais proposições era imediatamente rejeitada.
A pouco e pouco, quase sem dar por isso, fui aceitando que pode existir verdade na contradição, que a realidade pode resultar da interacção de elementos opostos mas coexistentes. E esta é a semana das minhas contradições.

Contradições 1
No Portugal do Estado Novo, sonhava com a Europa social e democrática. Por isso acreditei na comunidade económica europeia. Com a união política e monetária que se seguiu, percebi que a Europa que impuseram aos europeus não era social nem democrática. Quando o Reino Unido anunciou o referendo sobre o Brexit, pensei que seria uma boa lição para os eurocratas. Mas quando observo a campanha pela saída da UE, quando penso que a City de Londres é o maior centro de corrupção do Mundo e que com a vitória do Brexit os donos do capitalismo criminoso ganham maior liberdade de actuação, nasce a contradição.
Não gosto desta união europeia, abomino esta união monetária mas gostaria que vencesse o sim pela permanência do Reino Unido na UE.

Contradições 2
Quando jovem olhava para a Caixa Geral de Depósitos como uma instituição bancária respeitável. Foi a CGD que me emprestou dinheiro para a minha primeira casa. Era na CGD que depositava as poupanças. Via a CGD como o banco público, necessário e essencial.
Ao longo dos anos apercebi-me da sua ineficiência na relação com os clientes. Depois percebi que era um instrumento de política partidária; que foi muito responsável pelo endividamento nacional; que sustentou muito do compadrio que nos desgovernou; que teve e tem dirigentes e responsáveis pouco confiáveis; que adopta procedimentos internos muito duvidosos.
Quando foi noticiada um inquérito à CGD, concordei logo. Mas quando ouço os que ontem queriam privatizar a CGD defenderem hoje uma comissão de inquérito parlamentar, nasce a contradição.
Defendo a CGD pública, apesar de ter sérias dúvidas que a administração e os trabalhadores da CGD cumpram as regras que vigoram para as empresas do sector onde opera. Por isso concordo com a auditoria forense e discordo da comissão de inquérito parlamentar.

Contradições 3
Quando jovem vibrava com a vitórias das equipas portuguesas e da selecção nacional nos torneios internacionais de futebol. Sem qualquer influência da comunicação social, até porque a cobertura mediática era exígua. Coleccionei autógrafos dos jogadores do Benfica e do Sporting que venceram as taças europeias na década de 60. Segui com atenção os jogos de Portugal no mundial de 1966 nos televisores dos cafés de Portimão, nos intervalos de uma nova aventura para um adolescente lisboeta: a descoberta do Algarve. Revi as jogadas em pormenor nas salas de cinema, onde íamos ver os campeonatos de futebol, os jogos olímpicos ou as corridas de automóveis. Estive com os craques do Benfica na Estalagem Rota do Sol em Carcavelos, onde ficavam alojados durante os estágios; apesar da sua popularidade, Coluna, Eusébio e companhia mantinham uma atitude humilde, sem ponta de vedetismo. Foi assim que aprendi a sentir o futebol.
Depois, talvez um pouco por evolução pessoal mas muito por não gostar do que via, fui-me afastando do futebol português. Por saturação da cobertura televisiva, por aversão ao vedetismo dos Ronaldos e respectivas cortes, por alergia ao negócio obscuro montado à sua volta. E infelizmente a selecção portuguesa parece ampliar todos esses males. É por isso que não me surpreenderia nem ficaria triste se a selecção fosse eliminada na fase de grupos.

sábado, 16 de janeiro de 2016

A Promoção de um Agrónomo a Alferes



Acabou o curso de engenheiro agrónomo do Instituto Superior de Agronomia em 1948 e foi estagiar na Junta de Hidráulica Agrícola, no Ladoeiro, no projecto de Idanha-a-Nova. Terminado o estágio e ao contrário da promessa inicial de integração nos quadros da instituição, foi informado pelo presidente que a Junta estava com problemas e que poderia até despedir pessoal. Teria portanto de esperar um ano e candidatar-se de novo, sem qualquer garantia de vir a ser admitido.

Desempregado, seria convocado para um ano de tropa para terminar o serviço militar obrigatório. Já tinha feito dois ciclos de instrução como aspirante a oficial miliciano durante as férias académicas, em Vendas Novas e Cascais, mas agora tratar-se-ia da promoção a alferes. E depois, muito provavelmente, continuaria desempregado.

