terça-feira, 21 de junho de 2016

Contradições



A experiência da vida, ou se calhar o envelhecimento, trouxe-me o respeito pelas contradições. Quando jovem tinha uma visão do mundo isenta delas. Aceitava sem pestanejar a lógica aristotélica de que não se podia dizer de algo que é e que não é no mesmo sentido e, ao mesmo tempo. O modelo do meu mundo era simples e qualquer incompatibilidade lógica entre duas ou mais proposições era imediatamente rejeitada.
A pouco e pouco, quase sem dar por isso, fui aceitando que pode existir verdade na contradição, que a realidade pode resultar da interacção de elementos opostos mas coexistentes. E esta é a semana das minhas contradições.

Contradições 1
No Portugal do Estado Novo, sonhava com a Europa social e democrática. Por isso acreditei na comunidade económica europeia. Com a união política e monetária que se seguiu, percebi que a Europa que impuseram aos europeus não era social nem democrática. Quando o Reino Unido anunciou o referendo sobre o Brexit, pensei que seria uma boa lição para os eurocratas. Mas quando observo a campanha pela saída da UE, quando penso que a City de Londres é o maior centro de corrupção do Mundo e que com a vitória do Brexit os donos do capitalismo criminoso ganham maior liberdade de actuação, nasce a contradição.
Não gosto desta união europeia, abomino esta união monetária mas gostaria que vencesse o sim pela permanência do Reino Unido na UE.

Contradições 2
Quando jovem olhava para a Caixa Geral de Depósitos como uma instituição bancária respeitável. Foi a CGD que me emprestou dinheiro para a minha primeira casa. Era na CGD que depositava as poupanças. Via a CGD como o banco público, necessário e essencial.
Ao longo dos anos apercebi-me da sua ineficiência na relação com os clientes. Depois percebi que era um instrumento de política partidária; que foi muito responsável pelo endividamento nacional; que sustentou muito do compadrio que nos desgovernou; que teve e tem dirigentes e responsáveis pouco confiáveis; que adopta procedimentos internos muito duvidosos.
Quando foi noticiada um inquérito à CGD, concordei logo. Mas quando ouço os que ontem queriam privatizar a CGD defenderem hoje uma comissão de inquérito parlamentar, nasce a contradição.
Defendo a CGD pública, apesar de ter sérias dúvidas que a administração e os trabalhadores da CGD cumpram as regras que vigoram para as empresas do sector onde opera. Por isso concordo com a auditoria forense e discordo da comissão de inquérito parlamentar.

Contradições 3
Quando jovem vibrava com a vitórias das equipas portuguesas e da selecção nacional nos torneios internacionais de futebol. Sem qualquer influência da comunicação social, até porque a cobertura mediática era exígua. Coleccionei autógrafos dos jogadores do Benfica e do Sporting que venceram as taças europeias na década de 60. Segui com atenção os jogos de Portugal no mundial de 1966 nos televisores dos cafés de Portimão, nos intervalos de uma nova aventura para um adolescente lisboeta: a descoberta do Algarve. Revi as jogadas em pormenor nas salas de cinema, onde íamos ver os campeonatos de futebol, os jogos olímpicos ou as corridas de automóveis. Estive com os craques do Benfica na Estalagem Rota do Sol em Carcavelos, onde ficavam alojados durante os estágios; apesar da sua popularidade, Coluna, Eusébio e companhia mantinham uma atitude humilde, sem ponta de vedetismo. Foi assim que aprendi a sentir o futebol.
Depois, talvez um pouco por evolução pessoal mas muito por não gostar do que via, fui-me afastando do futebol português. Por saturação da cobertura televisiva, por aversão ao vedetismo dos Ronaldos e respectivas cortes, por alergia ao negócio obscuro montado à sua volta. E infelizmente a selecção portuguesa parece ampliar todos esses males. É por isso que não me surpreenderia nem ficaria triste se a selecção fosse eliminada na fase de grupos.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Parabéns, meu Pai!



Hoje o meu pai faria noventa e dois anos. É o primeiro aniversário depois da sua morte física.

José Luís Peixoto escreveu um dos mais belos textos sobre a dor de um jovem que perdeu o pai. Um livro magnífico que se lê num fôlego, em menos de uma hora, com um título que conjuga na perfeição o que representa a quebra do elo entre um pai e um filho: morreste-me.

Quando o leio, reconheço-me em muitas passagens. “No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amarelado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha.” Eu também ”pousei-te as mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva. (…) E tu, sincero, a dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai.”

É impressionante como tudo pode ser igual e ao mesmo tempo diferente. Igual quando “anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo.” Mas diferente, mesmo muito diferente, porque eu vi-te “velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores.”

Vi eu, viram as minhas filhas, viram os meus netos. Essa foi a nossa grande sorte.

Também diferente porque quem estivesse com o meu pai, fosse quem fosse, acabava sempre um pouco mais feliz. Ele tinha o dom de perguntar, ouvir e dizer as palavras certas que faziam o outro sentir-se melhor com a profissão, com a família, com a sociedade, em suma, com a vida.

É por isso que se eu tivesse o talento para escrever um livro sobre a perda do meu pai, ele teria outro título. Seria 'Viveste-me'.

Parabéns, meu Pai!