Resolveu então concorrer aos Serviços de Agricultura e Florestas de Moçambique, sua terra natal, já que os pais aceitaram pagar a passagem de regresso. E como o ser casado era um factor de preferência do concurso, combinou com a noiva casar pelo civil e seguir logo para Moçambique. Assim que arranjasse emprego, ela iria ter com ele para então se casarem pela Igreja.

E assim foi. Depois de obter autorização do Estado-Maior do Exército para se ausentar do país, embarcou num navio numa viagem de vinte e oito dias até Moçambique. Durante a viagem conheceu e tornou-se amigo do oficial do exército alemão, Theodore Greef, que depois de ter combatido na Somália ou Eritreia, pelos nazis, terminada a guerra, estava a caminho da África do Sul, para ali se empregar. Mas isso são contas de outro rosário.

Chegado a Moçambique, soube que afinal o concurso para os Serviços de Agricultura estava atrasado, sem data prevista para a decisão final. Iniciou a procura de emprego mas não estava fácil. Aceitaria qualquer um, mas nada. E sentia-se inútil, a viver à custa dos pais e impossibilitado de mandar a noiva vir para junto de si.

Finalmente, ao fim de uns meses, o problema do emprego foi resolvido de forma simples e inesperada pelo barbeiro do pai. O barbeiro falou no caso ao Director dos Serviços de Agricultura, também seu cliente, que mandou o jovem agrónomo apresentar-se no dia seguinte pois havia uma vaga interina nos serviços.

Foi dessa forma que começou a trabalhar na Secção de Hidráulica Agrícola e pôde finalmente casar-se. Mas a burocracia de Lourenço Marques não permitia fazer qualquer coisa de válido. Quando ocorreu um problema no vale do rio Incomáti, encarregaram-no de ir à Manhiça saber o que se passava. Elaborou um projecto de enxugo e rega para uma parcela do vale mas não o pôde executar por falta de financiamento.

Decidiu então, por sugestão de um colega botânico, pedir a transferência para Inhambane a fim de poder estudar e trabalhar a cultura do café racemosa, espécie espontânea no litoral arenoso de Moçambique. Aí as coisas mudaram e foram evoluindo até que foi nomeado Delegado da Junta de Exportação do Café e encarregado de iniciar trabalhos sobre o café arábica na Alta Zambézia.

Mas em 1955, seis anos depois e já com dois filhos, recebeu uma convocatória para a tropa por seis meses, para a tal promoção a alferes. A esposa e os filhos viajaram para Portugal para junto dos sogros e ele voltou à vida de aspirante a oficial, a ensinar praças para serem promovidos a cabos.

Mas a agricultura cafeeira não podia esperar e resolveu convencer o comandante da importância do café para Moçambique e da necessidade de ir ao Gurué, na Alta Zambézia, escolher uma parcela de terreno e nela implantar uma estação experimental de arábica. É certo que a autorização superior acabou por depender mais do trabalho do agrónomo no melhoramento dos ajardinamentos do quartel, mas para a história colonial fica registado o contributo do Exército para o desenvolvimento da cultura do café em Moçambique. 

E assim o nosso aspirante arranjou uma forma inovadora de cumprir o serviço militar: no Gurué, a produzir e distribuir sementes de arábica aos fazendeiros, a mais de 1800 km do quartel em Lourenço Marques. O problema só se levantou quando, passados os seis meses, teve de prestar provas perante oficiais do Estado-Maior. Descontando a matemática do tiro de artilharia que tinha aprendido quase dez anos antes na instrução em Cascais, o nosso aspirante pouco mais sabia da faina militar do que dar ordens à companhia com voz forte e enérgica.

Os seus superiores decidiram então que tinha, pelo menos, de aprender a desmontar, e montar de novo, uma pistola de guerra de utilização comum. Para isso teria de receber, e recebeu, instrução intensiva de desmontar e montar a pistola.

E pronto. No dia marcado lá apareceram no quartel os oficiais do Estado-Maior que, por milagre, mandaram fazer o que tinha aprendido nos últimos dias! Foi um sucesso, logo a seguir confirmado com uma sessão de ordens gritadas a plenos pulmões!

Aprovado, foi promovido a alferes e concluiu a brilhante prestação de serviço militar no Quartel da Carreira de Tiro de Lourenço Marques, a capital da Colónia...

Voltou à cultura do racemosa e do arábica até 1959, quando em Quelimane foi proibido de continuar a trabalhar no café: superiormente declaravam que a Colónia de Moçambique não dava café, só chá!

Mas estas também são contas de outro conto…